O tema “Violência de gênero”, atualmente, tem sido imensamente debatido tanto nos jornais, nas mídias sociais, no seio da própria sociedade e no meio político e judiciário. O objetivo parece ser o mesmo: encontrar soluções para coibir, ou mesmo eliminar, práticas deste tipo, especialmente as de violência sexual ou estupro praticado contra mulheres.
Observa-se, em todas as sociedades, um favorecimento do homem em detrimento da mulher, por vezes instrumentalizado pelas próprias leis, onde o próprio sistema cria mecanismos para promover a cultura do estupro, protegendo o estuprador e anulando os direitos das vítimas.
O próprio feminicídio é um reflexo da cultura machista introjetada no seio da sociedade, onde se pensa na mulher como coisa ou objeto com o simples papel de obediência e promoção da satisfação e bem-estar masculino, sendo merecedora de morte ao se insurgir contra o seu “papel” de obediência cega.
A fim de apontar alguns dos mecanismos sistêmicos e culturais existentes e que promovem a cultura do estupro, é que o texto de SOUSA, 2017, traz uma pesquisa focada na violência sexual contra a mulher, como uma das formas mais difundidas da violência de gênero.
A autora inicia por apontar, de forma incisiva, o preconceito que permeia o tema do estupro, quer seja a vítima do sexo feminino, ou até mesmo masculino, ainda, que este último em menor proporção. Observa que as informações sobre o tema são, em sua maioria, omitidas ou distorcidas a fim de proteger, não a vítima, mas o estuprador. Coloca ainda que, quando a vítima é do sexo masculino, nestes casos, a vergonha é duplamente colocada sobre ela, passando a ser considerada, neste caso, como alguém fraco e que não representa a “classe masculina”, tida como forte, dominante e viril.
Ao nomear a prática do estupro como cultura, a autora procura demonstrar, dentro daquilo que define o termo “cultura”, os elementos presentes nas sociedades e nas condutas sociais que assim o caracterizam. Aponta os mecanismos promotores deste tipo de violência, dentro das sociedades em geral. O machismo e a misoginia estrutural, independente da condição ou status social, aponta a autora, são componentes que contribuem, definitivamente, para a perpetuação da prática do estupro, em especial contra mulheres.
Não é difícil se ouvir, mesmo entre mulheres, expressões machistas e justificativas para o comportamento bestial de estupradores. Quando a exemplo se justifica que o homem possui uma maior necessidade, como que essencial a sua sobrevivência, da prática sexual, e que, portanto, cabe às mulheres, como papel social fundamental, estarem à disposição para suprir tal necessidade, tornando-se indignas de qualquer consideração quando não o fazem.
O estupro é prática extremamente difundida. Aquilo que se considera estupro, a conjunção carnal sob violência física, é apenas uma parte das várias modalidades existentes, pois tudo o que viola a vontade deliberada é uma violência; e se alguém não consente em ser tocado, beijado, ou em praticar sexo, está sendo violado em sua intimidade. Por isso, a autora aponta para os diversos motivos que fazem com que sejam diversificadas as formas de estupro, ao enumerar:
“a impossibilidade física do agressor de introduzir na vítima penetração peniana vaginal; a realização do ato de violência sexual, de acordo com o desejo sexual do agressor, que pode ser muito mais variado, visto que a realização do impulso sexual se dá por vários meios que podem, inclusive, excluir penetração do pênis na vagina; e a necessidade de encobrir rastros do estupro, de modo a não deixar na vítima secreções que possam, por meio de exames, identificar o agressor.” (p.11).
A mudança instituída pela Lei nº 12.015/20019, denominada Código Penal, através da nova redação do art. 213, é significativa, aponta a autora, uma vez que, anteriormente, apenas se considerava estupro a prática de conjunção carnal praticada contra a mulher, sob grave ameaça ou violência. A nova redação estende o rol de vítimas de estupro, incluindo em seu texto a palavra alguém, ao invés de mulher, e ampliando o termo estupro para práticas diferentes da conjunção carnal. Por força desta ampliação, é que criminosos como Roger Abdelmassih receberam penas duras pela prática do crime de estupro.
