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Violência estatal e Lei de segurança nacional:

Uma breve reflexão à luz dos direitos humanos

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21/06/2021 às 12:35
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A doutrina da segurança nacional era usada como sustentáculo moral das ações do aparelho repressivo montado pela ditadura militar para perseguir opositores políticos.

RESUMO: O presente estudo partiu da história da Lei de Segurança Nacional, suas várias versões e o contexto na qual foi criada, bem como a constatação de que o pensamento difundido no seio militar e em setores influentes pela Escola Superior de Guerra criou a Doutrina da Segurança Nacional, que servia de verdadeiro sustentáculo moral das ações do aparelho repressivo montado pela ditadura militar para perseguir opositores políticos. Mais adiante, constatou-se que a introdução, ainda que tardia, do discurso dos Direitos Humanos no país, colaborou com a conquista de avanços para a sociedade com a promulgação da Constituição de 1988, acarretando ampliação e fortalecimento dos direitos e garantias fundamentais, sobretudo por tornar a dignidade da pessoa humana, elemento balizador do respeito aos Direitos Humanos, um dos fundamentos do Estado. Nesse sentido, diante do crescimento atual do uso da Lei de Segurança Nacional pelo governo federal e outras instituições públicas, este estudo identificou a existência de tipificações abertas em crimes dispostos na mesma e a possibilidade de sua instrumentalização para a perseguição de opositores políticos, como aconteceu na ditadura militar.

Palavras-chave: Violência Estatal. Direitos Humanos. Direito Penal. Segurança Nacional.


INTRODUÇÃO


        De uma forma simples, podemos dizer que os Direitos Humanos nascem da necessidade de se limitar a interferência estatal na vida privada, sobretudo de eliminar a violência com a qual o Estado tratava seus "súditos" na época do absolutismo, que incentivaou do reconhecimento dos Direitos Humanos pela humanidade.

No Brasil, ainda que o Estado brasileiro tenha assinado a Carta da ONU em 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, a efetividade dos mesmos no país não foi possível de imediato, sobretudo pelo fato de que pouco tempo depois, em 1964, tem início o período autoritário da ditadura militar.

A expressão "segurança nacional" provém do pensamento difundido no seio militar e em setores influentes da sociedade pela Escola Superior de Guerra, criando assim a Doutrina da Segurança Nacional, sustentáculo das ações de todo o aparelho repressivo da ditadura militar que perseguia e eliminava opositores políticos.

Recentemente, ao se constatar o crescimento do uso da atual Lei de Segurança Nacional pelo governo federal e outras instituições públicas e considerando o apreço publicamente declarado do atual presidente do Brasil por regimes autoritários, acende-se um alerta sobre a necessidade da revogação da mesma.

Nesse sentido, o presente estudo tem por objetivo a identificação da existência de tipificações abertas em crimes dispostos na redação atual da LSN e a possibilidade de sua instrumentalização para a perseguição de opositores políticos, como aconteceu anteriormente na ditadura militar, para fins de se pensar a necessidade de revogação da mesma, vez que não se coaduna com os valores fundados pela ordem constitucional que se inaugurou com o advento da Constituição de 1988.

Dessa forma, a fim de se atingir o objetivo do presente estudo, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental, por meio da consulta de livros, trabalhos acadêmicos, legislação, etc., tanto de forma impressa, como pela busca nas bases de dados de periódicos CAPES e SCIELO e também na rede mundial de computadores.

1. A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL E A DITADURA MILITAR.

A expressão "segurança nacional", surge com mais ênfase após o golpe civil-militar de 1964, com a promulgação do Ato Institucional 02, que previa o seguinte: "Art. 30 - O Presidente da República poderá baixar atos complementares do presente, bem como decretos-leis sobre matéria de segurança nacional" (BRASIL, 1965).

Até então, outras expressões eram utilizadas para rotular os considerados "inimigos do Estado", como os "crimes contra a ordem política e social" (BRASIL, 1935) e os "crimes contra o Estado e a ordem política e social" (BRASIL, 1953), respectivamente cunhados no primeiro e no segundo governo de Getúlio Vargas.

