Capa da publicação Brasil e EUA: freios e contrapesos entre a Presidência e o Supremo
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A difícil convivência no sistema de freios e contrapesos nas relações entre o Executivo e o Judiciário.

Os exemplos americano e brasileiro

08/11/2020 às 21:55
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Joe Biden não esclareceu sua posição sobre aumentar o número de assentos na Suprema Corte. No passado, Roosevelt, Vargas e Castello Branco passaram por situações semelhantes.

Joe Biden vai assumir a presidência dos Estados Unidos, encontrando a Suprema Corte americana com 6 (seis) de seus componentes que poderão ser refratários a eventuais ideias de mudanças no campo econômico e social.

A experiência da eleição americana de 2020 traz uma lição para o Brasil. Os democratas entenderam que se Biden não era o melhor candidato, pelo menos unia a todas as tendências que o partido elegeu como sua linha de ação. Uniram-se as linhas de direita, centro e esquerda. Se isso não ocorresse, certamente o atual presidente americano, que representa o pensamento conservador nos costumes e liberal na economia, ganharia facilmente, certamente.

O candidato democrata Joe Biden, que hesitava em esclarecer sua posição sobre aumentar o número de assentos na Suprema Corte, afirmou que criará uma comissão bipartidária de especialistas para avaliar a possibilidade de uma reforma mais ampla do Judiciário americano.

No passado, Franklin Roosevelt assumiu a presidência dos Estados Unidos diante de grave crise econômica e traçou diante disso o que chamou-se o New Deal e acabou tendo problemas com a Suprema Corte americana.

A política de intervenção estatal começou a ser adotada primeiro nos Estados Unidos, com o anúncio pelo presidente Franklin Roosevelt de uma série de medidas que ficaram conhecidas como New Deal (novo acordo, em português) e que passaram a ser concretizadas em 1933. Dentre elas, se destacam:

  • controle sobre bancos e instituições financeiras e econômicas;
  • construção de obras de infraestrutura para a geração de empregos e aumento do mercado consumidor;
  • concessão de subsídios e crédito agrícola a pequenos produtores familiares;
  • criação de Previdência Social, que estipulou um salário mínimo, além de garantias a idosos, desempregados e inválidos;
  • incentivo à criação de sindicatos para aumentar o poder de negociação dos trabalhadores e facilitar a defesa dos novos direitos instituídos.

O New Deal pode ser dividido em quatro dimensões:

  • Reformas econômicas e regulação de setores da economia;
  • Medidas emergenciais;
  • Transformações culturais; e
  • Nova pactuação política entre o Estado e fatores sociais, o que formou a chamada coalizão do New Deal.

Em seu segundo discurso de posse no início de 1937, Franklin Roosevelt prometeu pressionar por uma nova legislação social. "Vejo um terço de uma nação maltratada, malvestida e mal nutrida", disse ele ao país. No entanto, em vez de buscar novas reformas, ele permitiu que seu segundo mandato se atolasse em disputas políticas. Ele desperdiçou suas energias em uma batalha mal concebida com a Suprema Corte e em uma tentativa frustrada de expurgar o Partido Democrata.

Ocorre que, na Black Monday ("segunda-feira negra"), 27 de maio de 1935, a Suprema Corte derrubou uma parte básica do programa de recuperação e reforma de Roosevelt. Um negociante de frango kosher processou o governo, alegando que a NRA era inconstitucional. Em sua famosa decisão do "frango morto", Schechter v. Os EUA , o tribunal julgou procedente o pedido. Afirmou-se que o Congresso delegou autoridade excessiva ao presidente e envolveu indevidamente o governo federal na regulamentação do comércio interestadual. Roosevelt reclamou: "Fomos relegados à definição de comércio interestadual" cavalo e charrete.

Segundo Carlos Alexandre de Azevedo Campos (Getúlio Vargas, Franklin Roosevelt e a independência judicial, in Consultor Jurídico), a Suprema Corte anulou outras leis do New Deal, colocando-se, definitivamente, em situação de impopularidade e em espessa zona de conflito institucional, contrapondo-se ao Executivo e ao Legislativo sob a liderança de Roosevelt. A maioria da corte fundamentava essas decisões em princípios que haviam sido consolidados no conhecido caso Lochner, julgado em 1905. Em Lochner, a Suprema Corte declarou inconstitucional lei estadual por meio da qual se assegurou jornada máxima de trabalho em favor de padeiros. A corte entendeu que o legislador não poderia interferir nas relações contratuais de trabalho por violação à cláusula do devido processo legal. Este era o perfil de corte que perdurava há décadas (Lochner Era) até o embate em torno do New Deal: ativista na defesa do direito natural de propriedade e da liberdade de contrato e hostil à intervenção estatal na economia.