No entanto, apesar dos avanços legais, são poucas as ações a fim de promover a destituição da cultura do estupro, uma vez que as mulheres são julgadas responsáveis pelo próprio estupro, quando seu comportamento, atitudes ou vestimentas destoam daquilo que a sociedade impõe como conduta feminina honrosa, conduta esta pautada, desde os primórdios, no pensamento machista e preconceituoso com o qual as mulheres foram tratadas ainda nas sociedades patriarcais.
Para SOUSA (p.13), “é denominado cultura do estupro o conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual”, apontando as atitudes existentes e naturalizadas como aquela em que, para o estuprador, as mulheres dizem não porque são programadas para dizê-lo em nome do decoro e da educação, mas que, na verdade, querem dizer sim e resta a ele impor isso a elas. Também os homens são educados para a prática sexual sem medidas e as mulheres, para o pudor, trazendo um dissenso entre eles, uma vez que são programados para interesses em contrário.
Os estupradores não são apenas os desconhecidos, mas também aqueles da convivência intima da mulher, podendo ser um parente, marido ou alguém da confiança da vítima e que, por vezes, possui o dever legal de protegê-la, a exemplo dos estupros provocados por pais e padrastros de crianças. O texto aponta ainda para o descrédito da criança na sociedade e para o da mulher, condicionado ao seu comportamento social.
A tentativa de promover o princípio da igualdade entre homens e mulheres é frustrada sob a égide da própria justiça e do direito. Observa-se no texto (p. 21) que, até mesmo juristas, como Damásio de Jesus, na tentativa de promover o direito da mulher, se utiliza de subterfúgios que impõem à vítima a obrigação de provar que o estupro se deu em decorrência da culpa do estuprador, e não de sua negativa de consentimento sem sentido, uma vez que se interpreta que seu corpo pertence ao homem e que ela não tem o direito de lhe dizer não sem uma justa causa.
A ideia do texto é apontar para o desequilíbrio de gênero estruturado, em desfavor da mulher, e demonstrar que, mesmo as construções sociais e as estruturas legais estão aparelhadas para a perpetuação da cultura do estupro e desfavorecimento do sexo feminino, ainda que travestidas de princípios de igualdade e de promoção da dignidade da pessoa humana, por possuirem dispositivos que reafirmam um certo “papel social da mulher”, que mais se aproxima do discurso machista e misógino pretérito do que das demandas feministas. A transformação cultural requerida encontra percalços significativos para ser acolhida em uma sociedade patriarcal, machista e misógina.
Como se vê, ainda há muito a se pensar para a desconstrução da cultura do estupro, passando pela transformação e identificação de hábitos enraizados na própria sociedade patriarcal, até a estruturação jurídica que parametriza e justifica o estuprador baseado nas próprias construções sociais.
Assim, para promoção do direito das mulheres, se faz necessário reconhecer sua autoafirmação e autonomia para a prática sexual, a prática contínua da identificação e esclarecimento acerca das atitudes, até mesmo inconscientes, conduzidas pela herança do pensar e agir de forma preconceituosa e estigmatizante, acerca do papel da mulher na sociedade.
É de vital importância a participação efetiva e a conscientização da sociedade e da própria mulher, para a prática da análise crítica das construções sociais e do próprio Direito, bem como dos mecanismos de naturalização da cultura do estupro, de modo a se combater as atitudes machistas e misóginas. É necessário, ainda, a construção de políticas capazes de oferecer a proteção e o esclarecimento efetivo de homens e mulheres, além da conscientização feminina quanto a sua participação na construção de sua própria cidadania e na desconstrução da cultura do estupro.