Demorei a escrever e manifestar o meu posicionamento (na era da internet, dois dias de atraso equivalem a muita coisa), mas decidi fazê-lo. Primeiro porque alguns amigos vieram pedir a minha opinião jurídica sobre o tema. Segundo. porque li, em poucos minutos, muita desinformação.
Considerações: não li os autos do processo (correm em segredo de justiça ou deveriam correr, conforme determina o art. 234-B do Código Penal) – aliás, o sigilo processual deveria ser rigorosamente respeitado; as regras do processo têm razão de existir e violá-las, não me parece um bom sinal - portanto, escrevo técnica e objetivamente, à vista dos poucos elementos que tive acesso por meio da mídia e das redes sociais. Vou tentar ser didática.
Antes de qualquer coisa é preciso esclarecer: NÃO EXISTE ESTUPRO CULPOSO. NÃO EXISTE. E, pelo que consta, ninguém no processo aventou essa figura.
A regra do Código Penal Brasileiro é de que os crimes serão dolosos.
Nos crimes praticados com dolo, o agente tem a intenção de produzir o resultado ou assume o risco de produzi-lo (CP, art. 18, inciso I).
Como toda boa regra tem sua exceção, o Código Penal prevê, excepcionalmente, a modalidade CULPOSA para a prática de determinados crimes. Nesse caso, o agente praticará o crime sempre que der causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (CP, art. 18, inciso II).
Sendo assim, o crime só existirá na modalidade culposa caso o Código Penal assim o preveja. No silêncio, somente se configurará na modalidade dolosa (regra).
Trago a inteligência do dispositivo penal para que não restem dúvidas:
Art. 18 - Diz-se o crime:
Crime doloso
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
Crime culposo
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
Custei a acreditar que algum operador do direito tivesse cometido, no caso concreto, por imprecisão técnica ou desconhecimento da lei, a aberração de mencionar a “novidade legislativa” do “ESTUPRO CULPOSO”, como li na internet. Isso porque a Lei não traz essa figura e o mínimo que se espera do operador de direito é que ele conheça a lei; também porque, se o juiz ou o promotor do caso criassem uma figura criminosa até então inexistente, estariam legislando, o que configuraria patente afronta ao princípio da separação dos poderes, que é cláusula pétrea em nosso ordenamento jurídico (aquela que não pode ser alterada, nem mesmo por emenda constitucional), de acordo com o art. 60, § 4º, inciso III, da Constituição Federal.
Considerando que o Código Penal não prevê a modalidade culposa para o crime de estupro, o delito somente poderá ser praticado na modalidade DOLOSA. Essa regra valerá tanto para o crime de ESTUPRO (CP, art. 213), quanto para o crime de ESTUPRO DE VULNERÁVEL (CP, art. 217-A).
De acordo com trechos da sentença recortados, colados e explorados pelo noticiário, André de Camargo Aranha foi denunciado pelo crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A, § 1º, parte final, do Código Penal, abaixo transcrito:
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2o (VETADO)
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.
Portanto, a acusação entendeu que o réu praticou o crime de estupro contra a vítima que, por qualquer causa, não podia oferecer resistência (vulnerável), em razão da ingestão de substância ilícita (drogas) ou embriaguez.
Noticiou-se, também, que, em memoriais (peça apresentada no final da instrução processual – CPP, art. 403, §3º), o Ministério Público (acusação) manifestou-se pela absolvição do acusado, por entender que o conjunto probatório não era forte o suficiente para pedir a sua condenação.
É importante lembrar que o promotor de justiça (membro do Ministério Público) goza de independência funcional (CF, art. 127, §1º), o que quer dizer que sua atuação é livre, respeitadas a Lei, a Constituição e a sua consciência, inclusive, para requerer a absolvição do acusado que outrora denunciou, caso entenda que as provas colhidas no decorrer da instrução criminal não foram robustas o suficiente para a formação do seu convencimento pela manutenção do pedido de condenação. Apesar de ocupar o papel da acusação no processo penal, o ofício do promotor de justiça é – exatamente - promover a justiça e não a condenação a qualquer custo.
