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Encontre os charlatões

18/08/2021 às 22:15
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Análise da imputação de crimes de charlatanismo e curandeirismo pela CPI da covid-19 ao Presidente da República.

A missão de lecionar Direito no Brasil está se tornando impossível, seja pela insegurança jurídica causada por decisões judiciais que vêm e vão em diversos temas de acordo com a maré, seja pela atuação midiática de atores políticos.

Agora nos chega a notícia de que o Presidente da CPI, Omar Aziz, o Vice, Randolfe Rodrigues e o Relator, Renan Calheiros, teriam acordado em indiciar o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, por supostos crimes de “Charlatanismo” e “Curandeirismo”, conforme previsão legal nos artigos 283 e 284, CP. [1]

O intuito deste texto é tentar minimizar os efeitos nefastos de produção de ignorância jurídica que uma atitude como esta pode gerar, especialmente para aqueles que se iniciam nas sendas dos estudos jurídicos.

Antes de ingressar diretamente no aspecto legal, é preciso esclarecer que a palavra “charlatão” não tem um sentido unívoco. Pode designar o praticante de “Charlatanismo”, conforme dispõe do artigo 283, CP (“Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”) ou mesmo o dicionário (“Vendedor público de drogas, cujas virtudes apregoa com exagero”). Mas, agora apenas no vernáculo, tem também o sentido de “impostor, embusteiro ou trapaceiro”. [2]

Dessa forma é sempre bom lembrar a máxima que nos ensina as duas grandes formas de expressão da desonestidade intelectual: fingir não saber o que se sabe perfeitamente ou fingir saber o que não se sabe. Ora, na pequena tertúlia havida entre Aziz, Randolfe e Calheiros que resultou na decisão de imputação dos crimes antes nomeados ao Presidente da República, certamente uma das duas formas de desonestidade intelectual foi guia de toda entabulação. Isso porque, como se demonstrará, não há a menor possibilidade de tipificação de qualquer conduta do Presidente a tais crimes. Assim sendo, ou bem os parlamentares fingem conhecer o Direito Penal e realmente acreditam que podem imputar “Charlatanismo” e “Curandeirismo” ao Presidente com sustento legal, procurando aparecer para o público como experts jurídicos que jamais foram (fingem saber o que não sabem); ou sabem muito bem o absurdo jurídico que é essa imputação, mas não se importam, pois estão focados na repercussão midiática tão somente (fingem que não sabem o que sabem). E então aqui já podemos adiantar que há realmente charlatões [3] nessa celeuma, mas tão somente no sentido vernacular do termo acima já exposto e não no sentido jurídico. Charlatões são aqueles que se reúnem para produzir uma clara e evidente impostura, fingindo desconhecer o que conhecem ou afetando conhecer o que desconhecem.

Cumprido o desafio que conforma o título deste trabalho, ou seja, encontrados os charlatões, ao menos no sentido literal (não jurídico) do termo, podemos caminhar para a demonstração da absoluta impropriedade dessa imputação ao Presidente da República e, com isso, tentar evitar, nos limites da nossa capacidade, a criação de confusão e ignorância jurídica especialmente nas mentes dos que dão os primeiros passos no mundo do Direito Penal.

Charlatanismo é um crime previsto no artigo 283, CP, consistente, como já esclarecido linhas volvidas, em “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”. Logo de início é visível que a notícia de que possam existir medicamentos para tratamento de uma enfermidade, os quais são publicamente conhecidos há muitas décadas e são objeto de pesquisas, jamais pode ser considerado a propagação de um “meio secreto” de cura. Também nunca se viu nem o Presidente, nem ninguém dizer que qualquer tratamento tivesse 100% de eficácia, ou seja, fosse “infalível”. Ademais, não se tem notícia de que as manifestações presidenciais acerca de medicamentos tenham sido em algum momento relativas a um interesse pessoal na venda ou que ele fosse fornecer tais remédios a alguém diretamente.

Não é possível sequer afirmar que seja o Presidente ou qualquer pessoa que indique algum medicamento para o tratamento do Covid 19 tenha certeza de seus efeitos benéficos ou maléficos. Trata-se de questão nova, ainda em grande debate, inclusive nos meios científicos especializados, tanto é fato que na própria CPI compareceram diversos defensores de tratamentos, vacinas etc., todos expressando noções ainda precárias, sujeitas à contradição. Aliás, na verdade, a ciência, essa palavra tão gasta hoje em dia, se caracteriza exatamente por essa precariedade e possibilidade de confrontação e não por alguma ideia totalitária ou dogmática que impeça a crítica ou a tentativa de inovações ou caminhos diversos.

