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A voz dos outros: os direitos dos dubladores no Brasil

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22/02/2021 às 15:30

Resumo:


  • A dublagem, apesar de sua relevância econômica no entretenimento, carece de regulação específica no Brasil, gerando incertezas quanto aos direitos dos dubladores e dos titulares das obras audiovisuais.

  • Existem três regimes potencialmente aplicáveis à proteção dos dubladores: direitos de autor (caso haja criação original), direitos conexos (como intérpretes ou executantes) e direito de personalidade sobre a voz, cada um com suas particularidades e limitações.

  • A jurisprudência brasileira é inconsistente e contraditória, refletindo a falta de clareza legislativa, e as decisões recentes do TJSP, em especial, tendem a ser menos generosas na garantia dos direitos dos dubladores, possivelmente em reação ao volume de ações por um mesmo autor.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Há grande discrepância entre as decisões judiciais que envolvem os direitos dos dubladores, o que reforça a insegurança jurídica sobre esse setor.

1. Introdução

Desde o lançamento do primeiro filme falado, “O Cantor de Jazz”, de 1927,[1] a dublagem se consolidou como um recurso essencial para a disseminação do audiovisual, seja dando voz às animações, seja permitindo o acesso à obra por audiências estrangeiras, em seu idioma materno. Atualmente, a dublagem é uma indústria bem consolidada em todo o mundo, tendo uma participação crucial não apenas no cinema e na televisão, como também na publicidade e no mercado de videogames, hoje em franca ascensão. Não obstante sua relevância econômica, os direitos dos dubladores carecem de regulação específica no Brasil, o que expõe tanto esses profissionais, como os titulares dos direitos sobre as obras em que atuam, a um cenário de indefinição jurídica e, portanto, muitas vezes, proteção inadequada.

Este artigo propõe-se a traçar um quadro das atuais formas de tutela encontradas pelos dubladores no Direito Brasileiro. Assim, analisaremos que, apesar da ausência de um regime específico, existem, hoje, 3 (três) institutos que podem ser aplicados para disciplinar a dublagem: (i) os direitos de autor; (ii) os direitos conexos dos intérpretes; e (iii) a tutela da voz como direito de personalidade.[2]

Ao discorrermos sobre esses mecanismos de proteção, verificaremos como a lei falha em estabelecer uma delimitação clara entre eles, de modo que resta um grau de incerteza quanto às diferenças entre os direitos atribuídos por cada um, bem como quanto à hierarquia nos casos em que há conflito em sua aplicação (ainda que, como apontaremos, a legislação sugere uma prevalência aos direitos de autor e elenca mais condutas no seu rol de prerrogativas de ordens patrimonial e moral). Nessa linha, mostraremos também como esse cenário nebuloso se observa especialmente nas obras coletivas, quanto à possibilidade de cessão dos direitos dos atores e artistas que dela participa, bem como quanto à forma de se consentir com tal cessão.

Veremos, ainda, como os tribunais brasileiros têm entendido a aplicação desses regimes nos litígios entre dubladores e titulares de direitos sobre obras audiovisuais. Assim, traremos tanto alguns casos paradigmáticos, que ilustram alguns dos debates levantados na parte teórica deste artigo, bem como uma análise quantitativa de acórdãos proferidos pelo sobre o tema pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no espaço de 1 (um) ano (entre agosto de 2018 e agosto de 2019), a fim de se identificarem tendências do Judiciário (ao menos no que diz respeito daquele estado) quanto à matéria.[3] Dessa forma, este artigo propõe-se a jogar luz sobre as contradições – seja em relação a outros julgados, seja em face do que dispõe a legislação – observadas nesses julgados, o que cria insegurança quanto à regulação da dublagem, especialmente em face do volume massivo de ações sobre a matéria que foram decididas por aquele tribunal, a partir de 2014.

Por fim, apresentaremos nossas conclusões.


2. Regimes aplicáveis à proteção dos dubladores

Como adiantamos, inexiste hoje uma disciplina jurídica própria para regular a dublagem no Brasil. Dessa forma, encontramos 3 (três) regimes que podem ser utilizados para tutelar os dubladores, a depender das peculiaridades do caso concreto. Passaremos a analisá-los.

Por mais que, conforme veremos no tópico 3, não encontramos decisões que, no caso concreto, apliquem o direito de autor, iniciaremos por este instituto, uma vez que – como explicaremos – é, dentre as 3 (três) categorias de que cuidaremos, aquela mais bem regulada em nossa legislação, o que nos permitirá uma melhor visão sobre quais os direitos que podem ser atribuídos ao dublador (já que, como será abordado, algumas das suas disposições parecem se aplicar também aos demais regimes considerados).

2.1. Direitos de Autor

A legislação brasileira atribui a todo autor a prerrogativa de controle sobre as suas criações artísticas. Nesse sentido, a Constituição de 1988 prevê que aos autores pertence “o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”(art. 5º, XXVII), bem como “o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem”(art. 5º, XXVIII, “b”). Essa tutela (assim como os direitos conexos e a tutela da voz como direito de personalidade, de que trataremos adiante), ressalte-se, independe de o autor ser famoso ou anônimo.[4]

Trata-se de um instituto poderoso que concede direitos de ordem patrimonial (como a exclusividade sobre o aproveitamento econômico da obra, cf. artigos 28 e 29 da Lei nº 9.610/1998 – a Lei de Direitos Autorais, ou LDA) por prazos longos – em regra, até 70 (setenta) anos, a contar de 1º de janeiro do ano seguinte à morte do autor (cf. art. 41 da LDA). Ademais, preveem-se também direitos morais (dos quais falaremos mais detalhadamente adiante), como as prerrogativas de ter a autoria atribuída (ou omitida) à obra; de opor-se à atribuição de autoria a terceiros; de manter a integridade da criação; de modificá-la; de conservar seu ineditismo, de tirá-la de circulação e de ter acesso a exemplar único e raro (art. 24). Estes direitos de ordem moral, frise-se, são inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis, de modo que o autor não pode cedê-los ou abdicar deles, estendendo-se para além do término dos direitos patrimoniais (art. 27).

Dadas suas características tão protetivas, este regime é uma alternativa muito vantajosa ao dublador para garantir os direitos sobre a sua contribuição. Note-se, porém, que a LDA não é expressa quanto ao reconhecimento da dublagem como uma obra passível de proteção por esse instituto. Se, por um lado, a LDA não lista a dublagem nos exemplos do seu artigo 7º, que trata das criações protegíveis; por outro, estabelece caráter exemplificativo a esse rol. Desse modo, quaisquer obras podem ser tuteladas pelos direitos de autor, desde que consistam em “criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível”. Em sentido análogo, o artigo 11, ao definir a figura de autor, também se concentra sobre o ato de criação, ao dizer que “[a]utor é a pessoa física criadora da obra[...]”

