Resumo:Com a publicação da Lei 14.181/21, o Código de Defesa do Consumidor foi alterado. Dentre outras alterações, um capítulo instruindo a conciliação para consumidores superendividados foi inserido. Contudo, nem todas as dívidas da pessoa física são provenientes de relação de consumo. É importante que as partes interessadas na conciliação tenham total entendimento dos valores que podem ser negociados. Um dos principais objetivos dessa negociação é garantir ao superendividado uma oportunidade digna e humana, observado o mínimo existencial e a necessidade do requerimento de boa-fé.
Palavras-chave: Superendividamento. Conciliação. Dignidade. Dívida. Consumidor.
Introdução
O presente estudo motiva-se pela publicação da Lei 14.181/21, em 1° de julho de 2021, que alterou em muitos aspectos o Código de Defesa do Consumidor. Entre essas mudanças foi inserido um capítulo específico para regulamentar a realização de audiências de conciliação entre empresas credoras com consumidores superendividados.
A intenção do legislador é nobre, pois o maior beneficiado é a pessoa natural que se encontra tão endividada que seus proventos sequer são suficientes para garantir a subsistência pessoal ou de sua família. Entretanto, deve-se notar que foram inseridos vários dispositivos para evitar a utilização dessa conciliação com objetivos espúrios ou em má-fé.
Dessa forma, esse trabalho almeja esclarecer questões importantes sobre o novo instituto que agora compõe o Código de Defesa do Consumidor. Questões relacionadas aos requisitos necessários para que uma pessoa superendividada possa requerer o processo de negociação, a fim de obter uma conciliação e evitar que suas condições dignas de existência não sejam lesadas.
Princípios da conciliação
A conciliação é um dos métodos extrajudiciais de resolução de conflitos que o Código de Processo Civil de 2015 traz de forma expressa. O próprio dispositivo legal define:
Art. 166 - A conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada.
Dessa forma, sendo princípio aquilo que é primordial e considerado antes de qualquer outra coisa, certo é que a conciliação é regida por um conjunto de regras a fim de lhe darem validade e credibilidade no acordo gerado.
O princípio da independência garante ao conciliador a liberdade de ação sem qualquer influência externa ou pressão interna das partes. Fica, também, livre de qualquer submissão a um determinado magistrado ou outra autoridade.
Atender ao princípio da imparcialidade confere, para as conciliações, a ausência de qualquer tipo de interesse pelo conciliador no litígio apresentado. Sua existência é quase consequência lógica do princípio da independência e, também, uma obrigação moral do conciliador. Contudo, importante é saber que intervenções do conciliador em casos de atitudes temerárias das partes não configuram abuso e, portanto, não ferem a imparcialidade dele exigida.
Outro princípio que deve ser observado é o da autonomia da vontade das partes. Se os dois primeiros relacionam-se mais com o conciliador, a autonomia da vontade refere-se diretamente às partes. Se os dois envolvidos estiverem de acordo em algum ponto, não cabe ao conciliador aprovar ou não a decisão. Apenas deve formalizar e reduzir a termo o acordo, desde que respeitada a licitude e validade.
Já o princípio da confidencialidade obriga o conciliador a manter em sigilo todas as informações tratadas nas audiências de conciliação. Entretanto, se autorizado pelas partes, ele não há impedimentos. Porém, não havendo conciliação e houver processo judicial sobre o tema, o conciliador jamais poderá ser testemunha na lide.
Outros princípios que regem as conciliações são os da oralidade e informalidade, que derivam da não razoabilidade de se exigir termo de conversas e discussões realizadas em audiência ao perquirir a conciliação. O termo de acordo, por se tornar título extrajudicial, deverá ser reduzido a termo, mas sobre os demais atos e audiências de conciliação observam-se os dois princípios, a fim de incentivar a conciliação.
E, o último princípio que o CPC institui para as conciliações, é o da decisão informada. Em razão dele, o conciliador deverá informar de forma clara e não deixar as partes em dúvidas quanto aos seus direitos. Eles deverão saber das consequências do acordo, as obrigações geradas e demais consequências da conciliação.
A importância da conciliação nos casos de superendividamento
O instituto da conciliação, formalmente inserido no Código de Processo Civil atual, pode ser considerado um instituto importante e muito eficaz para resolução de conflitos.
E essa modalidade de resolução de conflitos pode ser utilizada judicialmente, mas também e principalmente, em composições extrajudiciais.