Ainda destacou Carlos Alexandre de Azevedo Campos que a Lochner Era e a sua filosofia adjudicatória de liberalismo econômico e de hostilidade à intervenção estatal na economia não surgiram em um vácuo político. Em 1870, a Suprema Corte decidiu Hepburn v. Griswold, caso que envolveu lei federal (Legal Tender Act, de 1862) autorizativa da emissão de moeda-papel (greenback) com eficácia retroativa de moeda corrente do país, hábil para pagamento de dívidas contraídas mesmo antes da publicação da lei. O governo federal emitiu em torno de um milhão e meio de dólares dessas notas com o propósito de custear os gastos com a Guerra Civil. Contudo, a Suprema Corte julgou inconstitucional a utilização retroativa da nova moeda. As dívidas contratadas antes da lei, segundo a corte, deveriam ser pagas exatamente como pactuadas: em moedas de prata ou ouro, dotadas de valor intrínseco.

 Fortalecido pela reeleição para seu segundo mandato (eleições de 1936), o presidente investiu contra a estrutura conservadora da Suprema Corte, formulando o que ficou conhecido como Court-Packing Plan: ele propôs ao Congresso, em 5 de fevereiro de 1937, lei aumentando a composição da corte para 15 juízes e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para cada outro que superasse a idade de 70 anos. Como era, na época, a mais velha corte da história (a Old Court), Roosevelt poderia então nomear o limite de seis juízes de uma só vez e, assim, abarrotar a Suprema Corte com homens que apoiassem o New Deal e colocar ponto final no ativismo judicial conservador até então vigente. O plano não foi realizado exatamente como formulado, pois a proposta de “empacotar” a corte, mesmo sendo a favor do New Deal, não teve apoio da população, do Congresso nem do seu próprio partido.

Menos de dois anos após esses julgamentos, em 5 de fevereiro de 1937, Roosevelt apresentou ao Congresso americano o Court-Packing Plan.

O Presidente Roosevelt instruiu o Advogado-Geral norte-americano, Homer Cummings, para que pensasse em uma saída para alterar o pensamento ou a composição da Suprema Corte norte-americana.

O caminho menos questionável seria uma emenda constitucional, que, nos Estados Unidos da América, tem um processamento extremamente moroso. Além de a proposta ter que partir de dois terços das duas casas reunidas ou de dois terços de todos os Estados norte-americanos, o seu mecanismo de aprovação depende de ratificação de três quartos de todos os Estados norte-americanos (art. 5º da Constituição norte-americana), o que tornaria quase impossível a sua aprovação.

Cummings optou por um projeto de lei enviado ao Congresso norte-americano, em que para cada membro que já pertencia à Suprema Corte e tivesse 70 anos o Presidente da República poderia indicar um novo membro, até o total de seis. A Justificativa de Roosevelt-Cummings era a de que os juízes mais idosos não tinham a celeridade necessária para examinar a quantidade de processos que recebiam. Uma ajuda mais jovem seria muito bem-vinda.

Logicamente que o projeto de lei deixou os republicanos atônitos e alguns democratas moderados reticentes. No entanto, a proposição da lei que alteraria a composição da Suprema Corte fez logo seu efeito. Já em março de 1937 a Suprema Corte começa a conferir vitórias às medidas necessárias para levar a efeito o New Deal do Presidente Roosevelt.

Com essa, digamos intervenção, como disse Carlos Alexandre de Azevedo Campos (obra citada), a Suprema Corte passou a dirigir suas preocupações à cláusula da equal protection of the laws, assumindo novo papel: em vez de defesa dos direitos de propriedade e liberdade de contrato, o “novo negócio” era a proteção dos direitos civis e da igualdade. Em suma, a estratégia de Roosevelt formou a base daquela que viria a ser a lendária Corte Warren dos anos 50 e 60, paradigma da living constitution e campeã da proteção das liberdades civis e da igualdade racial.

No Brasil, a ditadura militar, em seu começo, não encontrou no Supremo Tribunal Federal um aliado.

Para não cassar ministros do STF, Castello Branco aumentou o número de magistrados do Tribunal de 11 para 16, por meio do AI-2, de 27 de outubro de 1965. Nomeou cinco ministros: Adalício Nogueira, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros. Mais tarde, em fevereiro de 1967, nomeou o deputado federal Adaucto Lucio Cardoso, da União Democrática Nacional (UDN), para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Foi justamente Adaucto Lucio o protagonista de outro célebre exemplo de resistência do STF, o caso da lei da mordaça.

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No entanto, com o AI-5, em 1968, ato máximo de autoritarismo naquele modelo antidemocrático por que passou o país, o Executivo determinou a aposentadoria de ministros.