Dessa forma, resta a dúvida de se a dublagem poderia se enquadrar nessa definição. Tudo, portanto, dependerá do caso concreto. Na hipótese de uma contribuição original do dublador, fruto da sua expressão pessoal, que atribua à obra um caráter único, teríamos a dublagem como uma espécie de obra derivada (isto é, aquela que, “constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária”, cf. art. 5º, VIII, “g”), passível de proteção por direitos de autor. É o caso de quando o dublador cria um bordão[5] ou de uma forma particular de vocalização, que permita a identificação do personagem – entendemos, como exemplos, a autoria da forma de falar dos personagens Pato Donald e Salsicha, do Scooby-Doo, conhecidas por diferentes gerações.

Nesse sentido, a atuação do dublador seria semelhante a uma adaptação ou tradução, as quais são protegidas pela LDA, desde que consistam em uma criação intelectual nova (art. 7, XI).[6] Lembramos, contudo, que a adaptação e a tradução (e, por consequência, também a dublagem) somente podem ser realizadas com a autorização do titular dos direitos patrimoniais sobre a obra, conforme artigo 29, III e IV) – salvo caso se trate de obra caída em domínio público (art. 14).

No cenário mencionado acima – isto é, a contribuição original à obra (exemplificadamente, por meio da criação de um bordão ou uma forma particular de vocalização) – a dublagem pode ser considerada uma obra intelectual nova e, portanto, passível de proteção por direitos de autor. Note-se, nesse sentido, que é amplamente aceita a extensão desse regime não apenas à obra em si, como também aos personagens que a integram (tratados, portanto, como criações autônomas). Assim, caso a performance do dublador seja capaz de atribuir uma característica vocal ao personagem, por meio da qual este seja identificado, poder-se-ia atribuir a tal dublagem o status de criação intelectual, sujeita aos direitos previstos pela LDA às demais obras.[7]

Por outro lado, na hipótese de não haver, na dublagem, a criação de nenhum elemento original, sendo apenas a projeção normal da voz do dublador, dificilmente seria possível o reconhecimento de direitos de autor sobre sua performance. Não obstante, como veremos no tópico 3, apenas 1 (um) acórdão encontrado em nossa pesquisa sugere essa possibilidade (ainda que, no caso concreto, tenha identificado que não se aplicaria, uma vez que as vozes características em questão não teriam sido criadas pelos dubladores que moveram a ação).[8]

 2.1.1. Obra coletiva

Um ponto a se ter em mente quando consideramos o regime autoralista é que, por mais que a dublagem venha a ser considerada uma criação derivada, em função da originalidade que o dublador possa expressar no caso concreto, tratar-se-á, no fundo, de uma contribuição individual a uma obra coletiva – seja a tradução de um filme para outro idioma, a sincronização de voz com uma animação, a locução para uma peça publicitária ou um videogame. Conforme define a LDA, é obra coletiva aquela realizada “por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma” (art. 5º, VIII, “h”).

Assim, por mais que tanto a Constituição (art. 5º, XXVIII, “a”), como a LDA (art. 17), assegurem a proteção às participações individuais nessas obras coletivas, fato é que tal tutela não pode ser exercida indistintamente por cada participante (incluindo o dublador), sob risco de ameaça à preservação da criação final. Nesse sentido, nossa lei autoralista atribui ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra (art. 17, § 2º). De igual maneira, o artigo 81 estabelece que a “[…]autorização do autor e do intérprete de obra literária, artística ou científica para produção audiovisual implica, salvo disposição em contrário, consentimento para sua utilização econômica”. Ou seja, se o dublador autoriza o uso da dublagem em uma produção, pressupõe-se que consente também com seu uso comercial (como veremos no tópico 2.3, não há previsão igual para o direito de personalidade da voz, o que leva a dúvidas quanto a se a mesma regra se aplicaria caso consideremos a dublagem sujeita a esse regime).

Note-se que o artigo em questão fala em consentimento para uso comercial da obra, mas não diz expressamente que essa anuência implica em uma cessão total dos direitos do autor ou do intérprete. Não obstante, conforme analisaremos no tópico 3, muitas decisões judiciais tratam a autorização tácita para finalidade econômica como sinônimo de cessão (ainda, de acordo com o artigo 13 da Lei nº 6.533/1978 seria proibido quando a criação ou interpretação resultar de prestação de serviço, como veremos adiante). Outras, por sua vez, entendem que, a despeito da autorização para uso comercial da obra, o dublador (seja autor ou intérprete) deve ser remunerado por cada exibição da obra.

 2.1.2. Remuneração

De qualquer forma, o consentimento pressuposto para uso comercial da produção audiovisual (cf. art. 81 da LDA) não significa que nenhum valor seja devido ao dublador pela sua contribuição, nem que a autorização englobe toda e qualquer exploração econômica da obra. Assim, o dublador continua tendo protegidos os seus interesses de ordem patrimonial (e moral, conforme discorreremos a seguir) sobre a dublagem, como componente da obra coletiva (seja na forma de direitos de autor, nas hipóteses que traçamos acima, seja como direito conexo ou como direito de personalidade sobre a voz, conforme analisaremos respectivamente nos tópicos 2.2 e 2.3). Desse modo, a LDA estabelece que o contrato com o organizador especificará a contribuição do participante, incluindo a sua remuneração (art. 17, § 3º).

