I – O FATO
Segundo o Estadão, em seu site, no dia 3 de fevereiro do corrente ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deve mudar regras para que empresas peçam o uso emergencial de vacinas para covid-19 no Brasil, e facilitar a entrada da Sputnik V. A agência estuda retirar a exigência de que estudos de fase 3 estejam em andamento no País para conceder este aval.
A discussão ocorre no momento em que a Anvisa é pressionada para liberar o uso do imunizante, desenvolvido pelo Instituto Gamaleya, da Rússia. No Brasil, a União Química afirma que pode receber 10 milhões de doses prontas do imunizante até março. Além disso, entregar 150 milhões de unidades em 2021, somando a produção que seria feita no Brasil.
A Sputnik V tem eficácia de 91,6% contra casos sintomáticos da covid-19. Os dados, avaliados por pesquisadores independentes foram publicados na terça-feira, 2, na revista científica The Lancet. A vacina já está sendo aplicada na Rússia e em outros países, como Argentina e Argélia.
O governo da Bahia quer comprar diretamente a vacina Sputnik V, sem a intermediação do governo federal, mas o imunizante não realizou a fase 3 de testes no Brasil — o requisito fundamental para que um laboratório possa pleitear um pedido de uso emergencial à Anvisa.
Sabe-se que o Governo da Bahia requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF), na noite de dia 16 de janeiro deste ano, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) para que seja permitido à Bahia e aos demais Estados a possibilidade de importar e distribuir vacinas contra Covid sem registro na Anvisa, desde que registradas perante uma Agência Reguladora Regional de Referência, bem como de iniciar a vacinação em seu território, independentemente do início da vacinação nacional.
A Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE) alegou haver inconstitucionalidade parcial do art. 16 da Medida Provisória nº 1.026/2021, postulando que seja atribuído, de acordo com a Constituição, um caráter puramente exemplificativo ao rol das agências sanitárias ali citadas para admitir a importação e distribuição de vacina que ainda não tenha sido registrada na Anvisa e se houver registro por agência regional de referência certificada pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS). Solicitou, ainda, medida cautelar até a decisão final da ADIN.
A emenda ficou pior do que o soneto.
O Senado aprovou, no dia 4 de fevereiro de 2021, a MP (medida provisória) 1.003 de 2020, que autoriza o governo a aderir ao consórcio da OMS (Organização Mundial da Saúde) para aquisição de vacinas contra o coronavírus, o Covax Facility.
A medida ainda estabelece prazo de até 5 dias para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorize o uso emergencial no Brasil de vacinas contra a covid-19 que já tenham aprovação internacional.
Será possível, dessa forma, agilizar a concessão de autorização para a vacina Sputnik V, do instituto Gamaleya. A vacina do instituto russo se tornou uma nova aposta do governo federal. A medida provisória foi aprovada pelos senadores de forma simbólica.
A medida prevê que a Anvisa conceda autorização para o uso emergencial de qualquer vacina autorizada pelos órgãos regulatórios de Estados Unidos, União Europeia, Japão, China, Canadá, Reino Unido, Coreia do Sul, Rússia e Argentina. A medida pode agilizar a importação, a distribuição e o uso das vacinas no Brasil.
II – A COMPETÊNCIA DA ANVISA DETERMINADA POR LEI CONSTITUCIONAL
Data vênia, não assiste razão ao governo do Estado da Bahia.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é uma autarquia fundada pela Lei 9.782/99 com o intuito de exercer o controle sanitário dos serviços e produtos que são submetidos à vigilância sanitária, sejam eles nacionais ou importados, como por exemplo os alimentos, medicamentos, cosméticos, derivados de tabaco, entre outros.
Caberá à ANVISA o papel determinante de aprovação com relação a aplicação de vacinas que combatam o terrível mal da COVID-19.
O papel da ANVISA, dentro de uma devida discricionariedade técnica, é de ser agente normatizador na área de saúde.
A ANVISA, assim como as demais agências regulatórias, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, e não primária, como faz o Legislativo, por lei, ou o Executivo, por medidas provisórias (com os limites de urgência e necessidade dados pela Constituição).
Não cabe ao legislador primário uma função regulatória. Esta cabe às agências reguladoras. Disse bem Justen Filho (Direito das Agências Reguladoras Independentes, 2002) que" a função regulatória (ou reguladora) visa a realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, traduzindo "em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores".
