Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres.

Resenha Critica

03/11/2020 às 18:21
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O caminho a ser percorrido até que a violência sexual contra as mulheres, e todos os seus consectários, seja extirpada da sociedade, ainda é longo. O que leva à necessária fomentação ao debate acerca das origens da chamada “violência de gênero”, na comunidade social, política e jurídica.

 O tema “Violência de gênero”, atualmente, tem sido imensamente debatido tanto nos jornais, nas mídias sociais, no seio da própria sociedade e no meio político e judiciário. O objetivo parece ser o mesmo: encontrar soluções para coibir, ou mesmo eliminar, práticas deste tipo, especialmente as de violência sexual ou estupro praticado contra mulheres.

Observa-se, em todas as sociedades, um favorecimento do homem em detrimento da mulher, por vezes instrumentalizado pelas próprias leis, onde o próprio sistema cria mecanismos para promover a cultura do estupro, protegendo o estuprador e anulando os direitos das vítimas.

O próprio feminicídio é um reflexo da cultura machista introjetada no seio da sociedade, onde se pensa na mulher como coisa ou objeto com o simples papel de obediência e promoção da satisfação e bem-estar masculino, sendo merecedora de morte ao se insurgir contra o seu “papel” de obediência cega.

A fim de apontar alguns dos mecanismos sistêmicos e culturais existentes e que promovem a cultura do estupro, é que o texto de SOUSA, 2017, traz uma pesquisa focada na violência sexual contra a mulher, como uma das formas mais difundidas da violência de gênero.

A autora inicia por apontar, de forma incisiva, o preconceito que permeia o tema do estupro, quer seja a vítima do sexo feminino, ou até mesmo masculino, ainda, que este último em menor proporção. Observa que as informações sobre o tema são, em sua maioria, omitidas ou distorcidas a fim de proteger, não a vítima, mas o estuprador. Coloca ainda que, quando a vítima é do sexo masculino, nestes casos, a vergonha é duplamente colocada sobre ela, passando a ser considerada, neste caso, como alguém fraco e que não representa a “classe masculina”, tida como forte, dominante e viril.

Ao nomear a prática do estupro como cultura, a autora procura demonstrar, dentro daquilo que define o termo “cultura”, os elementos presentes nas sociedades e nas condutas sociais que assim o caracterizam. Aponta os mecanismos promotores deste tipo de violência, dentro das sociedades em geral. O machismo e a misoginia estrutural, independente da condição ou status social, aponta a autora, são componentes que contribuem, definitivamente, para a perpetuação da prática do estupro, em especial contra mulheres.

Não é difícil se ouvir, mesmo entre mulheres, expressões machistas e justificativas para o comportamento bestial de estupradores. Quando a exemplo se justifica que o homem possui uma maior necessidade, como que essencial a sua sobrevivência, da prática sexual, e que, portanto, cabe às mulheres, como papel social fundamental, estarem à disposição para suprir tal necessidade, tornando-se indignas de qualquer consideração quando não o fazem.

O estupro é prática extremamente difundida. Aquilo que se considera estupro, a conjunção carnal sob violência física, é apenas uma parte das várias modalidades existentes, pois tudo o que viola a vontade deliberada é uma violência; e se alguém não consente em ser tocado, beijado, ou em praticar sexo, está sendo violado em sua intimidade. Por isso, a autora aponta para os diversos motivos que fazem com que sejam diversificadas as formas de estupro, ao enumerar:

“a impossibilidade física do agressor de introduzir na vítima penetração peniana vaginal; a realização do ato de violência sexual, de acordo com o desejo sexual do agressor, que pode ser muito mais variado, visto que a realização do impulso sexual se dá por vários meios que podem, inclusive, excluir penetração do pênis na vagina; e a necessidade de encobrir rastros do estupro, de modo a não deixar na vítima secreções que possam, por meio de exames, identificar o agressor.” (p.11).