Portanto, ainda que não fosse pela falta absoluta de elementos objetivos do tipo penal, também é notório o fato de que o elemento subjetivo necessário (dolo) não está presente. O fato indicado como criminoso é, na verdade, absolutamente atípico. Isso porque é “indispensável que o agente tenha ciência de que não é eficaz ou infalível o tratamento, remédio ou outro meio que afirma trazer a cura”. É imperiosa, portanto, a prova de “má – fé” e inexiste figura culposa ou “charlatanismo inconsciente”. [4]

Observe-se a lição de Gonçalves:

Charlatão é o golpista que ilude a boa – fé dos doentes, inculcando ou anunciando cura por meio secreto ou infalível, ciente de que a afirmação é falsa. Normalmente o agente toma essa atitude visando à obtenção de lucro. Tal intento, entretanto, não é pressuposto do delito (grifos no original).   [5]

Note-se que há necessidade de dolo em iludir a boa – fé das pessoas e ação no sentido de apresentar o meio de cura como “secreto ou infalível”. Além disso, como bem destaca o autor acima, é natural do crime o intuito de lucro do agente. Ora, nada disso pode jamais ser imputado ao Presidente ou a qualquer um que apresente um tratamento, especialmente envolvendo medicamentos conhecidos há décadas e que vêm sendo aplicados empiricamente e estudados ao lado de outras opções para uma enfermidade totalmente nova.

Destaque-se que é requisito indispensável do tipo penal que “a inculca ou anúncio de cura se faça com fundamento em meio secreto (oculto, ignorado) ou infalível (de eficiência garantida, certa)” (grifos no original). [6]

Mirabete e Fabbrini são diretos sobre o tema: “a afirmação de que é infalível a cura é indispensável à ocorrência do ilícito”. E dizem mais, com sustento em abundante doutrina (Magalhães Noronha, Nelson Hungria, Heleno Fragoso): “Não constitui charlatanismo divulgação de descoberta de tratamento com a afirmação de ter sido sua eficácia comprovada, sem inculcar-se infalibilidade de cura”. [7]

Além disso, é natural que o charlatão se autointitule como aquele detentor do conhecimento especial e da orientação para a cura. O Presidente e todas as pessoas que tratam dessa questão jamais se apresentaram como “milagreiros” ou mesmo “iluminados”, dotados de algum conhecimento esotérico (secreto). Toda manifestação se dá por aplicações empíricas ou clínicas e estudos que apontam maior ou menor grau de eficácia, geralmente produzidos por terceiros, salvo no caso de alguns médicos ou pesquisadores.  A doutrina ensina claramente que o charlatão “propõe ou divulga a cura de doenças por processos ou remédios que somente ele tem conhecimento ou então que diz ser infalível” (grifo nosso). [8] Seria até mesmo impossível ao Presidente ou a qualquer um afirmar ser o detentor único do conhecimento acerca de medicamentos postos a público desde muito tempo.

Se o “Charlatanismo” não se configura de forma alguma, pior ainda é a situação no que se refere ao “Curandeirismo”, previsto no artigo 284, CP. Não existe a menor notícia de que o Presidente tenha praticado quaisquer das ações descritas nos incisos do artigo 284, CP. Jamais houve prescrição de remédios ou tratamentos, muito menos aplicação de substâncias a quem quer que fosse por parte do Presidente, o que seria, aliás, praticamente impensável. Também não há informação de que o Presidente em algum momento tenha usado de gestos, palavras ou quaisquer meios supostamente mágicos ou esotéricos para tratar alguém, seja pessoalmente ou virtualmente. Isso é outra coisa que não se consegue sequer imaginar. Finalmente, jamais se soube que Bolsonaro tenha atendido alguém e feito diagnósticos! Fazer diagnóstico consiste em identificar as doenças por meio de seus sintomas ou sinais, o que implica em examinar ou entrevistar pessoas! Será que isso ocorria no chamado “cercadinho” do Planalto? Não se sabe disso, embora o local seja monitorado praticamente todo o tempo pela imprensa nacional e internacional. Torna-se muito difícil compreender, fora do âmbito da desonestidade intelectual em uma de suas vertentes, sequer a menção a esse tipo penal por parte dos parlamentares.

