Reflexões sobre o acesso à justiça inexoravelmente nos remetem ao Projeto Florença, resultado das pesquisas desenvolvidas na década de 1970, por Mauro Cappelletti e Bryant Garth. Havia um consenso de que os problemas estruturais de acesso à justiça, em grande parte, se relacionavam aos custos do processo, ao tempo que o processo levava, a determinadas legitimações para tutela de direitos da coletividade e à representação de pessoas necessitadas.
Como conclusão de seus trabalhos, Cappelletti e Garth propuseram três ondas renovatórias de acesso à justiça. A primeira onda aborda a ideia de assistência judiciária, a segunda onda cuida dos mecanismos de tutela de direitos difusos e coletivos, e a terceira onda trata dos métodos adequados de solução de litígio e simplificação procedimental.
Esse trabalho tem como escopo a análise do acesso à justiça sob a ótica da terceira onda proposta por Cappelletti e Garth, tendo como foco o exercício da advocacia extrajudicial.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, a cada grupo de 100.000 habitantes, em média 12.211 ingressaram com uma ação judicial no ano de 2019[2]. Esse número elevado demonstra que, em que pese o CPC/15 tenha privilegiado as soluções consensuais e extrajudiciais do conflito[3], a sociedade e os operadores do direito ainda se encontram arraigados à ideia de que os problemas devem ser judicializados, fenômeno denominado por Flávia Hill de hiperjudicialização. Consequentemente, verifica-se a movimentação, muitas vezes desnecessária, da máquina judiciária e uma enorme sobrecarga processual, que resulta numa prestação jurisdicional morosa e ineficiente.
Ressalte-se que não se trata de negar o acesso ao Poder Judiciário, mas de disseminar a compreensão de que se pode tentar, prioritariamente, a solução extrajudicial de diversos litígios. A atuação da advocacia não perpassa necessariamente pelo Poder Judiciário.
Ademais, deve-se romper com a confusão positivada no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, entre acesso à justiça e acesso ao Judiciário. O art. 3º do CPC buscou consertar o erro da Constituição ao utilizar a expressão “apreciação jurisdicional”, ao invés de “apreciação do Poder Judiciário”.
Ganha destaque atualmente a ideia de justiça multiportas, segundo a qual a atividade jurisdicional prestada pelo Estado não é a única- tampouco a prioritária - forma de solução de controvérsias. Além da mediação e da conciliação, que ganham protagonismo no art. 334 do CPC/15, é possível que as partes convencionem cláusula arbitral, realizem negócios jurídicos processuais e até que celebrem acordos, mesmo após a sentença transitada em julgado. Ou seja, o CPC/15 buscou privilegiar a autonomia da vontade na resolução de conflitos.
O acordo feito pelas partes é mais satisfatório do que a imposição da decisão de um terceiro equidistante no processo, pois evitam-se decisões que gerem um vencedor e um vencido. Assim, com os meios autocompositivos, as partes tornam-se protagonistas da solução de seu próprio problema.
Segundo Cappelletti, preocupa-se cada vez mais com a “justiça social”, que se traduz na busca de procedimentos que protejam os direitos das pessoas comuns. De acordo com o autor, “um sistema destinado a servir às pessoas comuns, tanto como autores, quanto como réus, deve ser caracterizado pelos baixos custos, informalidade e rapidez, e por julgamentos ativos e pela utilização de conhecimentos técnicos bem como jurídicos”[4]. Trata-se do que chamamos atualmente de métodos adequados de solução de conflitos. Ou seja, o advogado deve analisar o caso de seu cliente e buscar o método mais adequado para resolver aquele problema.
Ainda no que diz respeito à justiça multiportas, Flávia Hill ressalta a importância da atividade jurisdicional prestada pelos Cartórios Notariais para se chegar à pacificação com justiça. Os procedimentos extrajudiciais cartorários contam com várias vantagens, dentre as quais: a) acessibilidade e capilaridade; b) informalidade no tratamento; c) celeridade; d) menores custos; e) informatização; e f) segurança jurídica e previsibilidade[5].