A ênfase na expressão "segurança nacional" provém do pensamento difundido no seio militar e em setores influentes da sociedade pela Escola Superior de Guerra, cujos ensinamentos versavam sobre a existência de uma necessidade urgente de desenvolvimento da sociedade brasileira e que a implementação desse processo dependia de que se garantisse uma certa segurança interna. A partir daí, pra rotular como "Inimigo do Estado" qualquer um que se manifestasse contra a política praticada, ou seja, um opositor político, seria um pequeno passo, e foi extamente o que ocorreu.É o que chamamos de Doutrina da Segurança Nacional, que foi o principal sustentáculo moral das ações de todo o aparelho repressivo montado pela ditadura militar para perseguir opositores políticos.

Fundada em 1949, a Escola Superior de Guerra (ESG) fora criada para, em tese, constituir-se como um instituto de altos estudos, destinado a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para o planejamento da segurança nacional.

A vagueza das expressões era um traço característico de todo o material produzido pela ESG e sua circularidade permitia que fossem usadas para qualquer finalidade, inclusive a radicalização do regime repressivo.

Segundo Schinke (2019, p. 1965):

O discurso difundido pela Escola misturava expressões cunhadas pela Doutrina da Segurança Nacional com outras oriundas da tradicional repartição de poderes, o que contribuía para que o discurso fosse percebido dentro de uma ideia de normalidade.

Exemplo disso é o material produzido pela Escola Superior de Guerra, datado de 1964, intitulado Dinâmica da Administração Pública e do Judiciário. Esse documento foi produzido logo após a circulação do material que afirmava que o judiciário deveria garantir a segurança nacional e afirmava que à justiça pertencia a “missão suprema de garantia da ordem jurídica [...]

Tal discurso fora elaborado justamente para frear aquilo que as forças conservadoras chamavam de ascensão iminente do comunismo, uma vez que tais setores temiam uma revoluçãocomo a que aos moldes da que ocorreu em Cuba.

Embora o golpe civil-militar tenha conseguido derrubar o governo João Goulart em 1964 para implantar um regime provisório, assegurado pela suposta imparcialidade dos militares que assumiram o poder, por volta de 1967 e 1968 houve um crescimento de dissidências entre as forças que apoiaram o golpe, ao passo que a oposição ao regime também ganhava força nas ruas, nas fábricas e universidades.


Surgiram nas capitais do país várias manifestações de oposição ao regime, realizadas por estudantes, intelectuais e operários, a exemplo de duas importantes greves, que aconteceram respectivamente em Contagem/MG e Osasco/SP, violentamente reprimidas pelo Estado. Repressão que se tornava cada vez mais violenta, sinal de que os militares haviam enganado as elites na promessa de constituir apenas um regime provisório, mostrando que não queriam deixar o poder, o que culminou no famoso golpe dentro do golpe, sacramentado com a edição do Ato Institucional n.º 5.

Segundo Coimbra (2000, p. 7):

A partir daí, o regime militar consolidou a sua forma mais brutal de atuação através de uma série de medidas como o fortalecimento do aparato repressivo, com base na Doutrina de Segurança Nacional. [...] e a devida eliminação das "oposições internas". Silenciava-se e massacrava-se toda e qualquer pessoa que ousasse levantar a voz.

Inaugura-se a era Médici, o período mais sanguinário da ditadura, que mais sofreu influência da doutrina da segurança nacional, auge do sofisticamento do aparelho repressivo, na qual seres humanos eram "moídos como carne", onde o Estado agia com violência contra seus próprios cidadãos.

É também o momento no qual é redigida a primeira versão da Lei de Segurança Nacional cunhada pelos militares, que foi o Decreto-lei nº 314, de 13 de março de 1967, seguida pouco mais de dois anos depois pelo seu aperfeiçoamento autoritário, o Decreto-lei nº 898, de 29 de dezembro de 1969, que permaneceu em vigor até 1978, quando é revogado pela Lei nº 6.620, de 17 de dezembro de 1978.

Nesse sentido, importante a transcrição de alguns trechos da mesma:

Art. 2º A segurança nacional é a garantia da consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos como externos.

Art. 3º A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva.

§ 1º A segurança interna, integrada na segurança nacional, diz respeito às ameaças ou pressões antagônicas, de qualquer origem, forma ou natureza, que se manifestem ou produzam efeito no âmbito interno do país.

[...]

§ 3º A guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo contrôle progressivo da Nação. (BRASIL, 1967)

Ante o exposto, é perceptível a influência da doutrina da segurança nacional na elaboração da referida lei, na qual vemos a instrumentalização da expressão segurança nacional para combater qualquer oposição política que questionasse aquilo que era chamado de consecução dos objetivos nacionais.

