Capa da publicação Delinquência empresarial e prescrição nos crimes ambientais: proteção ou desproteção?
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Delinquência empresarial e prescrição das sanções penais cominadas aos crimes ambientais previstos na Lei nº 9.605/98.

Proteção ou (des)proteção do ambiente?

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30/10/2020 às 19:40
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2. Delinquência contra o Ambiente e Prescrição das Penas Cominadas à Pessoa Jurídica por Crimes Definidos na LCA

A LCA prescreve que as penas aplicáveis, isolada, cumulativa ou alternativamente, à pessoa jurídica são a multa, as restritivas de direitos e prestação de serviços à comunidade (art. 21, incisos I a III). Tratando-se de sanção específica para o controle penal das ações criminosas cometidas por uma empresa, é evidente que as penas restritivas adotadas pela LCA não poderiam ser as mesmas do Código Penal, destinadas a reprimir a pessoa física.[14] Por sua vez, a prestação de serviços à comunidade, também, se desdobra em formas distintas daquelas definidas na legislação codificada.[15]

Fica evidenciado que a LCA disciplinou, de forma própria, as penas alternativas. Diferentemente, do que ocorre no âmbito do Código Penal, aqui, essas penas não são substitutivas nem estão vinculadas ao limite máximo de quatro anos da pena privativa de liberdade aplicada na sentença, como prevê a lei codificada. É preciso assinalar, no entanto, que essas sanções alternativas não se encontram prescritas na parte sancionatória de cada tipo penal ambiental, como ocorre no caso da pena pecuniária.

Da mesma forma, a pena de multa, quantia paga pelo condenado ao Estado,[16] poderá ser aplicada, isolada, cumulativa ou alternativamente a uma empresa, com uma ou mais das penas alternativas à prisão. Além disso, a sanção pecuniária vem cominada, expressamente, em cada dispositivo incriminador dos crimes ambientais ali descritos, ao lado da pena privativa de liberdade.[17] Mas, é evidente que esse acúmulo ou alternatividade da resposta punitiva só se destina aos crimes cometidos pela pessoa física, pois só esta pode ser sancionada com uma pena reclusiva, que não pode ser aplicada ao ente coletivo.[18]

No entanto, a opção pela sanção pecuniária para sancionar condutas criminosas praticadas pela pessoa jurídica somente terá sentido se, efetivamente, a pena de multa for aplicada com celeridade e em valores que correspondam à intensidade do dano causado ao ambiente. Infelizmente, estudos indicam que a realidade está muito distante de se alcançar essa desejável efetividade da LCA, na sua relevante função de defesa do ambiente, por meio do controle judicial-penal.[19]

Assim, com base no art. 21, o juiz dispõe do poder discricionário para examinar as circunstâncias em que o crime foi praticado, a maior ou menor intensidade do dano ambiental para, então, aplicar qualquer uma das penas ali descritas - multa, restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade. Essa disposição geral indica que, para sancionar o ente jurídico infrator, o juiz pode aplicar só a pena de multa, só uma das penas restritivas de direitos ou só a prestação de serviços, de forma isolada. Sempre que entender conveniente e de forma justificada, pode aplicá-las cumulativamente. Essa alternativa sancionatória vale para qualquer um dos crimes descritos na LCA praticado por uma pessoa jurídica.[20]

2.1 Crimes Ambientais Cometidos por Pessoa Jurídica  e Lacuna da LCA em Matéria de Prazo Prescricional

Já mencionamos que a LCA deixou de prescrever regras próprias sobre a prescrição das penas cominadas aos crimes ambientais imputados à pessoa jurídica. Na ausência de previsão em lei penal especial, a doutrina se socorre do princípio da convivência das esferas autônomas, para dirimir o conflito ou suprir o vazio normativo. Segundo este princípio, as regras gerais do Código Penal convivem em sintonia com as regras previstas na legislação especial.[21]

No entanto, melhor teria sido evitar essa lacuna que, como veremos a seguir, tem causado desnecessária divergência jurisprudencial. Para tanto, bastaria a lei dispor que a prescrição das penas cominadas ao crime ambiental praticado por pessoa jurídica, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada no respectivo tipo penal, mesmo que a empresa não tenha sido processada ou, ao final, não tenha sido condenada.[22]

A nosso ver, outra opção seria a de a LCA prescrever prazos próprios para a prescrição das penas dos crimes ambientais cometidos por pessoa jurídica, deixando a pessoa física sujeita às regras do Código Penal.