A esse respeito, surgem dúvidas quanto à natureza da remuneração paga ao dublador, seja como autor, como artista intérprete ou como titular da voz utilizada. Parte da doutrina, representada por Abrão (2014, p. 478) entende que a remuneração pela cessão ou licenciamento de direitos de autor ou conexos (e, possivelmente, os direitos de voz não se confunde com aquela que é devida em função da prestação de serviços ou da relação empregatícia, que compensa as horas e o esforço dispendido pelo autor, artista ou dublador. Mais adiante (2014, p. 536), a autora explica a diferença entre as duas relações jurídicas:

Contrato de trabalho, ou de prestação de serviços, e contrato de cessão de direitos sobre obra intelectual, não se confundem. As diferenças são inúmeras: a) a criação intelectual e artística é livre, ainda que nela interfir ao empregador ou o tomador de serivços; b) no contrato de cessão as partes estão em equilíbrio contratual e jurídico, sem relação de dependência, onde o sujeito aparentemente mais frágil na relação, o autor, é pessoa artística e intelectualmente privilegiada, criadora de uma res especial; c) no contrato de cessão de direitos o objeto é a obra, enquanto que no de trabalho, o objeto é a energia física que emana da pessoa do prestador laboral, sujeito a regras de direcionamento e de conduta; d) a cessão de direitos, e mesmo a licença, geram efeitos muito além da vida da pessoa do autor ou do intérprete, protegendo a obra por setenta anos contados de 10 de janeiro do ano subsequente ao da publicação ou da gravação, se publicada no Brasil, a partir de junho de 1998, diferentemente do contrato de trabalho que finda com o termo do prazo ajustado, ou a rescisão; e) não há recebimento de salário na exploração de obra autoral ou interpretação, mas de rendimentos de capital, os chamados royalties, decorrentes da exploração dos diretios patrimoniais, a contrapartida econômica gerada a partir da publicação, ou de qualquer outra forma de utilização da obra literária, artística ou científica (ABRÃO, 2014, p. 536).

Não obstante, como veremos no tópico 3, para parte da jurisprudência, o fato de o dublador ter recebido alguma remuneração implica no seu consentimento implícito à exploração comercial da obra audiovisual (em função do art. 81, supramencionado) e, por consequência, também a cessão dos direitos (a despeito do art. 13 da Lei nº 6.533/1978, de que trataremos adiante), não sendo assim, nenhum valor adicional devido àquele.

Note-se, porém, que o artigo 81 fala de uma autorização pressuposta para o aproveitamento econômico da obra audiovisual, a partir do consentimento do autor (ou artista intérprete) na realização de tal produção. No entanto, o dispositivo nada diz referente à possibilidade de que esse consentimento para que se crie a obra seja implícito. De um lado, pode-se entender que seria necessário autorização expressa, especialmente em vista da regra de interpretação restritiva dos contratos de direitos de autor e conexos (como explicaremos no tópico 2.2). De outro, contudo, observamos uma série de decisões judiciais (conforme mencionado acima, e que exploraremos no tópico 3) levando à conclusão de que, em o dublador recebendo um valor para prestar seus serviços, não só haveria autorização tácita para exploração comercial, como também para a realização da obra audiovisual (e, como mencionamos, também a cessão dos direitos, apesar da proibição indicada no artigo 13 da Lei nº 6.533/1978, que abordaremos mais adiante).

2.1.3. Limites aos contratos

Como mencionado, os contratos de direitos autorais (incluindo direitos conexos – como veremos no tópico 2.2 – e possivelmente como os contratos referentes a direitos de personalidade, conforme abordaremos no tópico 2.3) devem ser interpretados restritivamente (arts. 4º e 49, VI).[9]

Da mesma forma, o artigo 49 da LDA traça uma série de limites para os contratos de cessão de direitos patrimoniais de autor (o que inclui os direitos pecuniários sobre a dublagem, se ela for considerada suficientemente original, na forma descrita acima):

II - somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita;

III - na hipótese de não haver estipulação contratual escrita, o prazo máximo será de cinco anos;

IV - a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato, salvo estipulação em contrário;

V - a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato;

Em igual sentido, ditam os artigos 50 e 51:

Art. 50. A cessão total ou parcial dos direitos de autor, que se fará sempre por escrito, presume-se onerosa.

[...]

§ 2º Constarão do instrumento de cessão como elementos essenciais seu objeto e as condições de exercício do direito quanto a tempo, lugar e preço.

Art. 51. A cessão dos direitos de autor sobre obras futuras abrangerá, no máximo, o período de cinco anos.

Parágrafo único. O prazo será reduzido a cinco anos sempre que indeterminado ou superior, diminuindo-se, na devida proporção, o preço estipulado.

Em suma, se for considerada a proteção da dublagem por direitos autorais (isto é, nos casos em que o dublador expressar sua originalidade, criando uma obra derivada), por mais que a titularidade sobre o conjunto da obra coletiva pertença ao organizador, a LDA limita a forma de cessão dos direitos patrimoniais, a qual deverá ser por escrito – em caso contrário, terá prazo máximo de 5 (cinco anos) – e onerosa (salvo previsão em sentido contrário); válida apenas para o país em que firmado o contrato (salvo estipulação em contrário) e apenas para modalidades existentes à data do contrato; e, em caso de contrato para obras futuras, limitada ao prazo máximo de 5 (cinco) anos.

Também o parágrafo 1° do artigo 81 (supramencionado) determina que, na hipótese de o autor ou intérprete autorizar produção audiovisual com exclusividade, esta deverá ser prevista em cláusula expressa e limitada a 10 (dez) anos após a celebração do contrato.

Ausente a cessão total dos direitos, o organizador da obra, em teoria, deverá remunerar o dublador por qualquer nova exibição dessa criação, bem como outras formas de utilização, a exemplo da inserção da dublagem em outras obras ou a veiculação da obra original dublada em outras mídias (por exemplo, de DVD para blu-ray).[10] Não obstante, como veremos no tópico 3, há decisões que pressupõem uma cessão irrestrita dos direitos dos dubladores (sejam de autor ou conexos), em função de este ter recebido um valor para a prestação de seus serviços, mesmo na ausência de disposições contratuais por escrito.

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2.1.4 Vedação legal à cessão: é aplicável?

No estudo sobre a possibilidade de contratos ou cláusulas de cessão sobre direitos autorais, importante considerar o artigo 13 da Lei nº 6.533/1978, que regulou as profissões de artista e técnico de espetáculos:

Art. 13 - Não será permitida a cessão ou promessa de cessão de direitos autorais e conexos decorrentes da prestação de serviços profissionais.

Parágrafo único - Os direitos autorais e conexos dos profissionais serão devidos em decorrência de cada exibição da obra.

Sendo anterior à LDA atual, de 1998, persiste até hoje a dúvida quanto a se a vedação da cessão de direitos de autor e conexos teria sido revogada em nosso ordenamento. Isso porque, se, de um lado, o artigo 115 da nova lei autoralista explicitamente manteve a vigência da Lei nº 6.533/1978, de outro, previu o regime da cessão. Assim, há tanto decisões judiciais que entendem o artigo 13 ter sido revogado,[11] como não ter sido revogado por tratar da proibição de cessão de direitos morais, e não patrimoniais.[12] No tópico 2.2, veremos como essa discussão é especialmente mais complexa quando se trata da cessão de direitos conexos.