Mesmo que a previsão de poder popular na constituição de 1967 fosse apenas uma prática do cinismo do regime militar, que mantinha algumas normas aparentemente democráticas para esconder a violência estatal do mesmo, tal contradição normativa demonstra a capacidade de instrumentalização dos textos legais em prol do objetivo de se manter no poder a qualquer custo, praticado pelos militares na ditadura que suscedeu o golpe de 1964.

Não por acaso, tal disposição do regime de simular uma legalidade constitucional para encobrir todas as atrocidades cometidas encontrou suporte no Poder Judiciário da época, que fora inserido na teoria da segurança nacional como elemento saneador das ações do regime.

Segundo Joffily (2008, pp. 30-35), fingir estar agindo de forma legal era a principal característica das atividades do aparato repressor montado pela ditadura militar, já que os órgãos de segurança criados naquela ocasião demonstravam uma grande preocupação com uma suposta legalidade formal.

A "Operação Bandeirantes", órgão repressivo criado para identificar, localizar e capturar integrantes de grupos subversivos no estado de São Paulo, foi solenemente fundada em 1969, mas agia sempre por medidas administrativas internas, ancorada nas estruturas do Exército e das Polícias para disfarçar as práticas de tortura, invasão de domicílios e assassinato, dando-lhes um ar aparente de legalidade operacional.

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Nesse sentido, face a todo esse aparato criado pra respaldar as atividades ilegais, estava aberta a perseguição política a toda e qualquer pessoa que se dispussesse a criticar, o mínimo que fosse, as atitudes do governo, inaugurando um período duradouro de terror estatal "legalizado", submetendo centenas de pessoas a perseguição política, censura, prisões autoritárias, tortura e execução sumária.

Ou seja, o Estado, que supostamente deveria existir em função do bem-estar de seus habitantes, estava legitimando um regime extremamente autoritário, que podia perseguir e matar o seu próprio povo, contando com todo um aparato institucional criado para legitimar as ilegalidades praticadas.

2. DIREITOS HUMANOS, CONSTITUIÇÃO DE 1988 E NOVA ORDEM ESTATAL.

Em relação à efetivação dos Direitos Humanos no Brasil, mesmo que o Estado brasileiro tenha assinado a Carta da ONU e, 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, tal efetivação não foi possível na prática, sobretudo pelo fato de que pouco tempo depois, em 1964, tem início o período autoritário já mencionado pouco mais acima.

O recrudescimento da ditadura pôs em prática uma série de perseguições às faculdades, aos professores e aos demais intelectuais, o que provocou demissões, prisões e exílios de professores e estudantes, criando-se um ambiente contrário ao conhecimento e à pesquisa científica, ocasionando o sufocamento da liberdade de pensamento, tão necessária à implementação de uma cultura voltada ao respeito aos Direitos Humanos, o que somente é possível em ambientes democráticos.

Contudo, ao final da década de 1970, inicia-se aos poucos a construção de uma resistência ao regime, de forma que a luta pela redemocratização terminou por trazer uma conscientização da existência dos Direitos Humanos e das violações aos mesmos que ocorriam no regime de exceção da ditadura militar, de forma que a militância política na defesa dos direitos fez uso da mobilização popular, da conscientização da existência de violações aos Direitos Humanos e da denúncia dessas violações para, naquele contexto, educar em Direitos Humanos.

No que tange aos Direitos Humanos e à ordem constitucional fundada em 1988, é importante se ter em mente que nossa Constituição, principalmente nos Direitos e Garantias Fundamentais, é acima de tudo um documento político-jurídico de prevenção contra regimes autoritários e totalitários e busca, entre outros objetivos, o respeito à dignidade humana, à pluralidade política e de consciência e ao bem-estar social dos cidadãos e cidadãs, e, ainda que na prática isso não se efetive completamente, é o que está posto neste importante documento.

Conforme já mencionado, durante o período mais violento da ditadura, as Forças Armadas operavam em conjunto com as Forças Policiais e todo esse aparato de repressão produzia tortura em massa e muitas mortes violentas.

