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A punibilidade do crime de aborto em todos os casos e a fixação de alimentos para criança oriunda de crime de estupro

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10/09/2020 às 09:00
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3 DA POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL-ALIMENTÍCIA DO ESTADO BRASILEIRO  

Preliminarmente, a solução proposta neste trabalho não se assemelha ao projeto de lei que institui o benefício denominado “bolsa-estupro”, citado recentemente pela ministra dos Direitos Humanos Damares Alves13, tendo em vista que o valor oferecido – R$ 85,00 (oitenta e cinco reais) mensais14 – é irrisório se comparado aos danos causados à vítima e claramente insuficiente para a manutenção de um filho de forma digna.  

Como forma de amenizar os danos causados às mulheres compelidas a gerar um filho oriundo de crime cometido por indivíduo que, na maioria dos casos, sequer é identificado15, o Estado deverá ser civilmente responsabilizado.  

Diz o art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente: 

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. 

Levando-se em conta que o Estado, através de ato legislativo, impediu que a mãe tivesse direito à interrupção da gravidez, este deverá ser responsabilizado pelos danos causados. Dispõem os arts. 186 e 927 do Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 

De acordo com Hélio Helene (2011, p. 137): 

(...) o Estado é civilmente responsável por atos desempenhados pelos legisladores, na função específica de legislar, quando tais atos causarem danos aos particulares, quer se trate de dispositivo inconstitucional ou constitucional.

Nesse sentido, também dispõe Sandro Pinheiro de Albuquerque (2015): 

(...) à luz dos princípios constitucionais garantidores da dignidade da pessoa humana, das normas de direito público e de direito privado, bem como das novas orientações adotadas na jurisprudência dos tribunais superiores, conclui-se pela responsabilização objetiva do ente federado Estado, condenando-o subsidiariamente ao pai da criança, a prestar alimentos nos casos em que, em razão de sua omissão na garantia da segurança pública, for concebida uma criança decorrente do crime de estupro, o qual não ocorreria se o Estado tivesse desempenhado suas funções com eficiência, nos termos da lei. 

Além do mais, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao fixar o valor da prestação alimentícia, deve ser levado em conta o binômio necessidade do alimentando x possibilidade do alimentante: 

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE ALIMENTOS. FILHA E EX-COMPANHEIRA. MAJORAÇÃO DA PENSÃO ALIMENTÍCIA PARA FILHA E EX-COMPANHEIRA. BINÔMIO POSSIBILIDADE X NECESSIDADE.  

A fixação da verba alimentar deve respeitar a proporcionalidade entre as necessidades de quem reclama o sustento e as possibilidades de quem vai arcar com a obrigação. É a aplicação do binômio necessidade x possibilidade, cujo emprego depende dos elementos trazidos aos autos para verificar-se o caso concreto, de modo a atender às necessidades do alimentando sem onerar demasiadamente o alimentante, consoante artigo 1.694, § 1º, do Código Civil (Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada). 

Provimento parcial do recurso. (e-DOC 9, p. 139). 

Sendo assim, o governo seria obrigado tanto a dar assistência médica e psicológica às mulheres gestantes em decorrência do estupro, quanto a garantir que o filho, totalmente isento de culpa pelo crime cometido por seu genitor, tenha um crescimento e vida dignos.  


4 CONCLUSÃO 

Diante do exposto, é possível concluir que a aprovação da referida PEC causará um enorme impacto na sociedade brasileira, não somente nas esferas penal e cível, mas também no campo do direito de família.  

Ao não cumprir seu dever constitucional de promover a segurança, o Estado brasileiro prejudica, todos os dias, milhares de cidadãs que têm sua liberdade sexual violada, porém, acrescentando os termos da Proposta ao texto constitucional, os danos causados às vítimas que engravidarem serão irreversíveis.  

Revogando as exceções de punibilidade previstas no Código Penal Brasileiro, mulheres estupradas serão compelidas a gerar e parir um filho fruto de violência, gerado sem seu consentimento. Caso não queiram doá-lo para adoção, também terão para sempre o dever de cuidar e educar essa criança. Na hipótese de não quererem prosseguir com a gestação, serão tratadas como criminosas pelo ordenamento jurídico. 

Com a ascensão do conservadorismo cristão no Poder Legislativo e Executivo no novo governo, há risco inerente de retrocesso social com a aprovação da PEC 181/2015. Retirando o direito ao aborto legal e seguro através de ato legislativo, o Estado brasileiro será o principal responsável por diminuir os danos causados. 

Uma vez que o Estado deseja proteger de forma absoluta o direito à vida de um ser que ainda está em desenvolvimento intrauterino, isso custará os direitos sexuais e reprodutivos atualmente garantidos às mulheres. Para garantir o bem-estar, dignidade e educação à criança oriunda de crime de estupro, a mulher terá todos os seus sonhos e planos de vida interrompidos em decorrência da violência sexual que sofreu. O Estado deveria lhe conceder meios para realizar aborto seguro; todavia, almeja impedir que a mulher exerça seu direito à liberdade em defesa de valores religiosos ultrapassados e que deveriam ser válidos somente na esfera individual, visto que a Constituição é clara no tocante à laicidade do Estado brasileiro. 

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Em caso de aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 181/2015, a mulher grávida em decorrência de um estupro não será necessariamente obrigada a permanecer com o bebê, podendo doar a criança para adoção nos termos do ECA. Entretanto, há possibilidade de esta mulher criar um laço afetivo com o recém-nascido e desconsiderar a entrega para adoção.  

Nesse caso, o Estado terá responsabilidade civil-alimentícia. Tal responsabilização poderá ser pleiteada judicialmente ou, para uma melhor aplicação, propõe-se a criação de um programa governamental para conceder assistência médica, financeira e psicológica às mães e aos filhos oriundos do crime, de acordo com a necessidade destes, a ser avaliada caso a caso.  


REFERÊNCIAS 

ALBUQUERQUE, Sandro Pinheiro de. Responsabilidade civil-alimentícia do estado aos nascidos de relação decorrente de crime de estupro: análise da responsabilidade civil do estado perante a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVIII, n. 137, jun 2015. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14941>. Acesso em 06 jun. 2018. 

BASSUMA, Luiz; MARTINI, Miguel. Projeto de Lei nº 478 de 2007. Dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345103>. Acesso em 26 mar. 2019.  

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_______, Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 26 fev. 2019. 

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HELENE, Hélio. Responsabilidade do Estado por ato legislativo; atualizado por João Ibaixe Jr. São Paulo: Saraiva, 2011. 

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Sobre a autora
Marcelly Vasconcelos

Bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELOS, Marcelly. A punibilidade do crime de aborto em todos os casos e a fixação de alimentos para criança oriunda de crime de estupro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6280, 10 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85233. Acesso em: 26 abr. 2024.

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