3. Prazo de Dois Anos para as Penas Cominadas aos Crimes Ambientais Praticados por Pessoa Jurídica (Art. 114, inciso I, do Código Penal)
Diante da lacuna verificada no texto da LCA, surgiram duas alternativas interpretativas para enfrentar a questão da extinção da punibilidade pela prescrição das penas ali cominadas, com o fim de estabelecer o controle penal da delinquência empresarial. Recorrendo à analogia, uma primeira corrente optou por eleger o prazo prescricional de dois anos, estabelecido no art. 114, inciso I, do CP. Dessa forma, o entendimento é de que, transcorrido esse exíguo prazo, prescrita estaria a pretensão punitiva estatal para sancionar o ente jurídico causador de agressão ao ambiente.
O dispositivo se refere à hipótese em que a pena de multa for “a única cominada ou aplicada”.[24] Porém, no âmbito da LCA, as penas cominadas à pessoa jurídica - multa, restritivas ou prestação de serviços - são autônomas, de caráter geral e podem ser aplicadas, isoladamente ou em conjunto entre elas. Por isso, em face da lacuna da lei, a corrente hermenêutica aqui comentada considera que, em se tratando de uma ou mais penas cominadas ou aplicadas à pessoa jurídica, a questão relativa a eventual prazo prescricional deve ser resolvida, com base no inciso I, do art. 114, do Código Penal.[25]
Nessa linha de pensamento, o TJRS, reconheceu, por analogia, como prazo de prescrição das penas restritivas de direitos aplicáveis à pessoa jurídica, o mesmo prazo da pena de multa, prevista no art. 114, I do Código Penal. Com a denúncia apenas recebida, sem sentença condenatória de primeiro grau, com aplicação de pena de multa ou restritiva de direitos, decorreram mais de dois anos, na data de julgamento pelo referido tribunal. Segundo o Relator, a demora em proferir sentença penal condenatória, justificava o decreto de prescrição.
Consta do acórdão que a pena restritiva de direito aplicável à pessoa jurídica, tem caráter autônomo e não substitutivo da pena privativa de liberdade. Além disso, diz o julgado que a LCA “não traça qualquer parâmetro que possa servir de base ao cálculo da prescrição razão pela qual não incidem sobre essas sanções alternativas cominadas à pessoa jurídica as mesmas regras do Código Penal!”. Concluiu o acórdão que, “[...] ante o vácuo legislativo, a solução mais razoável consiste em equiparar, para efeito de prescrição, as penas restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade à multa. Por este motivo, observado o prazo prescricional de 2 (dois) anos, os fatos, bem ou mal, estão prescritos”.[26]
A linha jurisprudencial acima mencionada, acabou respaldada pelo STJ, que aplicou o prazo prescricional do art. 114, I, do Código Penal, para decretar a extinção da punibilidade de uma empresa, única denunciada pela prática do crime ambiental definido no art. 38, da Lei 9.605/98 e condenada à pena de serviços à comunidade, no valor de R$ 30.000,00, em favor de entidade ambiental legalmente credenciada.[27] Segundo a Ministra Laurita Vaz, como não houve condenação de pessoa física à pena privativa de liberdade, não haveria como balizar o prazo prescricional da pena de prestação de serviços à comunidade, na forma prevista no parágrafo único, do art. 109 do CP.[28] Assim, ficava justificado o decreto extintivo da punibilidade.[29]
Na esteira desse entendimento, o TJSP igualmente decidiu que, no caso de a pessoa jurídica ser a única denunciada na ação penal, as penas previstas para sanção da pessoa jurídica, são autônomas, não havendo como vincular o prazo prescricional ao tempo da pena privativa de liberdade, concebida para punir pessoa física. Decidiu o Tribunal que as penas previstas para os entes morais devem gozar de prazos prescricionais próprios. Diante da omissão da LCA, não é admissível aplicar-lhes os prazos previstos na Parte Geral do Código Penal, destinados às pessoas físicas.