Impressionante o depoimento sádico de um oficial das Forças Armadas, a respeito de seu método de tortura, dado à revista Veja e citado por Elio Gaspari, no livro "A Ditadura Escancarada":

A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala, tirar a roupa dele e começar a gritar para ele entregar o ponto [...] Era o primeiro estágio. Se ele resistisse, tinha um segundo estágio, que era, vamos dizer assim, mais porrada. Um dava tapa na cara. Outro, soco na boca do estômago. Um terceiro, soco no rim. Tudo para ver se ele falava. Se não falava, tinha dois caminhos. Dependia muito de quem aplicava a tortura. Eu gostava muito de aplicar a palmatória. [...]

A etapa seguinte era o famoso telefone das Forças Armadas. [...] É uma corrente de baixa amperagem e alta voltagem. [...] Não tem perigo de fazer mal. Eu gostava muito de ligar nas duas pontas dos dedos. Pode ligar numa mão e na orelha, mas sempre do mesmo lado do corpo. O sujeito fica arrasado. O que não se pode fazer é deixar a corrente passar pelo coração. Aí mata. [...] O pau-de-arara não é vantagem. Primeiro, porque deixa marca. Depois, porque é trabalhoso. Tem de montar a estrutura. Em terceiro, é necessário tomar conta do indivíduo porque ele pode passar mal. (GASPARI, 2002, p. 185)

As operações de perseguição e captura realizadas pela ditadura constituíam-se em verdadeiros espetáculos de horror, desnecessários, pois considerando, "hipoteticamente", que esses perseguidos fossem criminosos perigosos à sociedade, caberia no máximo que fossem presos preventivamente e legalmente julgados, mas ao contrário, eram perseguidos, capturados, sistematicamente torturados e assassinados.

Nesse sentido, a prisão e morte de Joaquim Alencar de Seixas, militante sindical e político, morto em 1971, pode dar uma ideia da brutalidade da reação dos órgãos de repressão da ditadura:

Seixas foi preso junto com seu filho Ivan, na Rua Vergueiro, altura do n° 9000, no dia 16 de abril de 1971.

[...]

De lá foram levados para o DOI/CODI, que a esta época ainda se chamava Operação Bandeirantes-OBAN. No pátio de manobras da OBAN, pai e filho foram espancados de forma tão violenta, que a algema que prendia o pulso de um ao outro rompeu-se.

Dessa sessão de espancamento, ambos foram levados para a sala de interrogatórios, onde passaram a ser torturados um defronte ao outro. Nesse mesmo dia, sua casa foi saqueada e toda sua família presa.

No dia seguinte, 17 de abril de 1971, os jornais paulistas publicavam uma nota oficial dos órgãos de segurança, que dava conta da morte de Joaquim Alencar de Seixas em tiroteio. Em realidade, Seixas estava morto só oficialmente, pois nesta mesma hora se desenrolavam torturas horríveis, o que pôde ser testemunhado por seu fllho Ivan, sua esposa Fanny, e suas duas filhas, Ieda e Iara, presas na noite anterior.

Por volta das 19 horas deste dia, Seixas foi finalmente morto. (ARAÚJO et al, ibid., p. 92)

Diante disso, percebemos que o regime, que não se contentava em prender e julgar os supostos “Inimigos do Estado”, buscava ainda humilhar, torturar e assassiná-los sem piedade. Um trecho acima demonstra muito claramente isso, pois sua morte oficial foi anunciada durante o dia 17 de abril, enquanto ele estava sendo torturado, ou seja, o regime já sabia que o objetivo era matá-lo, vê-lo eliminado, forjando uma versão distorcida de sua morte para encobrir a atrocidade dos atos praticados pelo próprio Estado contra um nacional.

Do acima exposto, podemos perceber o espírito que animou a redação da nossa Constituição: ela surgiu como aversão à ditadura militar, com o intuito de afastar definitivamente regimes autoritários e antidemocráticos de nosso país.

Assim, em 05 de outubro de 1988, às 15:50h, o Deputado Ulisses Guimarães, Presidente da Assembleia Constituinte fez a declaração libertadora para o país: "Declaro promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social, do Brasil. Que Deus nos ajude. Que isto se cumpra."

