I - O FATO
Vem a notícia de que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processo e julgamento das quatro ações da Operação Lava Jato contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – triplex do Guarujá, sítio de Atibaia e sede do Instituto Lula e doações da Odebrecht – , anulando todas as decisões daquele juízo nos respectivos casos, desde o recebimento das denúncias até as condenações, o que torna o petista elegível. Tal decisão se deu no HC 193726 ED / PR
O relator da operação no Supremo determinou a remessa dos autos dos processos à Justiça Federal do Distrito Federal, que vai decidir ‘acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios’. Em razão do entendimento, o ministro ainda declarou a perda de objeto de dez habeas corpus e quatro reclamações apresentadas à corte pela defesa do petista.
Segundo o site do Estadão, em 8 de março de 2021, em decisão de 46 páginas, o ministro Edson Fachin apontou que, na ação penal do tríplex, o único ponto de ‘intersecção entre os fatos narrados’ na denúncia contra Lula e a competência de Curitiba foi o pertencimento do grupo OAS ao cartel de empreiteiras que atuava de forma ilícita nas contratações da Petrobrás.
A definição da incompetência absoluta do juízo (não juiz) da 13ª Vara da Subseção Judiciária de Curitiba não eliminaria, salvo melhor juízo, o exame da suspeição do juiz que presidiu a instrução e, após, condenou o ex-presidente Lula naquele processo. A suspeição diz respeito ao juiz. Com a suspeição definida todos os atos praticados, de cunho decisório, como as sentenças ou não, serão anulados. Competência e imparcialidade são pressupostos de validade do processo. São coisas distintas. Não falta de interesse de agir por parte da defesa do ex-presidente Lula em arguir tais invalidades processuais.
Manifesto, aqui, que, pelas gravações trazidas pela operação Spoofing, é descarada a suspeição com que agiram não só o ex-juiz Moro como os presentantes do Parquet naqueles autos. Havia um interesse outro que se sobrepunha a seus misteres funcionais.
Aliás, a arguição de suspeição precederá a qualquer outra na matéria. O art. 96 do CPP é claro ao estabelecer que a suspeição deve ser suscitada de forma prioritária, precedendo a qualquer outra.
II – A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Lula foi condenado em primeira e segunda instância no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ficou preso em regime de prisão provisória, deixou de exercer seu ofício, não pode comparecer a exéquias de pessoas queridas.
Vem à discussão a questão da responsabilidade civil do Estado.
Por fim, dir-se-á que o ex-presidente Lula poderá propor ação de ressarcimento por danos materiais e morais em face da União Federal por conta das condenações penais contra ele dirigidas e formuladas por juízo federal incompetente.
A ausência do serviço devido ao defeituoso funcionamento basta para configurar a responsabilidade civil do Estado pelos danos dele decorrentes em agravo dos administrados.
Não estamos a falar de uma responsabilidade objetiva em que não se exige a culpa. Trata-se de responsabilidade subjetiva baseada na culpa (ou dolo), como advertiu Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (Princípios gerais do direito administrativo, volume II, 1969, páginas 482 e 483).
Para a sua deflagração não basta a mera objetividade de um dano relacionado com um serviço estatal. Cumpre que exista algo mais: culpa(ou dolo), elemento que tipifica a responsabilidade subjetiva.
Deve-se a Paul Duez essa teoria da faute de service. Disse ele: a falta de serviço pode ser agrupada por um dos três títulos: a) culpa in committendo(mal funcionamento do serviço); b) culpa in ommittendo(o serviço não funciona); c) o serviço funcionou tardiamente.
A teoria da falta do serviço público, elaborada na França pelo Conselho de Estado como concepção autônoma, se caracteriza segundo Paul Duez, pelos seguintes pontos essenciais, como resumiu José de Aguiar Dias (Da Responsabilidade Civil, volume II, 5ª edição, pág. 192):
- A responsabilidade do serviço público é uma responsabilidade primária. A administração não é declarada responsável em consequência do jogo dos dados preponente-preposto, patrão-empregado etc, mas absorve a penalidade do agente, que se torna simples peça na empresa administrativa, em cujo corpo se funde;
- A falta de serviço público não depende da falta do agente. É suficiente estabelecer a má condição de serviço, o funcionamento defeituoso, a que se pode atribuir o dano;
- É preciso, entretanto, notar que o que dá lugar à responsabilidade é a falta, não o fato do serviço, distinção útil, no sentido de que a teoria não pode ser assimilada à doutrina do risco;
- Nem todo o defeito do serviço acarreta a responsabilidade; requer-se, para que esta se aperfeiçoe, o caráter de defectibilidade, cuja apreciação varia segundo o serviço, o lugar, as circunstâncias.