De igual maneira, veja-se que o artigo em questão fala em “direitos autorais e conexos”, em vez de “direitos de autor e conexos”. Como já explicado, a expressão “direitos autorais” abrange ambos os regimes – isto é, de autor e conexo. Ainda assim, dados os termos adotados pelo artigo 13, há autores como Ascensão (1997, p. 24), para quem a proibição à cessão somente se aplicaria para direitos conexos – e não direitos de autor –, uma vez que os artistas – objeto da lei – tipicamente seriam intérpretes, e não criadores de obra nova. O tema, contudo, é controvertido, havendo outros autores, como Costa Netto (2019, p. 400) que entendem a proibição ser aplicável também a direitos de autor, desde que resultantes da prestação de serviços ou relação empregatícia na área de espetáculos, como aqueles relativos ao roteiro, ao cenário, à coreografia ou à direção de arte e fotografia. De forma análoga, pode-se argumentar que não estariam cobertos na vedação os direitos de imagem, como abordaremos no tópico 2.3.

Veja-se, porém, que, em sendo a Lei nº 6.533/1978 uma norma de Direito de Trabalho, pode-se entender que suas disposições (inclusive a proibição à cessão de direitos autorais) só se aplicaria para os casos em que o autor ou intérprete cria ou interpreta em sede de uma relação empregatícia. Nesse sentido, note-se que o artigo 13 fala em “[...]direitos autorais e conexos decorrentes da prestação de serviços”, sem, no entanto, definir se se refere a serviços eventuais ou aqueles realizados dentro de contrato laboral.

Essa é a opinião de Martha Macruz de Sá, para quem “somente quando os artistas [...] forem contratados com vínculo trabalhista é que a cessão dos direitos conexos não será permitida” (apud ABRÃO, 2014, p. 401). Ou seja, vencido o vínculo empregatício e de prestação de serviços retoma o titular do direito autoral a autonomia de negociação patrimonial. Nessa linha, Abrão (2014, p. 484) reforça que não necessariamente a prestação de serviços por autores ou artistas se dá em caráter de subordinação: “Admitem a prática e a jurisprudência que a prestação de serviços possa regularmente ocorrer de forma autônoma ou cooperativa, desde que não se realize em fraude a leis trabalhistas”. Já de outro lado, Costa Netto (2009, p. 400) entende que se aplica tanto a regime de emprego como prestação de serviços.

Conforme analisaremos no tópico 3, há decisões judiciais surportando que a cessão de direitos seria proibida apenas entre empregado e empregador – e, curiosamente, um julgado que trasncreve outra obra de Costa Netto, em que o jurista afasta a aplicação de referido artigo, dada a inexistência de relação empregatícia e vulnerabilidade do autor. De igual maneira, por vezes os tribunais ignoram esse dispositivo, ao determinarem que o valor recebido pela dublagem já pressupõe autorização para quaisquer usos posteriores da obra (baseando-se, em alguns julgados, no caput do artigo 81, que já mencionamos).

2.1.5. Direitos morais

Também do ponto de vista da vertente moral dos direitos autorais (tanto direitos de autor, como conexos e direito de personalidade – conforme veremos nos tópicos 2.2 e 2.3), a Legislação traz especificidades quanto às obras coletivas. De um lado, para o caso das criações audiovisuais, a LDA atribui, com exclusividade ao diretor, o exercício dos direitos morais (art. 25). Isso tampouco significa que os direitos morais dos dubladores não sejam tutelados. Pelo contrário: o artigo 17, parágrafo 1º, dita que “qualquer dos participantes, no exercício de seus direitos morais, poderá proibir que se indique ou anuncie seu nome na obra coletiva, sem prejuízo do direito de haver a remuneração contratada”. Em igual sentido:

Art. 81. [...]

§ 2º Em cada cópia da obra audiovisual, mencionará o produtor: [...]

VII - o nome dos dubladores.[13]

Também, o artigo 88:

Art. 88. Ao publicar a obra coletiva, o organizador mencionará em cada exemplar:[...]

II - a relação de todos os participantes, em ordem alfabética, se outra não houver sido convencionada;[14]

Ou seja, por mais que o exercício dos direitos morais sobre a obra, como um todo, caiba ao diretor, há que se observar o cumprimento de direitos morais mínimos. Nesse sentido, é expressamente previsto nos dispositivos acima o direito de atribuição (compreendendo o direito de ser nomeado como participante/dublador, de ter seu nome omitido e de opor-se à atribuição de nome de terceiro pela sua participação ou criação). Note-se que os artigos mencionados acima (arts. 17, § 1º, 81, § 2º, e 88, II) falam em “participante” e em dublador, de modo que se aplicam indistintamente de qual o regime considerado no caso concreto – se direitos de autor, direitos conexos ou direito de personalidade sobre a voz (de que falaremos nos próximos tópicos).

Não obstante, ressalte-se que o artigo 81, parágrafo 2º estabelece a obrigação de nomear os participantes e dubladores ao produtor da obra audiovisual (ou, genericamente, ao organizador da obra coletiva, no caso do artigo 88). Com base nisso, como veremos no tópico 3, muitas decisões eximem as emissoras da responsabilidade por omissão de seus nomes nos créditos, ao passo que outro julgado as consideram culpadas pela violação desse direito moral (em conformidade com a responsabilidade solidária prevista no artigo 104, e a despeito da redação do artigo 108, que explicaremos a seguir).

Para além do direito de atribuição, subsistem ao dublador (quando autor) os direitos morais de (i) opor-se “[...]a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra” (art. 24, IV); e (ii) retirar de circulação a obra ou suspender “[...]qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem” (art. 24, VI).

De forma análoga, como veremos no tópico 2.2, o dublador, caso considerado intérprete ou executante, tem o direito de impedir a desfiguração da interpretação – no caso, a dublagem – conforme artigo 92. Interessante notar que esse dispositivo, referente aos direitos conexos, fala em desfiguração – e não em prejuízo à reputação, honra e imagem, como no caso dos direitos de autor – o que poderia levar dúvidas quanto a diferenças de aplicação entre estes.

Em suma, independentemente da cessão dos direitos patrimoniais, o dublador (se considerado autor ou intérprete) pode impedir o uso da dublagem – seja na obra original para a qual dublou, seja sua inserção em outra obra – de forma incompleta ou com alterações, quando dessa forma se prejudiquem sua honra ou imagem, bem como em contexto que possa produzir o mesmo efeito à sua reputação. Um exemplo disso, seria extrair a voz do dublador de um filme infantil para inseri-la em uma produção pornográfica.