Retomado o regime democrático a República Federativa do Brasil, passa a se constituir como um Estado democrático de direito, que tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Segundo Pontual (2014), a Constituição de 1988:

inaugurou um novo arcabouço jurídico-institucional no país, com ampliação das liberdades civis e os direitos e garantias individuais. A nova Carta consagrou cláusulas transformadoras com o objetivo de alterar relações econômicas, políticas e sociais, concedendo direito de voto aos analfabetos e aos jovens de 16 a 17 anos. Estabeleceu também novos direitos trabalhistas, como redução da jornada semanal de 48 para 44 horas, seguro-desemprego e férias remuneradas [...] criação dos mandados de injunção, de segurança coletivo e restabelecimento do habeas corpus. [...] fim da censura em rádios, TVs, teatros, jornais e demais meios de comunicação; e alterações na legislação sobre seguridade e assistência social.

No exposto, temos que a Constituição de 1988 representa avanços imensos para a sociedade brasileira, sobretudo na amplianção e fortalecimento dos direitos e garantias fundamentias em comparação com a anterior, até mesmo porque na nova Constituição eles encontram-se dispostos no Título II, bem no início, pra demonstrar logo que o cidadão e seus direitos fundamentais são prioridade na nova ordem social que se anuncia. Isso sem falar que a dignidade da pessoa humana, elemento balizador do respeito aos Direitos Humanos, é um dos fundamentos do Estado, anunciado como democrático logo no primeiro artigo do texto constitucional.

É considerada a mais democrática de todas as sete Constituições que o Brasil produziu, pois seu processo de elaboração contou com ampla participação popular, marcada pela realização de audiências públicas a fim de ouvir a sociedade, além da apreciação de emendas populares, que totalizaram 122 apresentadas, sendo 83 o número daquelas que tramitaram no Congresso, uma vez que estas cumpriram os requisitos necessários.

3. O PERIGO ATUAL DA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL E DE SUA INSTRUMENTABILIDADE.

A nova ordem estatal brasileira que surge com a Constituição de 1988 é fundada em tudo aquilo que é contrário aos valores que orientaram a condução da ditadura que durou 21 anos e que teve seu sustentáculo ideológico baseado na doutrina da segurança nacional.

É de conhecimento de todos que após os fatos que se seguiram ao "impeachment" da então Presidente Dilma Rousseff, intensificou-se o aumento do conservadorismo iniciado na década de 2010, aumentando-se a disseminação de ideologias e práticas do campo da extrema-direita, sobretudo após a ascensão ao poder do projeto político que se encontra no exercício da Presidência da República.

Nesse sentido, observou-se um crescimento do manejo da atual Lei de Segurança Nacional, a Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983, promulgada ainda no apagar das luzes da ditadura militar, que continua em vigor até hoje.

A LSN em vigor não apresenta de forma expressa definições e conceitos baseados na doutrina da segurança nacional, mas o que parece incomodar mais os juristas no que diz respeito à não recepcção da mesma pela atual ordem constitucional é a existência, nas tipificações de crimes dispostos na lei, de expressões vagas, que se "mal interpretadas" podem ser instrumentalizadas para perseguir cidadãos.

Nossa Constituição atribui à lei a capacidade de definir o que é crime e a interpretação do Código Penal (a lei penal por excelência) pela doutrina e pela jurisprudência nos remete à impossibilidade de se definir várias condutas a partir do mesmo tipo penal, ou seja, cada definição (tipificação) corresponde a uma única conduta, que constitui um único crime.

O que contrasta claramente com o "crime" previsto no art. 23, I, qual seja de incitar à subversão da ordem política ou social, cujo conteúdo não tem sentido de existir, considerando-se a ordem constitucional vigente em nosso país, uma vez que um dos fundamentos do Estado brasileiro é o pluralismo político, ou seja, poder sustentar ideologia política diversa da de quem se encontra no poder.

Ao pensar que vivemos em um país repleto de desigualdade social, imaginar ser ilícita a conduta de alguém que defende uma inversão da ordem política e social para uma outra que permita mais dignidade ao ser humano, outro fundamento do Estado, é criminalizar um cidadão no exercício de sua liberdade de expressão no campo político.

Segundo Santos (2017, p. 88):

Os tipos penais incriminadores da LSN são demasiadamente abertos e não discriminam com clareza quais condutas devem ser punidas, violando assim o princípio da taxatividade do Direito Penal, o qual proíbe a criação de tipos penais incriminadores com redação aberta, genérica, sem discriminação e identificação exata da conduta a ser criminalizada.

A redação da LSN, ao se apresentar de forma inespecífica e dúbia, possibilita ao aparelho estatal sua utilização de maneira autoritária e em desconformidade com os valores preceituados pelo paradigma do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, trazemos o que prevê o art. 26, da referida lei: "Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação" (BRASIL, 1983).

