III – O ENTENDIMENTO DA MATÉRIA NO STJ E NO STF
No RE 1045273/SE, é debatida a atribuição de pensão por morte em relação homoafetiva e, no segundo, em relação heteroafetiva. No primeiro, a pensão previdenciária é do regime geral do INSS e a relação concorria com uma união estável, ao passo que, no segundo, a pensão previdenciária é de ex-combatente da Marinha, sendo que a relação concorria com um casamento.
Em recente julgado, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou o reconhecimento de dois relacionamentos simultâneos efetivamente demonstrados nos autos. A controvérsia instaurada no Recurso Especial – REsp 1.348.458 – consistia em definir se a união estável simultânea poderia ser reconhecida entre as partes, mesmo diante da inobservância do dever de fidelidade pelo falecido, que mantinha outro relacionamento estável com terceira pessoa.
A ministra Nancy Andrighi apresentou três correntes no estudo da matéria:
1ª: encabeçada por Maria Helena Diniz, com fundamento nos deveres de fidelidade ou de lealdade, bem como no princípio da monogamia, nega peremptoriamente o reconhecimento de qualquer dos relacionamentos concomitantes;
2ª: adotada pela grande maioria dos doutrinadores – entre eles: Álvaro Villaça de Azevedo, Rodrigo da Cunha Pereira, Francisco José Cahali, Zeno Veloso, Euclides de Oliveira, Flávio Tartuce e José Fernando Simão –, funda-se na boa-fé e no emprego da analogia concernente ao casamento putativo, no sentido de que se um dos parceiros estiver convicto de que integra uma entidade familiar conforme os ditames legais, sem o conhecimento de que o outro é casado ou mantém união diversa, subsistirão – para o companheiro de boa-fé – os efeitos assegurados por lei à caracterização da união estável, sem prejuízo dos danos morais;
3ª: representada por Maria Berenice Dias, admite como entidades familiares quaisquer uniões paralelas, independentemente da boa-fé, deixando de considerar o dever de fidelidade como requisito essencial à caracterização da união estável. (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.348.458 - MG 2012/0070910-1. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Publicado no DJe: 25/06/2014, p. 8).
Apresentadas as três correntes doutrinárias, ao decidir, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, optou pela mais conservadora. Rebateu o argumento autoral, fundamentando que embora não haja menção legal à fidelidade recíproca para a caracterização da união estável, é plenamente exigível em face de ser ela – a fidelidade – inerente ao dever de respeito e lealdade entre os companheiros. Discorreu a relatora:
“De fato, tanto a Lei 9.278/96, como o Código Civil, nos seus arts. 1.723 e 1.724, que disciplinam a matéria, não mencionam expressamente a observância do dever de fidelidade recíproca, para que possa ser caracterizada a união estável.
Exige-se, conforme o texto legal, os seguintes requisitos: (i) dualidade de sexos; (ii) publicidade; (iii) continuidade; (iv) durabilidade; (v) objetivo de constituição de família; (vi) ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial; (vii) observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos.
No entanto, a fidelidade está ínsita ao próprio dever de respeito e lealdade entre os companheiros. Conforme destaquei no voto proferido no REsp 1.157.273/RN, a análise dos requisitos para configuração da união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, e também a fidelidade.
Com efeito, uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo – para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.348.458 - MG (2012/0070910-1). Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Publicado no DJe: 25/06/2014, p. 6/7).”
A Ministra relatora defendeu a ideia de que uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não poderia atenuar o dever de fidelidade, com o objetivo de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas. Concluiu que seu entendimento não induz a ausência de amparo jurídico e justifica que, “ainda que ela não tenha logrado êxito em demonstrar, nos termos da legislação vigente, a existência da união estável, poderá pleitear em processo próprio o reconhecimento de uma eventual sociedade de fato.
Volto-me ao julgamento do RE 1045273/SE.
O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu nesta semana que o Brasil não admite a existência de duas uniões estáveis ao mesmo tempo, o que impede o reconhecimento de direitos de amantes em discussões judiciais.
Por um placar apertado de 6 a 5, a corte reafirmou que o país é monogâmico e rejeitou recurso em que se discutia a divisão de pensão por morte de uma pessoa que, antes de morrer, mantinha uma união estável e uma relação homoafetiva ao mesmo tempo.
Prevaleceu o voto do relator, Alexandre de Moraes, que foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques e Luiz Fux. Divergiram os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio. O julgamento ocorreu no plenário virtual.
A decisão foi tomada em processo com repercussão geral reconhecida, ou seja, vale para outros casos similares em curso no Judiciário. Os ministros aprovaram a seguinte tese a ser aplicada pelas demais instâncias da Justiça:
“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, § 1º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”.
Moraes ressaltou que não houve discriminação por parte da corte estadual. Segundo o ministro, o tribunal apenas afirmou que não pode ser reconhecida a união “em virtude da preexistência de outra união estável havida entre o de cujus e uma terceira pessoa em período coincidente”.