Observe-se, porém, que o direito de arrependimento não é expressamente previsto aos intérpretes e executantes, mas apenas aos autores, restando incerto, portanto, se se aplicaria àqueles.[15] Como abordaremos na próxima seção, há uma previsão de aplicação subsidiária das normas de direitos de autor aos direitos conexos (art. 89), com a limitação, porém, de que tal extensão não afetará as garantias dadas pela lei aos autores (parágrafo único). Assim sendo, o direito de arrependimento, entendemos, não poderia ser exercido pelo intérprete ou executante, quando implique em restrições ao direito de autor.

Já a aplicação destes direitos morais (opor-se a modificações da obra que afetem sua honra, ou a desfigurações; e retirar a obra de circulação) ao regime de direito personalíssimo não é clara na legislação, como trataremos no tópico 2.3.

A respeito dos demais direitos morais de autor, que elencamos acima – (a) de modificar a obra, (b) de conservar seu ineditismo e (c) de acesso a exemplar único e raro da obra – entendemos que apenas este último seria cabível, mesmo que a dublagem seja considerada uma criação original e, portanto, sujeita a direitos de autor.[16] Isso porque, conforme explicamos, o exercício destas prerrogativas tornaria inviável a circulação da obra coletiva – razão pela qual o exercício dos direitos morais da obra audiovisual, vista na sua integralidade, cabem ao direto, como dissemos acima.

2.1.6. Violações e responsabilização

Expusemos acima quais os direitos patrimoniais e morais cabíveis aos autores. Nesse sentido, analisaremos agora quais as consequências previstas para os casos de violação, bem como as partes que podem ser responsabilizadas. Assim sendo, a LDA estabelece diferentes penalidades para os infratores (artigos 102 a 109-A), a depender de quais os direitos patrimoniais ou morais violados.

Veja-se que a lei autoralista responsabiliza não apenas aquele que editar obra indevidamente editada (art. 103), como também, em caráter solidário ao contrafator, aquele que “vender, expuser a venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar a obra reproduzida com fraude [...] com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem”, bem como o importador e o distribuidor da contrafação (art. 104). Como veremos no tópico 3, há decisão que aplica o artigo 104 para estender à emissora que veicula a obra dublada a responsabilidade do estúdio por eventual violação aos direitos (de autor ou conexos) do dublador.

Já no âmbito da violação do direito moral de atribuição, diz a LDA:

Art. 108. Quem, na utilização, por qualquer modalidade, de obra intelectual, deixar de indicar ou de anunciar, como tal, o nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor e do intérprete, além de responder por danos morais, está obrigado a divulgar-lhes a identidade da seguinte forma:

I - tratando-se de empresa de radiodifusão, no mesmo horário em que tiver ocorrido a infração, por três dias consecutivos;

II - tratando-se de publicação gráfica ou fonográfica, mediante inclusão de errata nos exemplares ainda não distribuídos, sem prejuízo de comunicação, com destaque, por três vezes consecutivas em jornal de grande circulação, dos domicílios do autor, do intérprete e do editor ou produtor;

III - tratando-se de outra forma de utilização, por intermédio da imprensa, na forma a que se refere o inciso anterior.

Como já adiantamos no tópico anterior, o artigo 81, parágrafo 2º atribui ao produtor o dever de nomear os participantes e dubladores. Assim, conforme analisaremos no tópico 3 há julgados que eximem e outro que condena as emissoras da responsabilidade por omissão de seus nomes nos créditos, valendo-se também do artigo 104, supramencionado, que estabelece a solidariedade nos casos de violação. Não obstante, note-se que o artigo 108, acima transcrito, impõe a qualquer parte que viole o direito de atribuição (o que, a priori, englobaria tanto o estúdio quanto a emissora) o dever de ressarcir os danos morais sofridos pelo autor – e também pelo intérprete –, bem como de retificar a omissão indevida do nome ou do crédito. Como veremos no tópico 3, porém, tal dispositivo muitas vezes não é aplicado nas decisões judiciais referentes à dublagem.

 2.1.7. Diferenças entre direitos autorais e demais regimes

Conforme visto, o reconhecimento de direitos de autor sobre a dublagem é possível quando este tenha contribuído de forma original, expressando-se por meio de uma vocalização específica ou a criação de características novas, que permitam, por exemplo, a identificação de um personagem. Nestes casos, ainda que a lei estabeleça limitações ao exercício de tais direitos para obras coletivas, permanece uma forma poderosa de tutela patrimonial do dublador – exemplificadamente, nas restrições aos contratos de cessão (salvo pelo impedimento previsto pelo artigo 13 da Lei nº 6.533/1978, dada a discussão abordada quanto a se se aplicaria também aos direitos de autor, ou apenas conexos).

Em suma, a diferença dada pela proteção via direitos autorais, em relação aos outros 2 (dois) institutos que analisaremos a seguir, não é de todo clara na legislação. Ainda assim, frisamos o caráter mais rigoroso do regime autoralista, dando um controle maior por parte do dublador à dublagem. Nesse sentido, em contendo a voz dublada um elemento original (como, por exemplo, uma expressão vocal diferenciada ou o uso de bordões, que atribuem características identificáveis ao personagem), tais elementos não poderiam ser usados em outros contextos (como um novo dublador, por exemplo), sem a prévia autorização do dublador que os criou. A título ilustrativo, entendemos que a reprodução do modo característico de fala de personagens como Pato Donald e Salsicha, do Scooby-Doo (que mencionamos anteriormente), depende da autorização de quem as criou originalmente (ou daquele para quem tiver alienado seus direitos patrimoniais sobre tal expressão original). Forma semelhante de anuência, a nosso ver, não seria exigida quando a tutela se dá apenas por direitos conexos ou de personalidade sobre a voz.

Da mesma forma, como explicamos, em sendo aplicável a tutela via direitos autorais, cabem ao dublador os direitos morais de atribuição, integridade e arrependimento, sendo que, no regime direitos conexos apenas os dois primeiros são garantidos, havendo dúvida quanto à aplicação do terceiro (como exploraremos no próximo tópico) e, em havendo apenas proteção via direito personalíssimo de voz, somente o primeiro é expressamente garantido (ponto que abordaremos no tópico 2.3).

2.2. Direitos Conexos

Conforme explicado no tópico 2.2, tanto a Constituição (art. 5º, XXVIII, “a”) como a LDA (art. 17) tutelam as participações individuais nas obras coletivas. Isso significa que, mesmo na ausência de direitos de autor sobre tais participações (como argumetamos, somente há hipótese de o dublador contribuir com uma expressão original à dublagem – por exemplo, na criação de bordões ou em uma vocalização específica que dê uma identidade particular ao personagem – este regime seria aplicável), ao dublador também é garantida proteção por meio dos direitos conexos (ou direito de personalidade sobre sua voz, ponto ao qual voltaremos na próxima seção).