Farinelli, ao estudar a eficácia da conciliação, afirma:
A eficácia da conciliação exige discussão aberta, direta e franca entre as partes. Pode acontecer antes ou depois da instauração do processo. É importante alternativa de aproximação e participação dos envolvidos na solução do conflito. Mas também proporciona efetivo acesso à justiça, já que sua eficácia depende do tratamento igualitário entre os contendores que decidem, em conjunto e da melhor forma, a situação conflituosa, buscando a maior harmonia e a mútua satisfação. (FARINELLI; CAMBI, 2011, p. 288)
Muitos pesquisadores ensinam que a conciliação não lida diretamente com o problema, mas ignora-o. O objetivo desse comportamento é focar no deslinde da situação, com o levantamento de possíveis resolução para o conflito em comum acordo.
No contexto da solução do conflito entre consumidores superendividados e seus credores, a conciliação tem potencial para ser eficiente em diversos sentidos. No sentido de focar na solução e não no litígio, a formalização de um plano de quitação e a reinserção do consumidor no mercado de consumo pode ser entendida como eficiência máxima.
Com o acordo das partes nesse sentido, solucionam-se muitos problemas, tais como:
1. a inadimplência: o credor terá a segurança de um acordo extrajudicial formal com pagamentos planejados e o consumidor gozará novamente da situação de adimplemento.
2. possibilidade de oferta de crédito ao consumidor: como consequência do adimplemento, o consumidor poderá buscar novas ofertas de crédito e, portanto, fazer planos individuais e para sua família.
3. reinserção do consumidor no mercado: o consumidor, após estar apto a receber crédito novamente, movimentará a economia local e nacional, pois poderá voltar a consumir e não apenas cumprir as obrigações de juros e mora.
Além disso, a composição amigável e extrajudicial é um dos aspectos de eficiência ao colaborar com a diminuição das demandas judiciais. A redução do número de processos pode permitir que os servidores do Poder Judiciário executem melhor suas funções, além de reduzir o custo pecuniário para resolução de demandas e, ainda, indicar que os conflitos sociais podem ser resolvidos com transação e comum acordo.
O portal de notícias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) enfatizou que “as conciliações realizadas pelos tribunais atingiram 2.339.453 entre janeiro e junho deste ano. O resultado é mais que o dobro das 924.292 feitas no mesmo período de 2020”. Os dados foram apresentados em evento oficial do órgão e ressalta a importância do incentivo das resoluções extrajudiciais dos conflitos.
Sendo assim, a decisão do legislador de instituir a conciliação extrajudicial no Código de Proteção e Defesa do consumidor pode ser considerada um avanço. No contexto do consumidor, a resolução rápida e eficiente que a conciliação proporcional evita, também, a manutenção da situação de superendividamento.
As pessoas em condição de superendividamento e a possibilidade de conciliação
A lei estudada nesse artigo exige, além da observação dos princípios do art. 166 do CPC, a legitimidade da parte que se declara superendividada. Contrair dívidas oriundas de relações de consumo é algo que toda pessoa pode lidar ao celebrar contratos ou outros negócios jurídicos.
Portanto, a simples existência de dívidas que obrigam a pessoa não significa que ela esteja superendividada. Para requerer a conciliação e possível acordo, a parte deve cumprir alguns requisitos.
Afirma o doutrinador Marques:
O superendividamento pode ser definido como impossibilidade global do devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com Fisco, oriunda de delitos e de alimentos) em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio. (MARQUES, 2006, p. 256)
A primeira exigência legal é que o superendividado seja pessoa natural, conforme art. 104-A do Código de Defesa do Consumidor (redação dada pela Lei 14.181/21). Portanto, exclui-se a possibilidade de que pessoas jurídicas possam pleitear essa conciliação. O motivo é simples: pessoas jurídicas já contam com os institutos da recuperação judicial e falência em casos de superendividamento.
Além disso, o consumidor requerente deverá apresentar plano para pagamento das obrigações em que esteja inadimplente. Obrigatoriamente o plano deverá ter prazo máximo de cinco anos para sua realização.
Contudo, como em todas as relações de consumo, exige-se a boa-fé das partes envolvidas e, nesse caso, do consumidor. As dívidas contraídas sem a intenção de pagar, o que caracteriza a má-fé do requerente, não podem ser abarcadas pela conciliação instituída pela Lei 14.181/21.