Recentemente o youtuber Felipe Neto foi alvo da aplicação da LSN contra crítica que fez à política do governo do Presidente Bolsonaro pelo descaso do governo federal para com a grave situação de contaminação provocada pela pandemia que nos assola desde fevereiro do ano passado.

Como é de amplo conhecimento, o Presidente Jair Bolsonaro é um entusiasta convicto da ditadura militar e demonstra claramente ter uma personalidade voltada para práticas antidemocráticas e para o negacionismo científico.

A investigação aberta contra o youtuber Felipe Neto foi suspensa em virtude de decisão liminar concedida na Justiça do Rio de Janeiro, mas o que preocupa é que o teor da acusação não foi a razão de concessão da medida, que se limitou a examinar a competência do inquérito, que é da Polícia Federal e não da Polícia Civil.

Segundo Plastino, Slhessarenko e Sarmanho (2020), ao organizar uma linha do tempo sobre a história da LSN:

2019

O presidente da República, Jair Bolsonaro, e o ministro da Justiça à época, Sergio Moro, invocaram a Lei de Segurança Nacional contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Recém-egresso da prisão, Lula fez discurso ao Movimento dos Atingidos por Barragens e qualificou Bolsonaro como “miliciano”, dizendo que o atual governo seria responsável pela morte da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018. Bolsonaro ameaçou o ex-presidente com a lei e, em seguida, Moro requisitou abertura de inquérito à Polícia Federal para investigar o caso. Em 2020, o inquérito foi arquivado.

2020

O leque de casos que envolvem a aplicação da Lei de Segurança Nacional e são repercutidos pela imprensa se multiplica. Chamam a atenção as aberturas de inquérito contra os jornalistas Ricardo Noblat, Hélio Schwartsman e o chargista Renato Aroeira, investigações que contestam sua liberdade de expressão em nome de uma suposta violação à honra presidencial, vinculada, nos termos da lei, à proteção da ordem política.

No Ministério da Saúde, houve ameaça de aplicação da lei a servidores que divulgassem informações do gabinete do ministro interino Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército. O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, aliás, criticou Pazuello, dizendo e que o Exército estaria se associando a um genocídio no Ministério da Saúde. Resultado: virou alvo de representação do ministro da Defesa também com base na lei.

No exposto, podemos ver que o uso da referida lei tem aumentado nos últimos anos, o que representa um grande perigo ao Estado democrático, uma vez que as tipificações abertas da referida lei facilitam o uso da mesma de forma autoritária pelo aparato estatal, o que deveria trazer grande preocupação à sociedade, haja vista que o projeto político no Palácio do Planalto é entusiasta de regimes autoritários e demonstra cada vez mais inclinado para o uso dessas "medidas jurídicas" autoritárias.

Recentemente a LSN também foi aplicada contra o sociólogo Tiago Costa Rodrigues, que publicou críticas ao presidente em outdoors espalhados pela capital do Tocantins com os dizeres: “não vale um pequi roído”.

Cinco manifestantes que protestavam contra o presidente Bolsonaro em Brasília foram presos pela PM local e de acordo com nota da corporação, os manifestantes teriam sido presos porque relacionavam uma suástica ao presidente, classificando-o como “genocida”. A PM levou o grupo para a Polícia Federal, mas a delegada em serviço na ocasião não viu como se enquadrar tal fato na LSN.

Os tipos penais abertos da Lei de Segurança Nacional não são compatíveis com a atual ordem constitucional na qual vivemos e a permanência desse entulho ditatorial em nosso ordenamento constitui um risco permanente de aplicação instrumental da lei para perseguições políticas, sobretudo nos tempos atuais, nos quais os ecos da midiática operação lava jato ainda ressoam em nossas instituições.

Essa forma de se criar tipos penais abertos na verdade é uma técnica jurídica criada por regimes autoritários do século XX, justamente para identificar os "inimigos" do regime e marginalizá-los. Segundo Zaffaroni (2007, p. 57): "A técnica völkisch (ou popularesca) consiste em alimentar e reforçar os piores preconceitos para estimular publicamente a identificação do inimigo da vez".

   Isso fica muito evidente em uma rápida passagem pelos artigos da LSN, a exemplo do art. 21, a saber:

Art. 21 - Revelar segredo obtido em razão de cargo, emprego ou função pública, relativamente a planos, ações ou operações militares ou policiais contra rebeldes, insurretos ou revolucionários.

