Semiologia, Filmologia, Epistemologia e Instrumentação Jurídica: Reflexões
Nesta perspectiva, e observando o cenário contemporâneo, surge a pergunta: Somos, então, todos frutos da alienação? Somos todos estrangeiros maquinizados? Somos todos aliens prontos para a mudança para a grande favela do Distrito 9, totalmente controlada pela máquina do Estado. Ou teremos nós alguma possibilidade de, entre o lobo e o cordeiro, optarmos pela águia? Seremos capazes, enfim, de seguirmos os passos de Gru, e nos reterritorializarmos em uma nova subjetividade imanente, muito além do mero debate de heróis e vilões?
A metamorfose ambulante cantada por Raul Seixas6, por si só, não está isenta de ser capturada por uma sociedade e economia tecnológica cada vez mais sedenta de transformações e crescimento num ritmo alucinante. Mas, assim como fez o próprio Raul Seixas e tantos outros nostálgicos membros das gerações beat e contemporâneas, há possibilidade sim de reverter a ordem e quebrar paradigmas.
Ao Direito, cabe a eterna lembrança de que a cultura e especialmente a mídia, os meios de comunicação, têm papel insofismável na formação dos valores sociais e morais, bem como na formação da opinião pública. Os profissionais de Direito, enquanto agentes do conhecimento, quando no exercício de suas atividades devem observar a interferência dos valores midiáticos na formação da moral e na determinação de ações e atitudes dos indivíduos, ao mesmo tempo que, como agentes políticos, devem ter a noção semiótica de compreender o papel e o poder das mídias e meios de comunicação em geral na formação de cultura e estereótipos, bem como na utilização desses canais como instrumento de construção de subjetivações e realidades, promovendo o imaginário popular, o imaginário social, exercendo forte interferência na moral e prejulgamento dos heróis e vilões – que nem sempre se encaixam necessariamente nesta categoria (assim como o lobo, apesar de forte, pode não ser nobre), especialmente em relação ao Direito Penal.
Lembrando Maria da Graça Chama Ferraz e Ferraz:
“Seja qual for o instrumento teórico, e seja qual for o lugar da sua criação, ele pode ser conectado a qualquer realidade social. Os frutos desta conexão são necessariamente provisórios, pois significam elaboração desse movimento, por definição, contextualizado.
Enquanto ferramentas, os recursos teóricos são universais, e são ao mesmo tempo provisórios pois só existem a cada vez que são recriados em uso, no contexto de novas práticas.
Teoria é movimento de produção, simultâneo ao da realidade. Uma teoria jamais se cristaliza, porque é ‘cria/criadora’ do movimento de produção social. Deste ponto de vista, quanto maior for o número e variedade de instrumentos disponíveis, melhor” (FERRAZ, 1986:17)
Desta forma, se é possível concluir algo após este longo texto argumentativo que dificilmente se tornaria uma boa obra literária ou um bom enredo de filme, é que, independente dos motivos, objetos e objetivos, a análise filmológica é, sem sombra de dúvida, um rico instrumento semiótico para estudo de qualquer ciência, especialmente do Direito. Cinema, literatura e todas as demais formas de expressão artística podem ser ótimas ferramentas de debate e ampliação dos conhecimentos. O cinema é a arte que mais representa a vida social, colocando nas telas os objetos, histórias, vestimentas, acontecimentos, enredos, leis, estruturas sociais, instituições e tudo mais que são expressão de nossa subjetivação, de nossa vida.
A respeito disso, em excelente matéria jornalística publicada em 22 de março de 2013 no caderno Justiça e Direito do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba (PR), tratando da obra intitulada Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade, publicada em 2013 com supervisão e organização de Lenio Streck e André Karam, com participação de vários autores, juristas e doutrinadores, Katna Baran disse:
A argumentação não só mostra como a literatura ajuda a fundamentar a realidade, mas como o próprio direito se utiliza dessa ferramenta para interpretar a sociedade. Essa relação entre direito e literatura pode ser analisada de três formas: o direito na literatura; o direito da literatura, que trata dos direitos do autor ou de uma obra e de temas relacionados, como a liberdade de expressão; e, ainda, a utilização de práticas da crítica literária para compreender e avaliar os direitos, as instituições e procedimentos judiciais, o que seria o direito como literatura. (BARAN, 2013)
A análise de obras artísticas, literárias, e especialmente a análise filmológica, utilizando-se das ferramentas da Semiologia e da Semiótica, nos permitem rever processos históricos, construção do pensamento social, estrutura da sociedade contemporânea e suas múltiplas facetas, além de criar uma relação objetiva e subjetiva, dos aspectos políticos, econômicos, culturais, sociais, jurídicos e afins, inter-relacionando o universo ficcional e a realidade
Outra conclusão possível é que a semiologia, a semiótica, realmente trazem instrumentos essenciais para a prática do Direito. Sendo o Direito e a prática judicial pura linguagem, carregada de contextos e significados, a utilização da semiótica torna-se essencial não apenas para o regramento jurídico no estabelecimento de regras de comportamento denominadas normas jurídicas, mas principalmente no discurso e na prática da ciência do Direito e da Ciência Jurídica observando, interpretando e atuando sobre a linguagem descritiva contemplada no processo.
