I – OS FATOS
Recentemente, mais uma delação premiada chamou a atenção da grande imprensa.
Segundo a Gazeta do Povo, em 14 de agosto do corrente ano, tem-se o que segue:
"A Justiça Federal do Rio de Janeiro homologou na última quarta-feira (12) o acordo de colaboração premiada de Dario Messer, conhecido como “doleiro dos doleiros” e réu na Operação Lava Jato. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a delação “em escala inédita” no Brasil prevê a devolução aos cofres públicos de cerca de R$ 1 bilhão e deve alavancar pelo menos três linhas de investigação.
Pelo acordo, Messer deverá cumprir pena de até 18 anos e 9 meses de prisão, com a progressão de regime prevista em lei (regime inicial é o fechado). Os bens do doleiro que voltarão aos cofres públicos incluem imóveis de alto padrão e valores no Brasil e no exterior, além de obras de arte e um patrimônio no Paraguai, ligado a atividades agropecuárias e imobiliárias, que deverão fundamentar um pedido de cooperação com as autoridades paraguaias para sua partilha com o Brasil.
Messer foi preso na Lava Jato em julho do ano passado, na Operação "Câmbio, Desligo" depois de passar um ano foragido. Atualmente, está em prisão domiciliar por causa de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que entendeu que o doleiro faz parte do grupo de risco para a pandemia de coronavírus. Messer é fumante, hipertenso e tem 61 anos."
Segundo ainda a Gazeta do Povo, naquela reportagem, uma das operações que poderão ser alavancadas é a "Operação Câmbio, Desligo”, sobre esquema de lavagem de dinheiro a partir do Uruguai e que movimentou mais de US$ 1,6 bilhão envolvendo 3 mil offshores em 52 países.
Por sua vez, a Veja informou que
“em sua delação homologada na quarta, 12, com o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, Dario Messer citou supostos serviços prestados para a família Marinho, dona da Rede Globo. Em depoimento realizado no dia 24 de junho, e que consta no anexo 10 da delação que tem mais de 20 capítulos, o doleiro afirma ter realizado repasses de dólares em espécie para os Marinho em várias ocasiões. Segundo o delator, a entrega dos pacotes de dinheiro acontecia dentro da sede da Rede Globo, no Jardim Botânico. Messer diz que um funcionário de sua equipe entregava de duas a três vezes por mês quantias que oscilavam entre 50 000 e 300 000 dólares.”
II – AS ORIGENS DA DELAÇÃO PREMIADA
Damásio de Jesus (Código Penal Anotado. 1 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002) apontou que a delação era disciplinada no Titulo VI do Código Filipino no título que abordava o crime de lesa magestade e no Titulo CXVI havia previsão do beneficio ou perdão:
"O Título VI do ―Código Filipino‖, que definia o crime de ―Lesa Magestade, tratava da ―delação premiada‖ no item 12; o Título CXVI, por sua vez, cuidava especificamente do tema, sob a rubrica ―Como se perdoará aos malfeitores que derem outros á prisão‖ e tinha abrangência, inclusive, para premiar, com o perdão, criminosos delatores de delitos alheios".
III – A DELAÇÃO PREMIADA COMO MEIO DE PROVA
A delação premiada, mecanismo de cooperação penal que beneficia o acusado, foi expressamente prevista no art. 8º da Lei de crimes hediondos:
Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.
Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços
Sob o ponto de vista processual, a delação premiada consiste na afirmação feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido extrajudicialmente, pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa.
O ato de delação há de ser espontâneo, pois não pode ser um ato provocado por terceiro.
Trata-se de um meio de prova, mas, para que seja considerada, há a necessidade da presença de três requisitos: a) o corréu que fez a delação tenha confessado a sua participação no crime; b) a delação encontre amparo em outros elementos de prova existentes nos autos; c) no caso de delação extrajudicial, que tenha sido confirmada em juízo. Sem esses requisitos e sem que tenha sido respeitado o contraditório, com possiblidade de reperguntas pelas partes, a delação não tem qualquer valor, sendo um ato que é destituído de eficácia jurídica.