Nesse sentido, a LDA prevê a figura dos direitos conexos: isto é, uma gama de prerrogativas de ordem patrimonial e moral sobre o artista ou intérprete pela sua performance ou execução de uma obra autoral.

Sob o aspecto patrimonial, a LDA atribui um direito de exclusividade pelo prazo de 70 (setenta) anos, a conta de 1º de janeiro do ano subsequente à fixação do fonograma em que gravada a performance/execução, ou da transmissão, no caso de emissões telemáticas, ou da representação pública da obra, nos demais casos (art. 96).

Essa exclusividade abrange menos condutas do que aquelas garantidas aos autores, tal como vimos no tópico 2.1:

Art. 90. Tem o artista intérprete ou executante o direito exclusivo de, a título oneroso ou gratuito, autorizar ou proibir:

I - a fixação de suas interpretações ou execuções;

II - a reprodução, a execução pública e a locação das suas interpretações ou execuções fixadas;

III - a radiodifusão das suas interpretações ou execuções, fixadas ou não;

IV - a colocação à disposição do público de suas interpretações ou execuções, de maneira que qualquer pessoa a elas possa ter acesso, no tempo e no lugar que individualmente escolherem;

V - qualquer outra modalidade de utilização de suas interpretações ou execuções.

Também sob o aspecto moral, a LDA atribui ao intérprete ou executante menos direitos do que aqueles garantidos ao autor de obra autoral (como elencamos na seção acima):

Art. 92. Aos intérpretes cabem os direitos morais de integridade e paternidade de suas interpretações, inclusive depois da cessão dos direitos patrimoniais, sem prejuízo da redução, compactação, edição ou dublagem da obra de que tenham participado, sob a responsabilidade do produtor, que não poderá desfigurar a interpretação do artista.

Note-se que, tal como os direitos morais de autor, os direitos morais do intérprete ou executante são imprescritíveis, inalienáveis e irrenunciáveis, estendendo-se para além do prazo dos direitos patrimoniais, tal como mencionado acima.

2.2.1. Diferenças em relação à tutela dos direitos de autor

Como podemos observar, a LDA estabelece para o regime dos direitos conexos tutela reduzida em relação aos direitos de autor. No entanto, conforme já adiantamos no tópico 2.2, para além do rol mais comedido de direitos previstos para os intérpretes e executantes (como listado acima), a distinção entre os dois institutos não é de todo nítida. Nesse sentido, leia-se o artigo 89 da LDA:

Art. 89. As normas relativas aos direitos de autor aplicam-se, no que couber, aos direitos dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão.

Parágrafo único. A proteção desta lei aos direitos previstos neste artigo deixa intactas e não afeta as garantias asseguradas aos autores das obras literárias, artísticas ou científicas.

Ou seja: de um lado, a LDA dispõe aplicação subsidiária das regras do direito de autor aos direitos conexos, sem delimitar com precisão para quais dispositivos essa extensão é válida. De outro, o mesmo artigo sugere uma prevalência dos direitos de autor sobre o regime de tutela intérpretes e executantes, quando da aplicação das regras daquele regime a estes artistas.[17]

Assim, não resta claro se se estenderiam aos direitos conexos as previsões mínimas estabelecidas pela LDA para os contratos de direitos de autor, explicadas no tópico 2.2: limitação à forma de cessão dos direitos patrimoniais, que deverá ser por escrito – em caso contrário, terá prazo máximo de 5 (cinco anos) – e onerosa (salvo previsão em sentido contrário); válida apenas para o país em que firmado o contrato (salvo estipulação em contrário) e apenas para modalidades existentes à data do contrato; e, em caso de contrato para obras futuras, limitada ao prazo máximo de 5 (cinco) anos.

2.2.2   Direitos conexos na obra coletiva

Veja-se que LDA também estabelece restrições ao exercício dos direitos conexos nas obras coletivas (tal como faz com os direitos de autor, conforme vimos no tópico 2.2). Primeiramente, reiteramos que, pelo artigo 81, a autorização do intérprete (assim como do autor) “[...]para a produção implica, salvo disposição em contrário, consentimento para sua utilização econômica”. Como veremos no tópico 3, parte da jurisprudência usa esse dispositivo para admitir a possibilidade de cessão dos direitos (tema que abordaremos no tópico seguinte), ao passo que, para outras decisões, mesmo diante de autorização um valor seria devido a cada novo uso da obra.

Mais além, dita a LDA:

Art. 90 [...]

§ 1º Quando na interpretação ou na execução participarem vários artistas, seus direitos serão exercidos pelo diretor do conjunto.

Abrão (2014, p. 135) bem explica: “Essa previsão só se aplica quando as reivindicações dos artistas disserem respeito a violações praticadas contra a obra coletiva de que participarem, resguardados o exercício e a tutela dos direitos de cada um quando a ofensa recair apenas sobre uma interpretação.

De forma semelhante, a LDA prossegue:

Art. 92 [...]

Parágrafo único. O falecimento de qualquer participante de obra audiovisual, concluída ou não, não obsta sua exibição e aproveitamento econômico, nem exige autorização adicional, sendo a remuneração prevista para o falecido, nos termos do contrato e da lei, efetuada a favor do espólio ou dos sucessores.

Nesse sentido, de forma a viabilizar a exploração econômica das obras coletivas, a LDA limita as hipóteses de exercício dos direitos conexos, com destaque para a autorização expressa para reprodução da obra, mesmo após o falecimento do artista ou executante, prevista no artigo 92, parágrafo único, transcrito acima.

Ainda assim, tal como explicamos no tópico 2.1.5, alguns direitos morais mínimos são garantidos não apenas aos autores nas obras coletivas, como também aos intérpretes e executantes, de forma análoga: direito de atribuição (conforme arts. 17, § 1º, 81, § 2º, e 88, II) e de opor-se à desfiguração da interpretação (art. 92). Por sua vez, como já adiantamos, entendemos incerto se o direito de retirada seria aplicável aos intérpretes e executantes (já que não expressamente previsto), restando patente apenas que não poderia ser exercido por estes caso implique restrição ao direito de autor, por força do parágrafo único do artigo 89, supramencionado.