Para o caso em tela poder-se-ia dizer que houve mal funcionamento do serviço.
A matéria, como sabem os estudiosos, foi traçada pelo Conselho de Estado na França ao apreciar o que chamou de diligência média que se poderia exigir do serviço.
Há responsabilidade subjetiva quando, para caracterizá-la é necessário que a conduta geradora de dano revele deliberação na prática de comportamento proibido ou desatendimento indesejado dos padrões de empenho, atenção ou habilidade normais (culpa) legalmente exigíveis, de tal sorte que o direito em uma outra hipótese resulta transgredido. Há responsabilidade do Estado quando este deveria atuar, e de acordo com certos padrões, não atua ou atua insuficientemente para deter o evento lesivo.
Ora quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Só faz sentido responsabilidade se descumpriu o dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo.
Se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez de forma deficiente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por essa incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um evento ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. Como ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 17 ª edição, pág. 896), também não o socorre eventual incúria em ajustar-se aos padrões devidos.
Fala-se aqui, repito, em atos comissivos. A responsabilidade do Estado é objetiva no caso de comportamento danoso, comissivo e subjetivo no caso de comportamento omissivo.
Será o caso que envolve o presente tema. A responsabilidade é por atos comissivos. Deverá ser objetiva.
Aplica-se a chamada e conhecida teoria do risco.
Volto-me a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (obra citada, pág. 899) para dizer que “a responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito pressupõe sempre ação positiva do Estado, que coloca terceiro em risco, pertinente à pessoa ou ao seu patrimônio, de ordem material, econômica e social, em benefício da instituição governamental ou da coletividade em geral o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns inerentes à vida em sociedade. Consiste assim em ato comissivo, positivo, do agente público, em nome e por conta do Estado, que redunda em prejuízo a terceiro, decorrente da sua ação, repita-se, praticado tendo em vista o proveito da instituição governamental ou da coletividade em geral. Jamais por omissão negativa”.
Assim serão pressupostos para a pretensão ressarcitória: evento danoso, nexo de causalidade, por teria como consequência direta ou indireta da atividade ou omissão do Poder Público, independente de demonstração de culpa.
Para o caso, por ação comissiva, basta a prova da causalidade do ato e não da culpabilidade como ensinou Amaro Cavalcânti à luz das advertências de Vachelli. Despreza-se a antiga teoria civilista baseada na culpa.
Em sendo assim, caberia ação de regresso à administração contra os agentes do aparato judiciário responsável por esses prejuízos.
III - A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATOS DO PODER JUDICIÁRIO
Trago jurisprudência na matéria egressa do Supremo Tribunal Federal:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. AÇÃO REPARATÓRIA POR ATO ILICITO. ILEGITIMIDADE DE PARTE PASSIVA. 2. RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DO ESTADO. A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente público, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação especifica.3. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual – responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições -, ao qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa.4. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88. 5.Recurso Extraordinário conhecido e provido (RE 228.977-2/SP. RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
Relator (a): Min. NÉRI DA SILVEIRA. Julgamento: 05/03/2002. Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA. Publicação: DJ 12-04-2002 PG-12977 EMENT VOL-2064-4 PG-10)”
No Brasil, uma parte da doutrina entende que o magistrado não deve ser responsabilizado por erro judicial, com o argumento de que se deve preservar a atividade jurisdicional do magistrado e que o Poder Judiciário é soberano. Porém, considere-se que o magistrado deveria sim ser responsabilizado por seus atos. Se assim fosse, ele seria mais cauteloso ao decidir, diminuindo com isso, a ocorrência de erros.
Ora, em princípio, toda ação ou omissão que por sua prática ocasione um dano, gera o dever de reparação. Dispõe o atual Código Civil em seu art. 927:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Nesse sentido é o entendimento de parte da doutrina, como é o depoimento do professor Lafayette Pondé (Estudos de direito administrativo, Minas Gerais, Del Rey, 1995, pág. 315):
“Relativamente aos atos judiciários ninguém pode hoje acobertá-los de imunidade, sob pretexto de serem expressão de soberania. Este argumento provaria de mais, porque daria com a irresponsabilidade mesma da Administração e do Legislativo, já que o Judiciário não é um superpoder colocado sobre estes dois”.
Atualmente, diz-se que a responsabilidade do Juiz não é nem objetiva e nem subjetiva, ela é condicionada ao dolo, fraude e ao retardamento de ato de ofício sob sua competência, como já mencionado no artigo 133 do CPC. Quando o legislador instituiu essa modalidade de responsabilização condicionada, deixou à margem a responsabilização do magistrado em casos de imprudência, negligência e imperícia, sob a justificativa de preservar a atividade jurisdicional.