Ao Direito, cabe a eterna lembrança de que a cultura e especialmente a mídia, os meios de comunicação, têm papel insofismável na formação dos valores sociais e morais, bem como na formação da opinião pública. Os profissionais de Direito, enquanto agentes do conhecimento, quando no exercício de suas atividades devem observar a interferência dos valores midiáticos na formação da moral e na determinação de ações e atitudes dos indivíduos, ao mesmo tempo que, como agentes políticos, devem ter a noção semiótica de compreender o papel e o poder das mídias e meios de comunicação em geral na formação de cultura e estereótipos, bem como na utilização desses canais como instrumento de construção de subjetivações e realidades, promovendo o imaginário popular, o imaginário social, exercendo forte interferência na moral e prejulgamento dos heróis e vilões – que nem sempre se encaixam necessariamente nesta categoria (assim como o lobo, apesar de forte, pode não ser nobre), especialmente em relação ao Direito Penal.
No entanto, por mais importantes que sejam a aplicação dos instrumentos da semiótica para a ciência do Direito e as ciências Jurídicas, é essencial ter consciência de que esta utilização dessas ferramentas só pode acontecer isenta de interferências e forças morais, devendo estar marcada pela imparcialidade, pela ética, pela vontade de potência. Como observado nas análises dos filmes Abril Despedaçado (SALLES, 2001) e Distrito 9 (BLOMKAMP, 2009), além da música A Morte do Vaqueiro (GONZAGA, 1963), a mesma fundamentação conceitual em Direitos Humanos pode inexistir pela falta de presença do Estado e da Justiça em determinado local, bem como pode servir, mediante a presença do Estado e da Justiça, encobrir realidades e manipular as forças políticas exatamente como foi feito para legitimar a discriminação dos “camarões” em Distrito 9 (BLOMKAMP, 2009), demonstrando que mesmo a aplicação da semiótica na instrumentalização do Direito pode corromper os preceitos iniciais e servir de justificativa para justificar a não aplicação dos direitos mínimos, a presunção de inocência, a ampla defesa e tudo mais que representa o garantismo legal.
A ética, tão necessária ao garantismo, é vontade de potência essencial para o Direito, especialmente ao Direito Penal, nesta árdua tarefa de assegurar a interpretação correta, adequada, semiótica, seja das ciências Jurídicas, seja do Direito como ciência, porque o mais importante, independente das questões epistemológicas que confundem ciências Jurídicas e Direito, na prática, o essencial é a garantia da justiça, a interpretação adequada dos instrumentos científicos, sob a ótica jurisdicional, processual, hermenêutica, semiótica e principalmente ética, possibilitando a aplicação de uma justiça sem ativismo, valorizada pela imparcialidade e ética, pelo mais puro conceito de justiça.
BIBLIOGRAFIA
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NOTAS:
1 Fala apresentada no filme Tese sobre um Homicídio (GOLDFRID, 2013), dita pelo personagem Gonzalo, aluno brilhante de Direito em universidade de Buenos Aires, em provocação ao seu professor Roberto Bermúdez, autor renomado na área de Direito Penal e professor de em disciplinas de penal e criminologia na mesma Faculdade de Direito onde estuda Gonzalo.
2 Trecho de letra retirado da obra através de: GONZAGA, Luiz; GONZAGA JÚNIOR, Luiz. A Morte Do Vaqueiro. In: Gonzagão & Gonzaguinha - A Vida do Viajante (Ao Vivo – CD Duplo). Faixa 9, CD 1. Brasil: Sony / BMG, 2003.
3 A palavra alien tem origem no latim Alienus, que significa “de outro”, “estrangeiro”, “forasteiro”, “que vem de fora”, dando origem a palavra “alienígena”. Interessante notar que, na origem da língua inglesa, allien tem como adjetivo “alheio”, “estranho”, podendo significar ao mesmo tempo “estrangeiro” ou “forasteiro”, mas também “afastado” ou “alienado”. Na língua portuguesa, a herança do latim trouxe a terminologia Alienus e a terminologia Alienare para criar a palavra “alienista”, que está relacionado com, o doente mental, o diferente, o alheio, o estranho, o alienado.
4 Tratando sobre condições de vida, aborda que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar (...).
5 Aborda que toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.
6 A música “Metamorfose Ambulante” foi composta por Raul Seixas e gravada originalmente no LP intitulado “Krig-ha, Bandolo”, gravado nos estúdios da Philips e lançado no ano de 1973.