2.2.3. Vedação à cessão: aplicável aos direitos conexos?

Conforme já abordamos no tópico 2.1.4, que a proibição à cessão de direitos estabelecida pelo artigo 13 da Lei nº 6.533/1978 se aplica expressamente aos direitos conexos (diferentemente do que ocorre com os direitos de autor, tal como explicamos). Ainda assim, ressaltamos a falta de clareza quanto a se essa restrição valeria também para os casos em que o intérprete performa fora de uma relação empregatícia. Nesse sentido, Martha Macruz de Sá (apud ABRÃO, 2014, p. 488-489):

[A] cessão dos direitos conexos não será permitida quando o artista especificado no mencionado decreto estiver trabalhando sob o regime da Lei nº 6.533/1978, isto é, mediante vínculo empregatício (habitualidade, subordinação e recebimento de salário), mas será permitida para o artista intérprete ou executante quando atuar ou executar obra literária ou artística ou expressões de folclore (inc. XIII, art. 5º, da Lei nº 9.610/1998) e seu esforço físico não for realizado mediante prestação de serviços com vínculo trabalhista.

De igual maneira, como já expusemos, há um debate quanto à recepção do artigo 13, supramencionado, pela LDA atual. Isso porque, ao mesmo tempo em que previu a figura da cessão, a nova lei autoralista expressamente ratificou a Lei nº 6.533/1978 (art. 115). Mais ainda: no que diz respeito aos direitos conexos, essa dúvida se intensifica, em razão do caput e do parágrafo único do artigo 91:

Art. 91. As empresas de radiodifusão poderão realizar fixações de interpretação ou execução de artistas que as tenham permitido para utilização em determinado número de emissões, facultada sua conservação em arquivo público.

Parágrafo único. A reutilização subsequente da fixação, no País ou no exterior, somente será lícita mediante autorização escrita dos titulares de bens intelectuais incluídos no programa, devida uma remuneração adicional aos titulares para cada nova utilização.

Ora, de um lado, a leitura do caput pressupõe a admissão da cessão (haja vista que não se fala em pagamento por cada exibição), desde que delimitado o número de reproduções. Por sua vez, o parágrafo único estabelece que, ultrapassada essa quantidade de exibições, a remuneração seria devida por cada nova reprodução.

2.2.4. Os direitos conexos se aplicam à dublagem?

Postas essas explicações gerais sobre o regime de direitos conexos, passamos à análise se seriam extensíveis aos dubladores, e em quais casos. De um lado, note-se que a LDA não elenca expressamente os dubladores na definição de artistas intérpretes ou executantes:

Art. 5º Para os efeitos desta lei, considera-se:

[...]

XIII - artistas intérpretes ou executantes - todos os atores, cantores, músicos, bailarinos ou outras pessoas que representem um papel, cantem, recitem, declamem, interpretem ou executem em qualquer forma obras literárias ou artísticas ou expressões do folclore.[18]

Por outro lado, pode-se entender que a dublagem se enquadra no trecho que fala em representação de um papel, interpretação ou execução “em qualquer forma”. Como veremos mais adiante, essa parece ser a leitura dos tribunais, que costumam de uma forma geral reconhecer direitos conexos aos dubladores.

Note-se, também, que, caso o dublador de alguma forma cante ou recite, durante a dublagem, não há dúvidas de que subsistiriam direitos conexos sobre a sua interpretação da canção ou da poesia recitada.

Não obstante a possibilidade de encaixar a dublagem na provisão genérica do artigo 5º, inciso XIII, da LDA, mencionada acima (isto é, “qualquer forma” de interpretação ou execução de obra autoral, ou representação de papel), a mesma lei estabelece uma distinção entre artistas intérpretes ou executantes, de um lado, e dubladores, de outro. Isso porque o artigo 81, parágrafo 2º, já citado no tópico 2.2, ao estabelecer o direito moral de atribuição nas obras audiovisuais (como mencionado acima, tal direito também é previsto ao regime de direitos conexos genericamente a todas as obras, e interpretações, performances e execuções, conforme. artigo 92), elenca de forma separada os artistas intérpretes dos dubladores:

Art. 81 [...]

§ 2º Em cada cópia da obra audiovisual, mencionará o produtor: [...]

IV - os artistas intérpretes; [...]

VII - o nome dos dubladores.

É possível que essa distinção exista por atecnia legislativa, pois, como adiantamos no tópico 2.2, o inciso VII não constava da redação original da LDA, tendo sido acrescentado em 2009, por meio da Lei nº 12.091/2009. Dessa forma, se, de um lado, a inclusão desse dispositivo parece ter resultado da falta de clareza da lei quanto aos direitos oriundos da dublagem, visando o legislador a tutelar esta atividade; de outro, a nova redação reforçou a incerteza do cenário, ao criar uma distinção entre artistas intérpretes e dubladores.

A Lei nº 6.533/1978, que regula as profissões de artista e técnico em espetáculos de diversão, também acrescenta incertezas quanto ao enquadramento dos dubladores como intérpretes ou executantes, e, consequentemente, quanto à aplicação de direitos conexos sobre a dublagem. Nesse sentido, o artigo 2º, inciso I, define “artista” como o “[…]profissional que cria, interpreta ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza[…]”.[19] Mais uma vez, portanto, pode-se argumentar que os dubladores estariam inseridos nessa classificação, na medida em que seu ofício consiste justamente em uma interpretação. Não obstante, o artigo 10, inciso XI, trata a dublagem como uma atividade complementar, diferente da interpretação. De igual maneira, o Quadro Anexo ao Decreto nº 82.385/1978, que regulamenta a Lei nº 6.533/1978, ao listar as funções de artista e técnico em espetáculos não cita os dubladores.

Parte da doutrina, no entanto, entende que, sim, o dublador seria intérprete, tanto para fins da LDA como da Lei nº 6.533/1978, como é o caso de Costa Netto (2019, p. 192 e p 400). Costa Netto inclusive conta que o artigo 13 dessa lei (mencionado anteriormente) foi resultado da atuação da Associação dos Atores (ASA), à época presidida por um dublador, Jorge Ramos (2009, p. 386). Também, como veremos no tópico 3, algumas decisões expressamente enquadram o dublador na categoria de artista intérprete (ao passo que a maioria não discorre sobre o tema).

Perceba-se que, caso entendamos que o dublador não é artista, não se aplicaria a proibição à cessão de direitos autorais prevista por referido artigo 13, mesmo que a dublagem seja feita dentro de relação empregatícia.

Em suma, não resta claro se a legislação equipara o dublador a intérprete ou executante, sujeito assim, aos direitos conexos. No entanto, como veremos mais adiante, há decisões que entendem pela aplicação desse regime.