Daí porque bem resumiu Carlos Roberto Siqueira Castro (A Constituição aberta e os direitos fundamentais, pág. 213) que a competência normativa exercida pelas Agências Reguladoras, inserida no sistema de separação de poderes, e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundível com o "poder regulamentar", primário, de competência do chefe do Poder Executivo, que se faz através de regulamentos de execução (reproduzindo de forma analítica a lei, ampliando-a, se for o caso, e completando-a segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos e detalhes que a lei expressa ou implicitamente outorga à esfera regulamentar). O poder regulamentar do Executivo, lembre-se, envolve regulamentos (decretos) de regulamentação e regulamentos de organização, não autônomos, pois a Constituição não os permite.
As Agências Reguladoras, verdadeiras autarquias, como é o exemplo da ANVISA, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, desde que observadas as normas hierarquicamente superiores. Essa função normativa é secundária, repita-se.
Qualquer iniciativa que seja tomada, seja pelos governos estaduais ou municipais, sem o amparo da ANVISA, estará sujeita às penas da lei.
III - A DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA EXERCIDA PELA ANVISA
A medida provisória questionada deve ser interpretada à luz do que determina o texto da Lei 9.782/99.
Quer o Estado da Bahia através da ação constitucional ajuizada amputar uma competência que é dada à ANVISA, ou seja da discricionariedade técnica.
A discricionariedade técnica é criação doutrinária e jurisprudencial de alguns países, tendo seu principal defensor o Estado Italiano, mas vale consignar os Estados da Espanha e de Portugal como integrantes dessa construção. Trata-se não de outra forma ou classificação dentro dos poderes da Administração, mas da utilização de critérios técnicos decorrentes na maior parte dos casos de pessoas ou entidades especializadas, para preenchimento de normas muito genéricas que ensejam o exercício de discricionariedade pelo Poder Público.
Os ditos critérios técnicos de um modo geral são decorrentes da ciência e das técnicas-profissionais amplamente aceitas pela sociedade, contudo essas não implicam em uma aceitação irrestrita, pois como em qualquer área do conhecimento existem divergências. Não se pode, angelicamente, pensar que quando a Administração utiliza o parecer X favorável ao caso hipotético, não rejeitou o Y por ser contrário.
Justamente neste ponto é que permanece a margem discricionária dentro dos limites técnico-científicos. Todavia, não ocorrendo situações divergentes, ou mesmo díspares, em grau inferior, a atividade administrativa permanecerá vinculada, não à lei, mas aos critérios técnicos os quais estabeleceram ditames claros e de aceitação unânime pela comunidade científica.
Na doutrina italiana, Massimo S. Giannini entende que a discricionariedade técnica é um caso especial da teoria dos conceitos indeterminados, que requerem a aplicação de critérios técnicos para a sua execução. No entanto, entende que discricionariedade pura e discricionariedade técnica são termos nitidamente diferenciados, consistindo a primeira numa ponderação de interesses e numa eleição entre alternativas com a finalidade de satisfazer o interesse público. Já a segunda é mera atribuição da Administração para apreciar uma hipótese de fato delimitada por um conceito jurídico indeterminado mediante critérios técnicos
A posição aproxima-se da inicialmente defendida por Frederico Cammeo. Contudo, em seu Corso di Diritto Amministrativo, reconhecerá que a discricionariedade técnica se afirmará não apenas pelo recurso à técnica para a compreensão de conceitos imprecisos contidos nas normas, mas evidenciará a necessidade de recurso também a critérios de oportunidade para uma decisão conforme o interesse público. Logo, a discricionariedade técnica não seria substancialmente diferente da discricionariedade “pura”, seria apenas mais limitada.
Considera-se que o ordenamento jurídico em determinadas hipóteses concede, de maneira reservada, à Administração, poderes de valoração técnica. Embora o autor italiano assegure que não se trata de discricionariedade, essas hipóteses escapariam ao controle jurisdicional. No entanto, não basta o caráter opinativo da técnica para excluir na hipótese o controle judicial; cumpre averiguar se a lei não pretendeu atribuir ao Judiciário a opinião final. A reserva de Administração, por sua vez, pode se revelar pela especialização da Administração sobre a matéria, pela participação popular na definição do conteúdo do ato administrativo ou ainda pelo maior número de opiniões colhidas no seio da Administração. Em cada caso é preciso avaliar qual é a intenção da lei, para apurar se ela deseja realmente que a decisão final fique a cargo da Administração. É preciso, enfim, captar qual é o sentido mais conforme à democracia e ao pluralismo. Esses seriam cuidados a serem observados para que a chamada discricionariedade técnica não se transforme em imposição.
A discricionariedade pura ocorre quando a lei usa conceitos que dependem da manifestação dos órgãos técnicos, não cabendo ao administrador senão uma única solução juridicamente válida.
A discricionariedade técnica própria ocorre quando o administrador se louva em critérios técnicos, mas não se obriga por eles, podendo exercer seu juízo conforme critérios de conveniência e oportunidade. É o caso da atuação das chamadas Agências Reguladoras.