Em razão dessas inquestionáveis vantagens da jurisdição cartorária, hoje é possível que se faça inventário, partilha, separação e divórcio consensuais, alteração de prenome e sexo no registro de nascimento em virtude de transexualidade, averbação da paternidade ou maternidade socioafetiva, etc. sem que se busque o Poder Judiciário.
Flávia Hill salienta que o CPC/15 prestigiou os cartórios notariais como caminho alternativo para se perquirir a justiça ao prever a usucapião extrajudicial, a consignação em pagamento extrajudicial, a homologação do penhor extrajudicial, a divisão e demarcação de terras extrajudicial, a dispensa de homologação, pelo STJ, de sentença estrangeira de separação e divórcio puros, a Ata Notarial como meio de prova típico, a possibilidade de averbação premonitória, o protesto de decisão judicial transitada em julgado e a penhora de imóvel devidamente matriculado por termo nos autos.
Nesse aspecto, importante mencionar a recente Lei estadual do RJ nº 9.901/2020, publicada no último dia 16 de novembro, que altera a Lei 7.174/2015 e entrará em vigor 90 dias após a sua publicação. O ponto interessante da novidade legislativa é a possibilidade da substituição do inventário judicial pelo inventário extrajudicial sem a incidência de multas (art. 37, §5º). Trata-se de claro estímulo à desjudicialização das relações jurídicas. Ou seja, o legislador estadual vem acompanhando a tendência proposta pelo CPC/15.
Não obstante o destaque conferido pelo Código de Processo Civil à atuação cartorária como meio de desjudicialização de conflitos, olvidou-se o legislador de estabelecer um devido processo extrajudicial. Como se trata de inegável prestação jurisdicional, é imprescindível a observância das garantias processuais, ainda que não se trate de um processo judicial, tais como o contraditório e a ampla defesa, a fim de que legitimar a decisão apaziguadora[6].
Em suma, a despeito das vantagens da autocomposição, da jurisdição cartorária e dos demais meios extrajudiciais de solução de controvérsias, a sociedade brasileira segue afogando o Poder Judiciário com inúmeros processos judiciais que poderiam facilmente ser evitados. Isso se dá em razão da falta de informação e conscientização populacional de que nem sempre a decisão judicial é o meio mais necessário e adequado para resolver problemas.
É basilar que os operadores do direito busquem promover prioritariamente a solução extrajudicial do litígio, tal como previsto no art. 4º, II, da Lei Complementar 80/94, no que diz respeito à atuação dos defensores públicos. A advocacia extrajudicial deve ser valorizada, a fim de que o acesso à justiça seja célere e eficaz. Somente assim a máquina judiciária será movida com responsabilidade e caminhará para a prestação jurisdicional estatal de qualidade.
BIBLIOGRAFIA:
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei n. 13.105, de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em 10 nov 2020.
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988. Disponível em: <https://www.irib.org.br/app/webroot/publicacoes/diverso
s003/pdf.PDF>. Acesso em 19 nov. 2020.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2020: ano-base 2019. Brasília: CNJ, 2020, p. 99. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2020/08/
WEB-V3-Justiça-em-Números-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf>. Acesso em: 17 out 2020.
HILL, Flávia Pereira. “Acesso à justiça e desjudicialização: pela concepção de um devido processo legal extrajudicial”. RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. MARINHO, Daniel Octávio Silva (Coordenadores). Coletânea organizada pela OAB/AM. No prelo.
RIO DE JANEIRO (Estado). Lei nº 9.091 de 13 de novembro de 2020. Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/1c4f0d30094d70fb03258623006195d5?OpenDocument>. Acesso em 20 nov 2020.
Notas
[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2020: ano-base 2019. Brasília: CNJ, 2020, p. 99. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justiça-em-Números-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf>. Acesso em: 17 out 2020.
[3] Conforme dispõem os parágrafos do art. 3º do Código de Processo Civil.
[4]CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris, 1988. p. 93. Disponível em: <https://www.irib.org.br/app/webroot/publicacoes/diversos003/pdf.PDF>. Acesso em 19 nov. 2020.
[5] HILL, Flávia Pereira. “Acesso à justiça e desjudicialização: pela concepção de um devido processo legal extrajudicial”. RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. MARINHO, Daniel Octávio Silva (Coordenadores). Coletânea organizada pela OAB/AM. No prelo.
[6] Idem.