A mudança instituída pela Lei nº 12.015/20019, denominada Código Penal, através da nova redação do art. 213, é significativa, aponta a autora, uma vez que, anteriormente, apenas se considerava estupro a prática de conjunção carnal praticada contra a mulher, sob grave ameaça ou violência. A nova redação estende o rol de vítimas de estupro, incluindo em seu texto a palavra alguém, ao invés de mulher, e ampliando o termo estupro para práticas diferentes da conjunção carnal. Por força desta ampliação, é que criminosos como Roger Abdelmassih receberam penas duras pela prática do crime de estupro.

No entanto, apesar dos avanços legais, são poucas as ações a fim de promover a destituição da cultura do estupro, uma vez que as mulheres são julgadas responsáveis pelo próprio estupro, quando seu comportamento, atitudes ou vestimentas destoam daquilo que a sociedade impõe como conduta feminina honrosa, conduta esta pautada, desde os primórdios, no pensamento machista e preconceituoso com o qual as mulheres foram tratadas ainda nas sociedades patriarcais.

Para SOUSA (p.13), “é denominado cultura do estupro o conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual”, apontando as atitudes existentes e naturalizadas como aquela em que, para o estuprador, as mulheres dizem não porque são programadas para dizê-lo em nome do decoro e da educação, mas que, na verdade, querem dizer sim e resta a ele impor isso a elas. Também os homens são educados para a prática sexual sem medidas e as mulheres, para o pudor, trazendo um dissenso entre eles, uma vez que são programados para interesses em contrário.

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Os estupradores não são apenas os desconhecidos, mas também aqueles da convivência intima da mulher, podendo ser um parente, marido ou alguém da confiança da vítima e que, por vezes, possui o dever legal de protegê-la, a exemplo dos estupros provocados por pais e padrastros de crianças. O texto aponta ainda para o descrédito da criança na sociedade e para o da mulher, condicionado ao seu comportamento social.

A tentativa de promover o princípio da igualdade entre homens e mulheres é frustrada sob a égide da própria justiça e do direito. Observa-se no texto (p. 21) que, até mesmo juristas, como Damásio de Jesus, na tentativa de promover o direito da mulher, se utiliza de subterfúgios que impõem à vítima a obrigação de provar que o estupro se deu em decorrência da culpa do estuprador, e não de sua negativa de consentimento sem sentido, uma vez que se interpreta que seu corpo pertence ao homem e que ela não tem o direito de lhe dizer não sem uma justa causa.

A ideia do texto é apontar para o desequilíbrio de gênero estruturado, em desfavor da mulher, e demonstrar que, mesmo as construções sociais e as estruturas legais estão aparelhadas para a perpetuação da cultura do estupro e desfavorecimento do sexo feminino, ainda que travestidas de princípios de igualdade e de promoção da dignidade da pessoa humana, por possuirem dispositivos que reafirmam um certo “papel social da mulher”, que mais se aproxima do discurso machista e misógino pretérito do que das demandas feministas. A transformação cultural requerida encontra percalços significativos para ser acolhida em uma sociedade patriarcal, machista e misógina.

Como se vê, ainda há muito a se pensar para a desconstrução da cultura do estupro, passando pela transformação e identificação de hábitos enraizados na própria sociedade patriarcal, até a estruturação jurídica que parametriza e justifica o estuprador baseado nas próprias construções sociais.

Assim, para promoção do direito das mulheres, se faz necessário reconhecer sua autoafirmação e autonomia para a prática sexual, a prática contínua da identificação e esclarecimento acerca das atitudes, até mesmo inconscientes, conduzidas pela herança do pensar e agir de forma preconceituosa e estigmatizante, acerca do papel da mulher na sociedade.

É de vital importância a participação efetiva e a conscientização da sociedade e da própria mulher, para a prática da análise crítica das construções sociais e do próprio Direito, bem como dos mecanismos de naturalização da cultura do estupro, de modo a se combater as atitudes machistas e misóginas. É necessário, ainda, a construção de políticas capazes de oferecer a proteção e o esclarecimento efetivo de homens e mulheres, além da conscientização feminina quanto a sua participação na construção de sua própria cidadania e na desconstrução da cultura do estupro.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Resenha critica ao texto de Renata Floriano de Sousa "Cultura do Estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres, publicado na revista de estudos feministas da PUCRS.

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