A discricionariedade técnica comporta opções mais restritas.
Lembro a posição Antônio Francisco de Souza (A discricionariedade administrativa, Lisboa, Danúbio, 1987, pág. 307):
"A natureza e dimensão desta "discricionariedade técnica" varia, porém, de pais para o país, é mesmo dentro de cada país que a adota que ela permanece obscura. Para uns, trata-se de um poder livre, para outros, de um poder vinculado, mas que não é suscetível de ser controlado pelos tribunais administrativos, para outros, de um poder vinculado que deve ser, ainda que não integralmente controlado judicialmente, para outros ainda, a sua natureza varia de caso para caso".
Afirmou Odete Medauar (Poder discricionário da administração, RT, n. 610): "A distinção entre discricionariedade pura e discricionariedade técnica teria, segundo Piras, um sentido de apontar limites dados pela lei nesse ou naquele caso de discricionariedade. Mas, como Mortati, Piras, FIorini e Giannini, afirmamos o caráter unitário da discricionariedade na sua essência: podem variar os assuntos ou matérias sobre os quais se exerce.
O recurso a conhecimentos técnicos pode ser necessário em vários momentos da atividade administrativa; mas, esses conhecimentos e dados representam somente um aspecto vinculado do poder discricionário em determinada decisão, ou a Administração fica ainda, com a possibilidade de cotejar vários critérios técnicos para determinar qual o mais eficaz e conveniente.
A avaliação de Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, por sua vez, aponta em outro sentido. Afirmam o seguinte: em respeito à presunção de legitimidade dos atos administrativos, não se mostra possível que o juiz (ou outro órgão de controle), no exame fático, desconsidere fundamentos técnicos apresentados pela Administração em favor de argumentos contrários, também de índole técnica, levantados por particulares ou por auxiliares, como os peritos. Os autores consideram que se o juiz pode, sim, avaliar questões técnicas, não pode, contudo, tomar a si opções técnico-políticas. Assim, se há mais de uma técnica possível a seguir, a escolha entre elas cabe à discricionariedade da Administração. Essa é uma questão de mérito administrativo, acerca da decisão mais conveniente e adequada. O que não autoriza falar em ausência de controle, mas de limites ao controle. É uma tentativa de assegurar que o interesse público não sucumba diante da mera desconfiança a respeito da procedência do ato administrativo que o alberga. Perante o impasse, a única solução juridicamente plausível, por respeitar o sistema de aplicação e de controle dos atos administrativos, é manter a eficácia do ato impugnado perante o órgão de controle.
IV – O LEGISLATIVO NÃO PODE SUBSTITUIR O PAPEL DA ANVISA
Vem a pergunta: Pode o legislativo se substituir à ANVISA e estabelecer um prazo exíguo de cinco dias para tal aprovação? Pode o Legislativo, ainda, determinar a vacinação no Brasil, sem a autorização da ANVISA, baseado em laudos e pareceres técnicos outros oriundos do exterior?
Parece-me que não.
Ao que parece, os parlamentares brasileiros se consideram mais esclarecidos do que os técnicos de seu país que atuam na ANVISA.
O papel do Congresso é outro: cobrar da Anvisa eficiência, transparência e acompanhar seus processos. Mas não substitui-la em suas funções.
Incabível, outrossim, que insumos, vacinas, sejam aplicados sem autorização técnica da ANVISA, no exercício de sua discricionariedade técnica, pois a aprovação de entidades técnicas no exterior não substitui, em solo brasileiro, a decisão da autarquia especial que é aqui enfocada.
Legislar é função do Poder Legislativo. A regulação, oficio da ANVISA, é tarefa e função administrativa, não propriamente vinculada, mas discricionária.
V – CONCLUSÕES
Estar-se-ia na tentativa de revogar normas gerais editadas pela União. Ora, o Supremo Tribunal Federal não é legislador positivo. É legislador negativo. Não pode o governo do Estado da Bahia, a pretexto de facilitar a vacinação dos baianos e de outros que sejam beneficiados, pedir ao STF, por via transversa, pelo controle concentrado de constitucionalidade, a revogação de uma norma jurídica.
Por outro lado, será caso de o presidente da República vetar o texto que vem do Legislativo estabelecendo esse prazo de 5 (cinco) dias, que é político, não técnico. Caso vete e o Legislativo derrube esse veto, será caso de ajuizamento - assim sim - de Ação Direta de Inconstitucionalidade pela ANVISA, ou outro ente legitimado. Aí, sim, estará o Supremo Tribunal Federal exercendo o seu verdadeiro papel, que é de ser legislador negativo.