Da mesma forma, a LCA optou por remeter ao Código Penal brasileiro o critério do cálculo para aplicação da pena de multa por crime ambiental cometido pela pessoa jurídica. Também aqui, a Lei não foi feliz, porque os valores da pena pecuniária previstos no CP foram concebidos para punir a pessoa física e não pessoas jurídicas proprietárias de imensos patrimônios, capazes de causar danos ambientais incalculáveis. Essa afirmação vale mesmo diante do dispositivo da LCA, que autoriza triplicar o valor máximo da pena pecuniária cominada na lei codificada.[23]

De qualquer forma, no caso de condenação de empresa infratora da lei ambiental, o princípio da convivência das esferas autônomas determina que a aplicação e o cálculo da pena de multa obedecerão às regras e valores prescritos no Código Penal. Essa operação judicial, que pode parecer de fácil observância, tem gerado divergência e desencontros na doutrina e na jurisprudência, no momento em que o magistrado é chamado a examinar a questão da extinção da punibilidade pela prescrição das penas aplicadas à pessoa jurídica.

A partir dessas considerações gerais e introdutórias, examinaremos as hipóteses concretas em que o juiz enfrenta a questão da prescrição da pena de multa cominada ao crime ambiental praticado por pessoa jurídica.


3. Prazo de Dois Anos para as Penas Cominadas aos Crimes Ambientais Praticados por Pessoa Jurídica (Art. 114, inciso I, do Código Penal)

Diante da lacuna verificada no texto da LCA, surgiram duas alternativas interpretativas para enfrentar a questão da extinção da punibilidade pela prescrição das penas ali cominadas, com o fim de estabelecer o controle penal da delinquência empresarial. Recorrendo à analogia, uma primeira corrente optou por eleger o prazo prescricional de dois anos, estabelecido no art. 114, inciso I, do CP. Dessa forma, o entendimento é de que, transcorrido esse exíguo prazo, prescrita estaria a pretensão punitiva estatal para sancionar o ente jurídico causador de agressão ao ambiente.

O dispositivo se refere à hipótese em que a pena de multa for “a única cominada ou aplicada”.[24] Porém, no âmbito da LCA, as penas cominadas à pessoa jurídica - multa, restritivas ou prestação de serviços - são autônomas, de caráter geral e podem ser aplicadas, isoladamente ou em conjunto entre elas. Por isso, em face da lacuna da lei, a corrente hermenêutica aqui comentada considera que, em se tratando de uma ou mais penas cominadas ou aplicadas à pessoa jurídica, a questão relativa a eventual prazo prescricional deve ser resolvida, com base no inciso I, do art. 114, do Código Penal.[25]

Nessa linha de pensamento, o TJRS, reconheceu, por analogia, como prazo de prescrição das penas restritivas de direitos aplicáveis à pessoa jurídica, o mesmo prazo da pena de multa, prevista no art. 114, I do Código Penal. Com a denúncia apenas recebida, sem sentença condenatória de primeiro grau, com aplicação de pena de multa ou restritiva de direitos, decorreram mais de dois anos, na data de julgamento pelo referido tribunal. Segundo o Relator, a demora em proferir sentença penal condenatória, justificava o decreto de prescrição.

Consta do acórdão que a pena restritiva de direito aplicável à pessoa jurídica, tem caráter autônomo e não substitutivo da pena privativa de liberdade. Além disso, diz o julgado que a LCA  “não traça qualquer parâmetro que possa servir de base ao cálculo da prescrição razão pela qual não incidem sobre essas sanções alternativas cominadas à pessoa jurídica as mesmas regras do Código Penal!”. Concluiu o acórdão que, “[...] ante o vácuo legislativo, a solução mais razoável consiste em equiparar, para efeito de prescrição, as penas restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade à multa. Por este motivo, observado o prazo prescricional de 2 (dois) anos, os fatos, bem ou mal, estão prescritos”.[26]

A linha jurisprudencial acima mencionada, acabou respaldada pelo STJ, que aplicou o prazo prescricional do art. 114, I, do Código Penal, para decretar a extinção da punibilidade de uma empresa, única denunciada pela prática do crime ambiental definido no art. 38, da Lei 9.605/98 e condenada à pena de serviços à comunidade, no valor de R$ 30.000,00, em favor de entidade ambiental legalmente credenciada.[27] Segundo a Ministra Laurita Vaz, como não houve condenação de pessoa física à pena privativa de liberdade, não haveria como balizar o prazo prescricional da pena de prestação de serviços à comunidade, na forma prevista no  parágrafo único, do art. 109 do CP.[28] Assim, ficava justificado o decreto extintivo da punibilidade.[29]

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Na esteira desse entendimento, o TJSP igualmente decidiu que, no caso de a pessoa jurídica ser a única denunciada na ação penal, as penas previstas para sanção da pessoa jurídica, são autônomas, não havendo como vincular o prazo prescricional ao tempo da pena privativa de liberdade, concebida para punir pessoa física. Decidiu o Tribunal que as penas previstas para os entes morais devem gozar de prazos prescricionais próprios. Diante da omissão da LCA, não é admissível aplicar-lhes os prazos previstos na Parte Geral do Código Penal, destinados às pessoas físicas.