No entanto, há que se entender que, em sendo admitido em nosso ordenamento jurídico, a responsabilidade subjetiva do magistrado, a credibilidade jurisdicional não ficará prejudicada, uma vez que essa responsabilização somente se dará quando do preenchimento dos quatro elementos indispensáveis para a caracterização do dever de indenizar, são eles: ação ou omissão, culpa ou dolo, nexo causal e dano.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (Responsabilidade Civil. 10ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007: “A culpa grave é a decorrente de uma violação mais séria do dever de diligência que se exige do homem mediano”, e diz mais, verbis:
“O Código Civil, entretanto, não faz nenhuma distinção entre dolo e culpa, nem entre os graus de culpa, para fins de reparação do dano. Tenha o agente agido com dolo ou culpa levíssima, existirá sempre a obrigação de indenizar, obrigação esta que será calculada exclusivamente sobre a extensão do dano.”
É o que dispõe o artigo 944 do Código Civil Brasileiro: “Art. 944- A indenização mede-se pela extensão do dano”.
Data vênia, a matéria há de ser resolvida, diante da legislação extravagante, no conflito entre a lei geral (Código Civil) e as leis especiais na matéria. O art. 133 do CPC de 1973 o art. 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, restringirem a responsabilização do magistrado em casos de dolo ou culpa grave,.
Exemplo de erro grosseiro em que cabe responsabilização do magistrado por culpa grave é o caso de o juiz deixar de reconhecer uma prescrição de crime e condenar um cidadão a anos de prisão.
O novo CPC, de 2015, determina:
Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando:
I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte.
Parágrafo único. As hipóteses previstas no inciso II somente serão verificadas depois que a parte requerer ao juiz que determine a providência e o requerimento não for apreciado no prazo de 10 (dez) dias.
Por sua vez, o artigo 133 do CPC de 1973 estava assim redigido:
Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:
I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.
Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no no II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender o pedido dentro de 10 (dez) dias.
A Lei Orgânica da Magistratura (LOMAM, Lei Complementar nº 35/79, em seu artigo 49, dispõe de forma idêntica a norma supra citada. A indagação que surge é se o juiz pode ser pessoalmente demandado, uma vez que do exercício de suas funções pode originar o dever de indenizar por parte do Estado, conclui-se que responde primária e diretamente frente ao prejudicado, podendo o magistrado responder regressivamente, perante o Estado, nos casos em que se provasse a culpa ou o dolo daquele.
Em relação à responsabilidade pessoal do magistrado por ato jurisdicional, importante perceber o art. 133 do Código de Processo Civil que, deve ser analisado à luz da Constituição Federal de 1998, tendo em vista datar de 1973. Aplicado o mandamento constitucional, observa-se que, na hipótese do juiz proceder com dolo ou fraude no exercício de suas ações, a responsabilidade civil recai sobre o Estado que haverá direito de regresso em face de seu agente e, no caso de haver recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, em providência que deva ser ordenada de ofício, ou a requerimento da parte, a responsabilidade civil será pessoal do juiz, com natureza correicional, ex vi os mandamentos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (art. 49, Lei Complementar nº 35/79). De acordo com esta previsão numerus clausus, a obrigação de indenizar é pessoal do magistrado quando tenha agido com dolo (posto que a fraude é uma conduta dolosa) e culpa, sob a modalidade de negligência, ou seja, recusar, omitir ou retardar.
Leciona Ruy Stoco (Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial: doutrina e jurisprudência. R Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P. 59) que a conduta culposa do juiz ocorre tão logo a parte cumpra o disposto no parágrafo único do art. 133 do Código de Processo Civil, independentemente de ação judicial na qual se verificou a ocorrência ter, ou não, sido julgada. No entanto, para caracterizar o procedimento doloso ou fraudulento, há necessidade de expresso reconhecimento em ação rescisória.
Há quem discorde desse pensamento entendendo que a responsabilidade pessoal do juiz somente ocorrerá se tiver agido com dolo ou fraude. A culpa no exercício da atividade jurisdicional não acarreta, para o magistrado, o dever de indenizar, pode acarretar, em tese, esse dever para o Poder Público, nos termos do artigo 37, § 6º da Constituição.
Ter-se-á, pois, que, em caso de ajuizamento de ação de reparação por danos morais e patrimoniais, ser dado o ônus (não dever ou obrigação processual) de provar a ação comissiva por dolo ou fraude dos agentes públicos envolvidos nos processos, ora anulados, que levaram à condenação de Lula.
Poder-se-á pensar em denunciação da lide, intervenção de terceiros, dentro de um processo em que a União Federal seja ré, por responsabilidade civil. Mas isso será tema para um momento próprio, se for o caso.