O juiz, por sua vez, decidirá com base nas provas dos autos (CP, art. 155). No caso concreto, segundo consta, o juiz absolveu o acusado por entender que não existia prova suficiente para a condenação (CP, art. 386, inciso VII).
Aqui, destaco duas observações:
1) Doutrina e jurisprudência majoritárias entendem que o juiz não está vinculado ao pedido de absolvição do Ministério Público em memoriais, de modo que ele poderia condenar o réu, caso entendesse que as provas amealhadas no decorrer da instrução eram suficientes para tanto.
2) Princípio do in dubio pro reo: esse princípio aplica-se ao Direito Penal e o seu espírito é de que não se admite interpretação extensiva contra o réu, ou seja, na dúvida, o juiz deve interpretar em seu benefício (“na dúvida, absolve”). O Estatuto de Roma, responsável pela criação do Tribunal Penal Internacional, também dispõe nesse sentido (ER, art. 22, § 2º).
Proferida a sentença absolutória, o promotor de justiça, no caso em comento, não poderá promover recurso de apelação contra a sentença (CPP, 593, inciso I), por não estarem preenchidos os pressupostos recursais da sucumbência (ônus suportado por alguma das partes em razão da sentença) e do interesse recursal (vontade de obter o que se pediu).
Explico: não esqueçamos que, em memoriais, o Ministério Público pugnou pela absolvição do acusado (segundo consta nas notícias), portanto a sentença absolutória está de acordo com o pleito final da acusação, de forma que não se justifica a interposição de recurso para alterá-la.
A despeito disso, caso a vítima constitua assistente de acusação (CPP, art. 268 e seguintes), este poderá interpor recurso de apelação contra a sentença absolutória, a fim de vê-la reformada para condenar o réu. O assistente poderá ser constituído enquanto não transitar em julgado a sentença (CPP, art. 269), bem como interpor recurso para reforma-la, por não estar vinculado à opinião do membro do Ministério Público (CPP, art. 271). No caso concreto, entendo que a vítima deveria constituir um/uma assistente de acusação, de sua confiança e escolha, urgentemente.
O juiz, o promotor e as partes conhecem o processo para opinar e decidir sobre o mérito da causa, nós não.
Sobre o trecho da audiência vazado na internet, opino como advogada, mulher e cidadã: deprimente e reprovável. As partes precisam ser assistidas e representadas com potência, clareza e respeito numa audiência.
Qualquer audiência deveria amparar a vítima, e não feri-la ainda mais. A nossa atuação, enquanto advogados, encontra limites estabelecidos pelo Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) que deverão ser observados sob pena de responsabilização.
O juiz é o presidente da sessão e, nessa condição, pode e deve intervir para fazer cessar eventuais excessos. O promotor de justiça representa o Estado contra o acusado de um crime, além de ser fiscal da Lei e da ordem jurídica, seu amplo papel permite que ele brade pela ordem na audiência, pela civilidade e, especialmente, pelo respeito e garantia dos direitos da vítima, a fim de que eles não sejam novamente violados.
Nenhuma defesa deveria atacar a vítima. É covarde e é vil. Pouco importa o passado da vítima de crimes sexuais. Ninguém quer saber. Pouco importa o seu recato ou a ausência dele. Afora a imunidade profissional que temos enquanto advogados (EOAB, art. 7º, § 2º), a injúria e a difamação irrogadas em juízo encontram limites sim; a técnica de defesa precisa respeitar as regras do jogo, da ética e, sobretudo, a DIGNIDADE DAS PESSOAS envolvidas no caso (e aqui ressalto a importância de se PRESERVAR a imagem não só da vítima, mas também do acusado), senão teremos um show de horror e de violação de direitos institucionalizado.
Não nos olvidemos de que o combate não deve ser - nunca - contra pessoas ou instituições, mas sim, contra todo e qualquer ato de violência e violação à dignidade da pessoa humana. Ademais, não custa lembrar que fora dos tribunais somos todos iguais (ou deveríamos ser).
Cuidem-se.