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É importante lembrar que o curandeiro está ligado ao emprego de fórmulas “sobrenaturais, mágicas” e jamais à menção a medicamentos ou tratamentos usados clinicamente e em estudo científico. [9] Parece que estão confundindo o Presidente com certo sedizente “médium” acusado, este sim desse crime, de abusos sexuais e outros ilícitos, o qual, infelizmente tinha como pacientes, inclusive, realmente, altas autoridades brasileiras. O curandeiro não faz menção a medicamentos ou fármacos disponíveis no mercado e sujeitos ao emprego clínico (com maior ou menor sucesso), mas explora a “fraqueza espiritual da vítima” que acaba “subjugada a superstições inócuas”, muitas vezes retardando o tratamento a ser empregado pela “medicina tradicional”. [10]

Seria cômico, não fosse trágico ver como a doutrina apresenta a figura criminológica mais comum do autor de curandeirismo e pensar que esse tipo penal foi sequer cogitado pelos parlamentares. Bitencourt dá exemplos de sujeitos ativos: “feiticeiro, cartomante, pai – de – santo, médium etc.”. [11] Não há menção a Presidentes da República, a não ser, talvez, se exercessem as funções esotéricas ou místicas nas horas vagas! E novamente nunca se soube de atendimentos dessa espécie realizados por Jair Bolsonaro antes ou depois de se tornar Presidente.

Ademais, a conduta do curandeirismo consiste no efetivo “exercício da arte de curar de quem não tem necessária habilitação profissional, por meios não científicos”. [12] Ou seja, é preciso que o autor efetivamente exercite a prática da cura em pessoas, não bastando, como no charlatanismo, a mera inculcação ou anuncio de cura. Por isso é ainda mais impossível tipificar qualquer conduta do Presidente nesse tipo penal.

Enfim, resta claro que se temos alguns charlatões, estes são aqueles indivíduos que, com embuste, pinçaram aleatoriamente, com ou sem conhecimento de causa, dois tipos penais do nosso ordenamento para simplesmente atirá-los à mídia e, infelizmente, até mesmo para confundir as pessoas que pretendem seriamente aprender e compreender a ciência do Direito Penal.   Ao menos, ao final de nossa busca, ou já no início, tendo em vista a notoriedade do embuste, encontramos facilmente os charlatões ou parlapatões ou também histriões. Resta-nos rir...ou chorar.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

CPI decide propor indiciamento de Bolsonaro por Charlatanismo. Disponível em https://istoe.com.br/cpi-decide-propor-indiciamento-de-bolsonaro-por-charlatanismo/ , acesso em 12.08.2021.

DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 4ª. ed. Curitiba: Positivo, 2009.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal – Parte Especial. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva,2018.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018.

GUEIROS, Artur, JAPIASSÚ, Carlos Eduardo. Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2018.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume III. 28ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014.


[1] CPI decide propor indiciamento de Bolsonaro por Charlatanismo. Disponível em https://istoe.com.br/cpi-decide-propor-indiciamento-de-bolsonaro-por-charlatanismo/ , acesso em 12.08.2021.

[2] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 4ª. ed. Curitiba: Positivo, 2009, p. 451.

[3] A palavra “charlatão” varia no plural como alternativamente como “charlatões” ou “charlatães”. Op. Cit., p. 451. Neste texto, optou-se pelo emprego do temo “charlatões”.

[4] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N.  Manual de Direito Penal. Volume III. 28ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 147.

[5] GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal – Parte Especial. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva,2018, p. 722.

[6] DELMANTO, Celso, DELMANTO, Roberto, DELMANTO JÚNIOR, Roberto, DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 813.

[7] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N.  Op. Cit., p. 147.

[8] GUEIROS, Artur, JAPIASSÚ, Carlos Eduardo. Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2018, p. 890.

[9] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 999.

[10] Op. Cit., p. 999.

[11] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 928.

[12] Op. Cit., p. 928.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Encontre os charlatões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6622, 18 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92426. Acesso em: 11 out. 2024.

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