No acórdão, a corte reconheceu que existe previsão na lei codificada quanto ao lapso temporal da pena de multa e que, desse modo, seria “mais adequada a equiparação do prazo prescricional da pena restritiva ao da pena de multa, seja por inexistência de previsão legal a autorizar a utilização do prazo da pena privativa de liberdade, seja pela própria natureza da pena, seja pela vedação da utilização da analogia in malam partem”. E assim o TJSP adotou, por analogia, o prazo benéfico de apenas dois anos, estabelecido no art. 114, I do CP.[30]
3.1 Doutrina
Não é só a jurisprudência. Também, a doutrina advoga a aplicação do prazo de dois anos, estabelecido no art. 114, I, do CP, como solução para enfrentar a lacuna deixada pela LCA, que é completamente omissa no tocante à prescrição das penas cominadas aos crimes praticados pela pessoa jurídica. Sejam elas a pena pecuniária ou restritivas de direitos. É o que ponderou Rodrigo Muniz dos Santos, ao escrever que “as penas cominadas abstratamente para as pessoas jurídicas, independentemente daquelas estabelecidas, nas mesmas hipóteses, para as pessoas físicas, têm seus prazos prescricionais fixados em 02 (dois) anos, por aplicação analógica, in bonam partem, do art. 114, I, do Código Penal”.[31]
Nessa mesma linha interpretativa, Rodrigo Iennaco sustentou que o único referencial para prescrição de crime ambiental imputado à pessoa jurídica é o do art. 114, I, do Código Penal, porque é a única disposição expressa a respeito da prescrição. “Entendimento diverso remeteria o prazo prescricional, sem respaldo legal explícito, ao arbítrio do juiz, que elevaria livremente o prazo prescricional ao prever sanções por período demasiadamente elástico, unicamente para fugir do prazo de prescrição exíguo da multa”.[32]
Discorrendo sobre o tema, Juliano Breda entende que a LCA “deveria ter expressamente mencionado, em cada tipo penal, a sanção aplicável à pessoa jurídica, como ocorre em relação às pessoas físicas”. Conclui que, diante da omissão legal, não é possível “o recurso à analogia, dada a vedação de seu uso no domínio das sanções penais”.[33]
3.2 Tribunal de Justiça de Santa Catarina e Prescrição dos Crimes Cometidos Pela Pessoa Jurídica
Diante do exíguo prazo prescricional de dois anos, a jurisprudência não poderia mostrar outro resultado que não o alto índice de prescrições de crimes ambientais cometidos pelas pessoas jurídicas. É o que ficou evidenciado das decisões e da doutrina que acabamos de examinar, e, principalmente, da pesquisa efetuada em julgados na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina - TJSC, durante um período, iniciado pouco tempo depois da vigência da Lei n. 9.605/98, até recentemente.[34]
A pesquisa identificou um total de 124 recursos sobre crimes ambientais praticados por empresas. No período pesquisado (1998-2018), o tribunal catarinense proferiu ou manteve apenas 25 decisões condenatórias - 19 à pena de multa e 06 à pena restritiva de direitos e pena de serviços à comunidade.
Por outro lado, foram prolatados 28 acórdãos reconhecendo a extinção da punibilidade pela incidência da prescrição, em razão da aplicação do art. 114, I, do Código Penal e de seu exíguo prazo de dois anos previsto à aplicação isolada da pena de multa.[35] As demais 71 decisões, envolveram questões processuais penais em geral e absolvição da pessoa jurídica.
Como se vê, a cada condenação proferida pelo TJSC, ocorreu mais de um caso de prescrição penal em favor da pessoa jurídica e em desfavor da proteção penal ambiental eficiente, mitigando ou tornando inócua a regra da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil. Os números demonstram, que a grande incidência de casos de prescrição penal deve-se à aplicação isolada da pena de multa à pessoa jurídica e à opção preferencial do judiciário catarinense pela pena da multa criminal para punir a pessoa jurídica, no enfrentamento da criminalidade empresarial ambiental.