No acórdão, a corte reconheceu que existe previsão na lei codificada quanto ao lapso temporal da pena de multa e que, desse modo, seria “mais adequada a equiparação do prazo prescricional da pena restritiva ao da pena de multa, seja por inexistência de previsão legal a autorizar a utilização do prazo da pena privativa de liberdade, seja pela própria natureza da pena, seja pela vedação da utilização da analogia in malam partem”. E assim o TJSP adotou, por analogia, o prazo benéfico de apenas dois anos, estabelecido no art. 114, I do CP.[30]

3.1 Doutrina

Não é só a jurisprudência. Também, a doutrina advoga a aplicação do prazo de dois anos, estabelecido no art. 114, I, do CP, como solução para enfrentar a lacuna deixada pela LCA, que é completamente omissa no tocante à prescrição das  penas cominadas aos crimes praticados pela pessoa jurídica. Sejam elas a pena pecuniária ou restritivas de direitos. É o que ponderou Rodrigo Muniz dos Santos, ao escrever que “as penas cominadas abstratamente para as pessoas jurídicas, independentemente daquelas estabelecidas, nas mesmas hipóteses, para as pessoas físicas, têm seus prazos prescricionais fixados em 02 (dois) anos, por aplicação analógica, in bonam partem, do art. 114, I, do Código Penal”.[31] 

Nessa mesma linha interpretativa, Rodrigo Iennaco sustentou que o único referencial para prescrição de crime ambiental imputado à pessoa jurídica é o do art. 114, I, do Código Penal, porque é a única disposição expressa a respeito da prescrição. “Entendimento diverso remeteria o prazo prescricional, sem respaldo legal explícito, ao arbítrio do juiz, que elevaria livremente o prazo prescricional ao prever sanções por período demasiadamente elástico, unicamente para fugir do prazo de prescrição exíguo da multa”.[32] 

Discorrendo sobre o tema, Juliano Breda entende que a LCA “deveria ter expressamente mencionado, em cada tipo penal, a sanção aplicável à pessoa jurídica, como ocorre em relação às pessoas físicas”. Conclui que, diante da omissão legal, não é possível “o recurso à analogia, dada a vedação de seu uso no domínio das sanções penais”.[33]

3.2 Tribunal de Justiça de Santa Catarina e Prescrição dos Crimes Cometidos Pela Pessoa Jurídica

Diante do exíguo prazo prescricional de dois anos, a jurisprudência não poderia mostrar outro resultado que não o alto índice de prescrições de crimes ambientais cometidos pelas pessoas jurídicas. É o que ficou evidenciado das decisões e da doutrina que acabamos de examinar, e, principalmente, da pesquisa efetuada em julgados na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina - TJSC, durante um  período, iniciado pouco tempo depois da vigência da Lei n. 9.605/98, até recentemente.[34]

A pesquisa identificou um total de 124 recursos sobre crimes ambientais praticados por empresas. No período pesquisado (1998-2018), o tribunal catarinense proferiu ou manteve apenas 25 decisões condenatórias - 19 à pena de multa e 06 à pena restritiva de direitos e pena de serviços à comunidade.

Por outro lado, foram prolatados 28 acórdãos reconhecendo a extinção da punibilidade pela incidência da prescrição, em razão da aplicação do art. 114, I, do Código Penal e de seu exíguo prazo de dois anos previsto à aplicação isolada da pena de multa.[35] As demais 71 decisões, envolveram questões processuais penais em geral e absolvição da pessoa jurídica.

Como se vê, a cada condenação proferida pelo TJSC, ocorreu mais de um caso de prescrição penal em favor da pessoa jurídica e em desfavor da proteção penal ambiental eficiente, mitigando ou tornando inócua a regra da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil. Os números demonstram, que a grande incidência de casos de prescrição penal deve-se à aplicação isolada da pena de multa à pessoa jurídica e à opção preferencial do judiciário catarinense pela pena da multa criminal para punir a pessoa jurídica, no enfrentamento da criminalidade empresarial ambiental.

Parece-nos que, diante da omissão da LCA, o aplicador da lei acabou por utilizar a solução de maior simplicidade para resolver a questão da prescrição, em face dos crimes ambientais imputados ao ente jurídico, tornando ineficaz a função de controle penal das ações contra o ambiente.

No entanto, há uma outra alternativa hermenêutica para suprir essa lacuna da LCA, que os adeptos da corrente doutrinária e jurisprudencial acima examinada não admitiram, num primeiro momento, aplicar, na solução do prazo prescricional dos crimes ambientais praticados por um ente jurídico.

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Sobre o autor
Rodrigo José Leal

Professor de Direito Penal da Universidade Regional de Blumenau - FURB e na Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Doutor em Direito pela Universidade de Alicante/Espanha. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Fundação Universidade Regional de Blumenau - FURB. Graduado pela Furb.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Rodrigo José. Delinquência empresarial e prescrição das sanções penais cominadas aos crimes ambientais previstos na Lei nº 9.605/98.: Proteção ou (des)proteção do ambiente? . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6330, 30 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86322. Acesso em: 25 abr. 2024.

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