“A questão constitucional a ser decidida está restrita à possibilidade de reconhecimento, pelo Estado, da coexistência de duas uniões estáveis paralelas e o consequente rateio da pensão por morte entre os companheiros sobreviventes, independentemente de serem hétero ou homoafetivas”, resumiu Moraes.
O ministro sustentou que o fato de a relação ter durado muito tempo não deve ser levada em consideração, e disse que o STF tem jurisprudência consolidada nesse sentido.
“Apesar da longevidade dos relacionamentos extramatrimoniais, a corte considerou que o ordenamento brasileiro veda o reconhecimento estatal de uma união estável concorrentemente com um casamento”, argumentou.
Ademais, consoante o ministro Moraes o Código Civil prevê o dever de fidelidade dos cônjuges.
“Por todo o exposto, concluo que a existência de uma declaração judicial de existência de união estável é, por si só, óbice ao reconhecimento de uma outra união paralelamente estabelecida por um dos companheiros durante o mesmo período”, disse.
Primeiro a divergir, Edson Fachin destacou que, nesses casos, a Justiça deve observar se houve “boa-fé objetiva”. O ministro citou a mesma lei que o ministro Moraes para embasar sua posição
“Aliás, esta é a condição até mesmo para os efeitos do casamento nulo ou anulável, nos termos do Código Civil: Artigo 1.561 - Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória”, descreveu.
Segundo o magistrado, as relações jurídicas encerraram com a morte da pessoa, mas os efeitos de boa-fé devem ser preservados, permitindo o rateio da pensão.
“Desse modo, uma vez não comprovado que ambos os companheiros concomitantes do segurado instituidor, na hipótese dos autos, estavam de má-fé, ou seja, ignoravam a concomitância das relações de união estável por ele travadas, deve ser reconhecida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes”, justificou.
IV – O SISTEMA JURÍDICO PÁTRIO RECONHECE A MONOGAMIA
De toda sorte, fica alicerçado nas decisões tomadas tanto pelo STJ como pelo STF o caráter da monogamia no regime jurídico do direito de família no Brasil.
Hipóteses como a da união poliafetiva, que surge na sociedade, ainda não tem uma recepção plena por parte do Judiciário no Brasil.
A bigamia já foi considerada crime sexual ou contra os costumes. O Código Penal de 1940 o coloca como crime contra o casamento, pois que o ilícito ataca a família.
O delito de bigamia consiste em contrair alguém casado novo matrimônio. O pressuposto do crime é o primeiro casamento.
Por sua vez, o adultério consiste na ação física envolvendo não somente a cópula normal, mas, ainda, equivalentes seus, ou atos sexuais inequívocos. É importante realçar que se trata de conduta desonrosa ao casamento. Para Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, parte especial, pág. 575), na linha de Bento de Faria (Código Penal brasileiro comentado, volume V), só o corporifica a conjunção carnal, o coito vagínico. Magalhães Noronha (Direito Penal, volume III, 1977, pág. 317) entende que a ação física delituosa não reside apenas na conjunção carnal, ou seja, na união dos sexos, mas, ainda, em equivalentes fisiológicos ou sucedâneos. O simples beijo não integraria o crime, assim como a simples carícia comum.
O ordenamento penal brasileiro preserva o crime de bigamia, mas revogou o delito de adultério, que continua como infração aos deveres do casamento. É o que se lê da Lei 11.106, de 28 de março de 2005, que revogou o artigo 240 do Código Penal.
É certo que, com a celebração do casamento, surgem direitos e obrigações para ambas as partes, previstos no artigo 1.566 do Código Civil, quais sejam: a) fidelidade recíproca; b) vida em comum, no domicílio conjugal; c) mútua assistência; d) sustento, guarda e educação dos filhos; e) respeito e consideração mútuos.
Há o ensinamento de que a fidelidade recíproca decorre da organização monogâmica da família, sendo um dever negativo, que requer abstenção da conduta, no sentido de não praticar atos que acarretem na infidelidade de um dos cônjuges.
“(...) A família é o centro de preservação da pessoa e base mestra da sociedade (art. 226 CF/88) devendo-se preservar no seu âmago a intimidade, a reputação e a autoestima de seus membros.” (STJ, REsp 922.462 – SP, Órgão Julgador: Terceira Turma, Relator: Ricardo Villas Bôas Cueva, Julgamento: 04.04.2013, Publicação: 13.05.2013).
Há entendimentos de que não só o adultério viola o dever de fidelidade recíproca, mas também atos que transgridam a confiança conjugal, como, por exemplo, o namoro virtual. Em outras palavras, quando a conduta gera situações desrespeitosas e ofensivas à honra do outro cônjuge, tem-se a violação do dever de fidelidade recíproca.
Daí o reconhecimento da organização monogâmica da família.