O texto acima foi elaborado em 1983, ainda na ditadura militar, mas não sofreu qualquer alteração até o momento, ou seja, estamos diante de uma lei que foi criada em um momento político de autoritarismo, mas que está em vigor em um ambiente regulado por uma Constituição amplamente democrática como a nossa.

Em uma interpretação coerente com o contexto de elaboração da lei, a redação do artigo acima demonstra muito mais a preocupação de alguém que ocupa o poder ilegalmente com a ocorrência de vazamento de informações sobre ataques do Estado de excessão a oponentes políticos que discordam do regime político em vigor.

Nesse sentido, voltamos ao exemplo do art. 23, I, no qual é usada a expressão "subversão" a qual sabemos ser frequentemente acompanhada de preconceitos contra os participantes de movimentos sociais.

Por fim, no intuito de se apontar uma saída para a celeuma permanente que a referida lei proporciona, melhor o caminho da sua revogação total, para: "[...] ser substituída por uma legislação de proteção ao Estado Democrático de Direito (SANTOS, op. cit., p. 86)".

Ademais, a ameaça autoritária que ronda nosso país na atualidade enseja uma revisão de todo e qualquer dispositivo com ranço autoritário que por ventura ainda persista em nosso ordenamento jurídico, sob pena de termos sempre uma porta aberta ao terrorismo estatal, instrumentalizado por uma legislação incoerente com a ordem constitucional vigente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegando ao final deste estudo, após percorrer a história da Lei de Segurança Nacional, suas várias versões e o contexto na qual foi criada, foi possível descobrir que a ênfase na expressão "segurança nacional" provém do pensamento difundido no seio militar e em setores influentes da sociedade pela Escola Superior de Guerra, criando assim a Doutrina da Segurança Nacional, verdadeiro sustentáculo moral das ações de todo o aparelho repressivo montado pela ditadura militar para perseguir opositores políticos.

No decorrer de nossa pesquisa ficou constatado que a maior aplicação da DSN se deu justamente no período mais truculento da ditadura e que tal ideologia foi instrumentalizada justamente para reagir contra o avanço da oposição ao regime, que ganhava força nas ruas, nas fábricas e universidades.

De outro lado, também se percebeu que na intenção de legitimar a ordem estatal autoritária implantada, os militares combinaram a doutrina vaga da segurança nacional com a intrumentalização do Judiciário para tais fins e as redações das várias versões da Lei de Segurança Nacional serviam de elemento saneador de seus atos violentos.

Mais adiante, o presente trabalho constata que foi a prática da luta pela redemocratização que passou a introduzir o discurso dos Direitos Humanos no país e que mais tarde, com a promulgação da Constituição de 1988, conquistamos avanços para a sociedade brasileira com a ampliação e o fortalecimento dos direitos e garantias fundamentais, sobretudo por tornar a dignidade da pessoa humana, elemento balizador do respeito aos Direitos Humanos, um dos fundamentos do Estado.

Assim, fundou-se um Estado baseado, entre outras coisas, nos valores democráticos, na soberania popular, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, no pluralismo político, na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, etc. Tudo aquilo que é contrário aos valores que orientaram a condução da ditadura que durou 21 anos e que teve seu sustentáculo ideológico baseado na doutrina da segurança nacional.

Nesse sentido, ao se constatar o crescimento do manejo da atual Lei de Segurança Nacional, o presente estudo passou a refletir sobre a existência de tipificações abertas nos crimes dispostos na mesma, com farto uso de expressões vagas, facilmente instrumentalizáveis para fins de perseguições políticas, o que não se coaduna com todo o arcabouço ideológico que permeia nossa Constituição.

Por fim, considerando o apreço publicamente declarado do atual presidente do Brasil por regimes autoritários, a variedade de usos recentes dos dispositivos da LSN para intimidar opositores políticos tem acendido o alerta sobre a necessidade da revogação da mesma e da sua substituição por uma nova lei que privilegie a proteção ao Estado Democrático de Direito ao invés de proteger valores autoritários.

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Sobre o autor
LP Silva Consultoria

Mestrando em Direitos Humanos - Graduado em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONSULTORIA, LP Silva. Violência estatal e Lei de segurança nacional:: Uma breve reflexão à luz dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6564, 21 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91304. Acesso em: 21 nov. 2024.

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