Parece-nos que, diante da omissão da LCA, o aplicador da lei acabou por utilizar a solução de maior simplicidade para resolver a questão da prescrição, em face dos crimes ambientais imputados ao ente jurídico, tornando ineficaz a função de controle penal das ações contra o ambiente.
No entanto, há uma outra alternativa hermenêutica para suprir essa lacuna da LCA, que os adeptos da corrente doutrinária e jurisprudencial acima examinada não admitiram, num primeiro momento, aplicar, na solução do prazo prescricional dos crimes ambientais praticados por um ente jurídico.
4. Prescrição pelo Máximo da Pena Privativa de Liberdade Cominada aos Crimes Ambientais Praticados por uma Pessoa Jurídica (Arts. 114, inciso II e 109, Parágrafo Único, do Código Penal)
4.1. Um Outro Olhar Interpretativo sobre a Matéria
Não obstante a omissão da LCA, o princípio da convivência das esferas autônomas, conforme vimos acima,[36] autoriza a buscar, nas regras do Código Penal, uma outra alternativa para resolver a questão do prazo prescricional aplicável aos crimes e penas descritos no texto da lei repressiva especial.
No caso da pena de multa, a solução encontra-se expressamente estabelecida, na dicção do art. 114, inciso II: no mesmo prazo estabelecido para prescrição da pena privativa de liberdade, quando a multa for alternativa ou cumulativamente cominada ou cumulativamente aplicada.
É preciso assinalar que este dispositivo refere-se ao "mesmo prazo da pena privativa de liberdade", que deve ser entendido como um dos prazos previstos no art. 109 e seus incisos, do Código Penal. Devemos lembrar, conforme assinalamos acima,[37] que a pena pecuniária é cominada, ao lado da pena privativa de liberdade, na parte sancionatória de quase todos os crimes ambientais. Isso, seria suficiente para se afirmar que, no âmbito na delinquência empresarial contra o ambiente, a pena pecuniária é sempre cominada de forma cumulativa. A nosso ver, no entanto, esse acúmulo destina-se à pessoa física porque, para a pessoa jurídica, já existe a regra geral que manda aplicar as penas de multa, restritivas e de prestação de serviços à comunidade, seja de forma isolada, alternativa ou cumulativamente. Portanto, as sanções aplicáveis à pessoa jurídica são completamente autônomas e suas existências não estão vinculadas à pena privativa de liberdade.
Dessa forma, o prazo prescricional de dois anos, quando a pena de multa for a única aplicada na sentença, estabelecido pelo inciso I, do citado art. 114, a nosso ver, não se aplica à pena pecuniária imposta à empresa infratora do ambiente. Neste caso, a sanção pecuniária é cominada de forma geral e cumulativa. É evidente que o acúmulo depende de decisão discricionária do magistrado, mas a condição de regra geral se mantém, conforme prescreve o art. 21, e seus incisos I a III, da LCA.[38] Assim, entendemos ser possível vincular o prazo de prescrição das penas cominadas aos crimes ambientais praticados por uma empresa, aos mesmos prazos estabelecidos no art. 109 e seus incisos do CP.
No caso das penas alternativas, essa possibilidade se torna ainda mais evidente, pois o parágrafo único, do art. 109, do Código Penal brasileiro dispõe, expressamente, que “Aplicam-se às penas restritivas de direito os mesmos prazos previstos para as privativas de liberdade". A dicção do dispositivo é clara e não deixa dúvida. As penas alternativas (restritivas de direitos e a prestação de serviço (esta última, no Código, também tratada como restritiva de direitos), cominadas à pessoa jurídica por crime ambiental, prescrevem nos prazos estabelecidos para as sanções reclusivas destinadas à repressão da pessoa física.