É importante que se faça uma diferenciação entre “meios de obtenção de prova”, “meios de prova” e “fontes de prova”, pois embora possam parecer terminologias análogas, as mesmas não se confundem.
Por “fontes de prova”, deve-se entender todos os objetos e pessoas dos quais se consegue extrair a prova. Uma vez identificadas estas “fontes de prova”, as mesmas são introduzidas no processo através dos “meios de prova” que se desenvolvem na fase judicial, sob o crivo dos princípios do contraditório e da ampla defesa. No que pertine aos “meios de obtenção de prova”, também denominados de “meios de investigação” ou “procedimentos investigatórios”, o mesmo apresenta como características o fato de desenvolver-se, em regra, fora do processo, e possuírem o atributo da surpresa e da não comunicação ao investigado.
Servem para identificar “fontes de prova” até então desconhecidas.
Na lição de Badaró (Processo Penal. Rio de Janeiro. Campus: Elsevier, 2012, p. 270):
“Enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (p. ex., o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (p. ex.: uma busca e apreensão) são instrumentos para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (p. ex.: um extrato bancário [documento] encontrado em uma busca e apreensão domiciliar).
Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos.”
III - OS REQUISITOS
O instituto da delação premiada se perfaz quando o agente colabora de forma voluntária e efetiva com a investigação e com o processo penal. Seu testemunho deve vir acompanhado da admissão de culpa e servir para a identificação dos demais coautores ou partícipes, e para esclarecimento acerca das infrações penais apuradas.
Recentemente, a matéria foi tratada na Lei que trata do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, Lei nº 12.529/2011, no artigo 86. A delação premiada foi objeto ainda da Lei nº 9.807/99 (artigo 14) e da Lei de Drogas, Lei nº 11.343/06, artigo 41.
O artigo 4º, parágrafo 5º, da Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), estabelece que, se a delação for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida pela metade ou será admitida a progressão imediata de regime. Contudo, não há a possibilidade de perdão judicial que existe para contribuições no começo das investigações.
De acordo com o professor de Processo Penal da USP, Gustavo Henrique Badaró, não há limite temporal para colaborar com a Justiça. Isso pode ser feito inclusive após o trânsito em julgado da condenação.
Mas a delação premiada não pode ser o único fundamento para uma eventual denúncia. A delação premiada deve ser corroborada com outros meios de prova.
O acordo de colaboração contém a enumeração de algumas obrigações dos criminosos, como a entrega de uma lista com os nomes de pessoas que foram beneficiadas pelos crimes, mas contém também este compromisso expresso assumido pelo chefe do Parquet: “o benefício legal do não oferecimento de denúncia”, como está expresso na cláusula 4ª. do acordo de colaboração. Assim, os criminosos não serão sequer enquadrados como réus em processo criminal, podendo assim fazer a prova de bons antecedentes.
Para dar a aparência de legalidade a esse extraordinário favor, é indicado o artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 12850, de 2013, que introduziu no sistema jurídico brasileiro a colaboração premiada.
Determina o artigo 1º, parágrafo 5º, da Lei 12.683, o que segue:
- § 5o - A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.”
O parágrafo quinto do artigo 1º da Lei 9.613/98 foi alterado pela Lei 12.683/12, com o objetivo de ampliar as hipóteses de ocorrência da chamada delação premiada. Àquele que colaborar espontaneamente com as investigações e prestar esclarecimentos que auxiliem na apuração dos fatos, na identificação dos agentes da lavagem do dinheiro ou na localização dos bens, será beneficiado com a redução da pena, sua extinção ou substituição por restritiva de direitos.
O dispositivo, como se sabe, trata da colaboração espontânea nos crimes de lavagem de dinheiro. Estabelece os seus requisitos e consequências jurídicas, com relação à pena a ser aplicada, até admitindo a não aplicação da pena.