Anos antes, Getúlio Vargas submeteu o Supremo Tribunal Federal, na ditadura que impôs, por conta do Estado Novo, a suas diretrizes.

Disse Carlos Alexandre de Azevedo Campos (Vargas e Roosevelt, independência judicial):

“Na Constituição de 1937, retirou-se o status constitucional do mandado de segurança, relegando-o à legislação ordinária, a qual excluiu o uso do remédio em face do Presidente da República e dos ministros de Estado (artigo 319 do CPC de 1939). Não foi mantida a chamada “representação interventiva” nem a competência do Senado para suspender a eficácia das leis declaradas inconstitucionais. As decisões de inconstitucionalidade foram sujeitas a valorações do Presidente da República que, se entendesse a lei impugnada necessária ao “bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta”, poderia submetê-la novamente ao exame do Parlamento e, se este confirmasse a lei “por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal” (artigo 96, parágrafo único), retirando do Supremo a última palavra sobre a validade das normas questionadas.

Aos olhos do constitucionalismo contemporâneo, esta última previsão constitucional poderia ser até bem recebida como mecanismo de diálogo institucional em torno da constitucionalidade das leis, à semelhança da notwithstanding clause canadense. Contudo, os fatos de o exercício da medida ter se dado em contexto ditatorial, e de ter sido prevista em uma Constituição na qual se concentrou demasiado poder nas mãos do Presidente da República, chegando a chamá-lo de “autoridade suprema do Estado” (artigo 73), impedem essa qualificação. Prova disso é que, como o Congresso permaneceu fechado durante todo o Estado Novo, Getúlio Vargas, ele mesmo, editou decretos-leis restabelecendo leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo. O problema, portanto, não foi tanto do conteúdo da norma, mas das circunstâncias de sua aplicação.

Por tudo isso, pode-se afirmar que a ditadura varguista humilhou o Supremo. Sem embargo, Getúlio Vargas castrou a independência do Tribunal. Como permaneceu no poder durante quinze anos ininterruptos com o Congresso Nacional fechado, Vargas foi senhor absoluto de 21 nomeações de ministros. Com o Decreto-lei nº 2.770, de 11/11/1940, ainda avocou o poder de nomear o Presidente da Corte. Com esse sistema de composição unilateral do Tribunal, sem a amplitude de outrora do habeas corpus e com o mandado de segurança fora da Constituição, o Supremo conviveu, passivamente, com os atos mais arbitrários de Vargas. A condição de guardião da Constituição e das liberdades civis que exerceu, não sem altos e baixos, durante a República Velha, foi absolutamente nula durante o período mais antiliberal da Era Vargas, vindo o Supremo a tornar-se, inevitavelmente, em instrumento apenas legitimador do regime autoritário.”

No presente, como dito, o novo presidente dos Estados Unidos encontrará uma corte conservadora.

Até a morte de Ruth Bader Ginsburg (RBG) a corte tinha cinco ministros conservadores (nomeados por presidentes republicanos) e quatro liberais (nomeados por presidentes democratas). Isto é, os conservadores já estavam em maioria. Mas, havia um certo equilíbrio, porque o presidente da Corte, ministro John Roberts, que integra o grupo de conservadores, votava algumas vezes com seus colegas liberais.

Há várias opções a escolher.

Uma seria aumentar o número de ministros de 9 para 11. Com seis ministros conservadores e cinco ministros liberais e com o ministro John Roberts aferrado a precedentes, tudo voltaria a ser como antes. Isto é, ficaria difícil derrubar os direitos já conquistados.

Outra opção é aumentar o número de ministros para 15. Nesse caso, a Corte teria cinco ministros indicados pelo Partido Republicano, cinco ministros indicados pelo Partido Democrata e cinco ministros, sem ideologia política declarada — ou avessos à política — indicados pelos 10 ministros conservadores e liberais.

A terceira opção discutida é a de acabar com a vitaliciedade do cargo de ministro da Suprema Corte, estabelecendo um mandato de 18 anos. Nesse caso, um ministro seria nomeado a cada dois anos. Assim, cada presidente poderia nomear dois ministros em seu mandato de quatro anos.

Tudo isso deve ser ponderado num país que está claramente dividido e em que o atual presidente se recusa a aceitar o resultado das eleições, algo que transcende a própria democracia e vai ao limite da insensatez.

Porém, tudo isso fica como importante laboratório a ser objeto de estudos com relação ao que se passa, no sistema dos freios e contrapesos, que é vital para a democracia.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A difícil convivência no sistema de freios e contrapesos nas relações entre o Executivo e o Judiciário.: Os exemplos americano e brasileiro . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6339, 8 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86581. Acesso em: 2 nov. 2024.

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