4.2 Jurisprudência por um Prazo Prescricional mais Rigoroso
Já, em 2002, o TRF da 4ª Região considerou como prazo prescricional da pena restritiva de direitos e da pena de multa, o tempo da pena privativa de liberdade cominada ou aplicada ao crime ambiental violado pela pessoa jurídica. A denúncia havia imputado, genericamente, a prática do crime de poluição descrito no caput, do art. 54, da Lei 9.605/98, a uma empresa, sem ter indicado, com a necessária precisão, qual o dispositivo efetivamente violado.[39]
No caso, ficou decidido que a incidência da prescrição só pode ocorrer com base na regra estabelecida no parágrafo único, do art. 109, do Código Penal, que manda aplicar "às penas restritivas de direito os mesmos prazos previstos para as privativas de liberdade”.[40] Não há dúvida de que essa interpretação judicial é mais gravosa, pois considera como prazo de prescrição da pena de multa e da pena restritiva de direitos, aplicáveis à pessoa jurídica, o mesmo prazo da pena privativa de liberdade prevista no Código Penal para repressão da pessoa física.
4.3 O Entendimento do STF sobre o Prazo Prescricional das Penas Aplicáveis à Pessoa Jurídica
Mais recentemente, essa linha jurisprudencial, mutatis mutandis, foi respaldada pelo STF, em único julgado que encontramos sobre o tema. A Corte decidiu, em 2016, que a prescrição das penas restritivas de direitos e de multa, aplicáveis à pessoa jurídica, ocorrerá no prazo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, exceto se a pena de multa for a única pena aplicada ou cominada, quando o prazo prescricional será o previsto no já citado art. 114, inc. I, do CP.[41] No caso, a pessoa jurídica tinha sido acusada como a única autora do crime ambiental de poluição, descrito no art. 54, § 1º, da Lei 9.605/1998, cuja pena é de detenção, de seis meses a um ano, e multa.
A empresa pleiteava o reconhecimento da prescrição, no prazo de dois anos, com base na jurisprudência então vigente, conforme examinamos acima.[42] A Corte, no entanto, negou provimento ao recurso para firmar o entendimento de que a prescrição, das penas restritivas de direitos e de multa aplicáveis à pessoa jurídica, ocorrerá no prazo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, na forma do citado art. 109, Parágrafo Único, do CP. Para o STF, a exceção fica por conta da pena de multa como única pena aplicada ou cominada, casos em que o prazo prescricional será de dois anos, nos termos do art. 114, inc. I, do CP.
Essa decisão do STF levou o STJ[43] e, também, o TJRS,[44] a modificarem suas posições sobre o tema aqui estudado. Assim, pode-se dizer que esta é a tendência atual da jurisprudência brasileira.
Com a decisão, o STF admite dois prazos para disciplinar os casos de prescrição das penas aplicáveis à pessoa jurídica. Um, para as penas alternativas em geral e, também, para a pena de multa, quando aplicada cumulativamente, com base no art. 109, § único e art. 114, inciso II, do CP. O outro prazo, seria o da prescrição em dois anos, quando a pena de multa for a única "aplicada ou cominada", nos termos do art. 114, inciso I, do CP.
Assim, pela decisão do STF, o prazo prescricional de dois anos, só ocorrerá quando a pena de multa for a única aplicada à pessoa jurídica, já que não há casos de ser a única cominada isoladamente. Isso, simplesmente porque, no âmbito da LCA, não há cominação na forma isolada para qualquer das penas destinadas à repressão da empresa infratora da lei ambiental. Ao contrário, nos termos do art. 21, da LCA,[45] todas as penas são cominadas de forma geral para serem aplicadas isoladamente, mas, também, de forma alternativa ou cumulativamente.
Conforme vimos acima, o prazo prescricional de dois anos é demasiadamente exíguo, principalmente, para processar e julgar em tempo tão reduzido, crimes de alta complexidade e de consequências tão danosas.[46] Daí, a necessidade de se estabelecer um prazo mais adequado à natureza dos crimes ambientais e do perfil jurídico e econômico da empresa que, a partir da LCA, passou a ser considerada como sujeito ativo de uma infração penal.