Conforme legislação vigente em nosso país que trata da delação premiada, há requisitos que devem ser atendidos quando da aplicação do benefício ao delator, seja para a concessão da redução da pena de um terço a dois terços, seja para o perdão judicial. No que diz respeito à redução de pena, o legislador deixou claros os requisitos que, caso sejam atendidos, poderão fazer com o que delator seja agraciado com esse instituto: a) se, além de voluntária, foi espontânea a delação; b) se todos os integrantes envolvidos foram encontrados e, consequentemente, processados; c) se a recuperação do produto foi possível; d) se a vítima foi encontrada.
No que respeita à delação premiada, deve-se atentar para os critérios considerados pelo juiz ao aplicar o perdão judicial e a redução de pena, fundando-se na avaliação do grau de reprovabilidade da conduta do agente.
O ato de delação há de ser espontâneo, pois não pode ser um ato provocado por terceiro.
Disseram Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini (Lavagem de dinheiro, 2ª edição, pág. 172), que a lei não estabeleceu, entre as frações variáveis de 1/3 a 2/3 de redução da pena, qual o critério a ser seguido pelo julgador para aplicar a redução mínima ou mesmo um patamar intermediário. O critério a ser seguido deverá, sem dúvida, ser a eficácia da delação, seja em termos de atingimento das finalidades previstas, na lei, seja em relação ao conjunto de elementos que o delator forneça para confirmar as suas declarações.
Ainda, aludem Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini (obra citada, pág. 173), processualmente, que a delação – independentemente de ser premiada ou não – ou o chamamento do corréu, consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa.
Prevalece o entendimento de que, na delação ou chamamento do corréu, na parte em que o acusado reconhece que praticou o delito, há simples confissão; já ao atribuir o cometimento do crime a outra pessoa, o delator age como se fosse testemunha, tendo o ato nessa parte, natureza de prova testemunhal, como afirmou Adauto Alonso Suannes (O interrogatório judicial e o artigo 153, §§ 15 e 16 da Constituição Federal, Revista dos Tribunais, n. 572, junho de 1983, pág. 289).
Deverá a delação ser produzida em contraditório (artigo 5º, LC, combinado com o artigo 155, caput, CPP).
IV – A EVASÃO DE DIVISAS
Ademais, os termos da delação deverão levar à investigação com relação à evasão de divisas.
O artigo 22 da Lei 7.492/86, a chamada ¨lei dos crimes do colarinho branco¨, crimes contra o sistema financeiro nacional, prescreve que é crime efetuar operação de câmbio não autorizado, com o fim de promover evasão de divisas do País.
A pena prevista é de reclusão de 2(dois) anos a 6(seis) anos e multa. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo artigo de lei determina que incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.
Estamos diante de normas penais em branco, que se complementam com ¨operação de câmbio não autorizada¨, ¨saída de moeda ou divisa para o exterior sem autorização legal¨ ou pela manutenção de depósitos não declarados à repartição federal competente.
A norma editada no bojo da Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, representou, à época, algo novo no direito penal brasileiro.
A conduta prevista no artigo 22, caput, é comissiva e pressupõe um resultado material que advém da conduta.
O elemento subjetivo exige dolo, elemento do tipo, onde deve ser comprovada a intenção de remeter divisas ao exterior(dolo específico). Por sua vez, no parágrafo único do artigo 22, há previsão de 2 (duas) modalidades de condutas: promover a saída da moeda ou divisa e manter depósitos não declarados. Aqui o dolo é genérico.
Na segunda modalidade, o crime é permanente, pois é necessária a conduta reiterada. Há um momento consumativo inicial em que é feito o depósito, um momento consumativo final, que se traduz na cessação do depósito e um período consumativo intermediário, que é contínuo e ininterrupto.
O crime é material e apenas se consuma com a efetiva comprovação de saída da moeda ou divisas, sem o conhecimento das autoridades monetárias.
V – CONCLUSÕES
As declarações feitas pelo acusado devem ser reiteradas no curso do processo, a fim de se preservar o contraditório, considerando-se que aquele tem direito aos benefícios estabelecidos em lei.
Acrescente-se a significativa importância que é objeto do acordo de delação premiada envolvendo produto do crime.