 2.3. Direito de personalidade sobre a voz

Já dissemos, nos tópicos anteriores, que a Constituição Federal tutela a participação individual nas obras coletivas (art. 5º, XXVIII, “b”). Note-se, contudo, que o referido dispositivo da Magna Carta vai além, no sentido de proteger também “[...]a reprodução da imagem e voz humanas[...]”. Da mesma forma: o inciso X estabelece a inviolabilidade da “[…]honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Em sentido análogo, diz o artigo 20 do Código Civil, no capítulo dos direitos de personalidade:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Note-se que a Constituição menciona voz e imagem como categorias distintas (tal como transcrito acima – e da mesma forma que faz a LDA, como mencionaremos abaixo), ao passo que o Código Civil trata apenas da imagem. Há, portanto, uma discussão quanto à hipótese de que a tutela da voz consistiria em um direito autônomo ou um desdobramento da proteção da imagem.[20] Em todo caso, é pacífico que o Código Civil reconhece um direito personalíssimo sobre a voz, seja por citar a proteção à palavra, no artigo supramencionado, seja porque o rol de direitos de personalidade não é taxativo, mas sim exemplificativo.

Veja-se, também, que os direitos personalíssimos são “[...]intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (art. 11) – assim como os direitos morais de autor e de artista intérprete ou executante, como explicamos nos tópicos anteriores. Em igual sentido, o Código Civil garante poder-se “exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei” (art. 12).

Da mesma forma, a obrigação de reparar danos por violação a direitos encontra respaldo nos seguintes artigos do Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Para além da previsão constitucional e via Código Civil, estabelece a LDA:

Art. 90 [...]

§ 2º A proteção aos artistas intérpretes ou executantes estende-se à reprodução da voz e imagem, quando associadas às suas atuações.

O artigo em questão não é de todo claro, mas sinaliza que a voz e a imagem expressas na performance ou interpretação do artista são protegidas de forma cumulativa com direito de personalidade e direito conexo.

A esse respeito, porém, reforçamos a discussão apontada no tópico 2.2, quanto a se os dubladores estariam contidos na categoria legal de artista intérprete ou executante – e se, portanto, a disposição do artigo 90, parágrafo 2º, da LDA, se aplicaria à dublagem.

Em todo caso, mesmo que entendamos que, para a LDA, dubladores não são intérpretes ou executantes, permanece a tutela da voz prevista na Constituição e no Código Civil (seja via direito de imagem ou direito autônomo), como mencionamos acima. Ocorre que nenhum desses dois diplomas disciplina de forma tão precisa quanto a LDA as regras para a proteção, a cessão e o licenciamento da voz, principalmente quando inseridas dentro de obras artísticas (como ocorre na dublagem).

Por exemplo, não há, para os contratos referentes à cessão de direito de voz, disposições mínimas como as que os artigos 49 a 51 da LDA estabelecem para os negócios jurídicos sobre direitos de autor – que tampouco podemos dizer com clareza se se aplicam aos direitos conexos, como argumentamos acima. De igual maneira, não há vedação à cessão dos direitos de personalidade, tal como previsto para os direitos de autor e conexos no artigo 13 Lei nº 6.533/1978 (independentemente da discussão quanto a se essa proibição se aplicaria apenas às criações ou interpretações feitas em sede de relação empregatícia, como exploramos nos tópicos anteriores). Tampouco há uma delimitação de direitos morais sobre a voz, nos moldes que já descrevemos.

Como já explicamos, a LDA prevê o direito de atribuição para os dubladores, (art. 81, § 2º, VII) e para todos os participantes das obras coletivas (art. 88, II), independentemente de se serem autores, ou intérpretes ou executantes. No entanto, não há clareza quanto a se os demais direitos morais seriam aplicáveis aos dubladores que contribuam apenas com sua voz, mas sem criação ou interpretação. O artigo 20 do Código Civil, supramencionado, sugere a existência de um direito de integridade e um direito de retirada. Isso porque determina que a pessoa pode proibir “[...]a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade[...]”, salvo se autorizada. No entanto, em sendo os direitos personalíssimos inalienáveis (tal como os direitos morais de autor e conexos), pode-se entender ser possível a remoção dessa autorização a qualquer tempo, desde que indenizada a pessoa autorizada.

Essa interpretação favorece a ideia de que o direito de retirada também caberia ao regime de direitos conexos – para os quais, como vimos, não há previsão expressa – na medida em que estes também são inalienáveis. Logo, não seria possível também nestes ceder definitivamente a autorização para uso da interpretação. Por outro lado, a mesma lógica para a restrição dos direitos conexos (isto é, viabilizar a circulação e comercialização das obras coletivas) valeria também para os direitos personalíssimos sobre voz (e imagem).

De igual maneira, o Código Civil não impõe interpretação restritiva aos contratos sobre direitos personalíssimos (salvo se para contratos gratuitos, por força do art. 114),[21] tal como faz a LDA para direitos de autor e conexos (arts. 4º e 49, VI), conforme explicamos na nos tópicos 2.1 e 2.2.[22] Por outro lado, parte da doutrina (TEPEDINO, 2007, p. 52-53; ARAÚJO, 2013, p. 80-81; LEONARDI, 2013, p. 120-121) e da jurisprudência[23] entende que se aplica analogamente essa limitação

Outra dúvidas que paira é sobre a possibilidade de consentimento tácito[24] para o uso da voz, a cessão por prazo indeterminado e para quaisquer usos futuros (ou se, inversamente, seria necessário autorização para cada novo uso).[25]

Em suma, a tutela do dublador somente pelo direito à voz traz ainda menos previsibilidade jurídica, na medida em que não há diploma legal que trate detalhadamente a proteção desse direito personalíssimo, especialmente no que diz respeito ao conflito com outros direitos, como os do autor ou titular de uma obra autoral.

Assim, resta dúvida quanto a se seria possível uma cessão ampla do direito personalíssimo à voz, em uma dublagem, autorizando de antemão quaisquer usos, mesmo em contextos que pudessem afetar a honra do dublador – tal como no exemplo que tratamos anteriormente: a retirada do trecho dublado em uma obra infantil para o uso em um filme pornô. Ainda que a lei seja silente sobre esse tipo de situação, por uma interpretação sistemática, entendemos que usos que afetem a honra ou reputação do dublador só seriam admitidos caso especificamente autorizados.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTE, Luiz Guilherme. A voz dos outros: os direitos dos dubladores no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6445, 22 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88662. Acesso em: 22 dez. 2024.

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