O próprio CNJ publicou notícia sobre o tema:
Agora, a pessoa superendividada pode solicitar a renegociação em bloco das dívidas no tribunal de Justiça do seu Estado, onde será realizada uma conciliação com todos os credores para a elaboração de um plano de pagamentos que caiba no seu orçamento. E, para tornar ainda mais ágil, essa conciliação também pode ser realizada nos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como Procon, Defensoria Pública e Ministério Público. (2021)
O mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana
Assim, partindo-se da premissa de que o consumidor superendividado não está agindo de má-fé e satisfaz os requisitos e condições necessários, a intenção legislativa é garantir o mínimo existencial para a pessoa.
De início, essa garantia é constitucional, pois a Carta Magna de 1988 é clara em defender a dignidade da pessoa humana. Para isso, dentre outras coisas, deve-se garantir ao ser humano lazer, moradia, alimentação e saúde.
Atualmente, todas essas condições, que são partes em um todo chamado dignidade da pessoa humana, dificilmente podem ser obtidas sem renda ou crédito individual e familiar. Logo, lazer, moradia, alimentação e saúde são requisitos quantitativos importantes da composição do mínimo existencial da pessoa.
Nesse sentido, afirma SARLET:
Nada mais violento que impedir o ser humano de se relacionar com a natureza, com seus semelhantes, com os mais próximos e queridos, consigo mesmo e com Deus. Significa reduzi-lo a um objeto inanimado e morto. Pela participação, ele se torna responsável pelo outro e con-cria continuamente o mundo, como um jogo de relações, como permanente dialogação. (2002, p. 22)
Mas, não é apenas no texto constitucional que a subsistência é garantida. Tratados internacionais - como o Pacto de San José de Costa Rica - trazem a mesma previsão. Portanto, é evidente a importância da manutenção de uma renda mínima, mesmo para aqueles que, independente do motivo, perderam totalmente o controle de suas finanças e tornaram-se superendividados.
Além disso, analisando de forma mais filosófica, essa garantia do mínimo para uma vida digna e satisfatória, o mínimo existencial também se fundamenta no jusnaturalismo e na moral.
O autor Ridola, ao analisar a evolução do conceito de dignidade através da história, conclui:
Esse universalismo [da dignidade do ser humano] estava, seguramente, embutido nas premissas do jusnaturalismo racionalista e acentuava, na época de formação do Estado moderno, que a dignidade era uma formação intrínseca do ser humano, cujo "valor" transcende as fronteiras dos estados e do direito estatal. (2014, p. 115)
Nesse sentido e considerando que os superendividados têm obrigações impossíveis de quitação - na maior parte dos casos - com bancos, grandes corporações ou outras instituições estatais, de poder político-econômico muito superiores, questiona-se a justiça de se exigir o cumprimento dessas obrigações.
Concluiu-se, dessa forma, que não é razoável ou humanitário corroborar que pessoas passem grande parte de suas vidas trabalhando à exaustão, apenas para pagar juros e encargos contratuais que jamais poderão ser adimplidos por suas próprias forças.
Considerações Finais
O problema do superendividamento do consumidor brasileiro, hodiernamente, é questão socioeconômica urgente. Entretanto, pesquisadores nessa área já defendiam a importância de uma lei específica para o tema. Após nove anos de discussão e surgimentos de novos projetos de Lei, a aprovação da Lei 14.181/21 pode ser considerada um avanço importante.
Por isso, a pesquisadora Silva afirmava:
O Projeto de Lei em exame trará inovações na parte geral do CDC, ampliando o rol de princípios e de direitos básicos dos consumidores, reforçando também os instrumentos da Política Nacional das Relações de Consumo. (Silva, 2012, p. 2)
Sendo assim, para tratar a pessoa do consumidor superendividado com respeito e, principalmente, atendendo aos requisitos que compõem a dignidade da pessoa humana, a publicação da Lei 14.181/21 deve ser considerada como uma boa inovação legislativa.
Nesse sentido, em período de pandemia - dentro do qual o superendividamento pode se tornar ainda mais grave, mas certo de que essa luta já existia há anos - a segurança jurídica converge para resolver as demandas com atenção à moral e aos bons costumes.
Assim, por todo o estudado, o resultado mais provável da publicação da Lei é o fortalecimento do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações consumeristas.
Referências
BRASIL. Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>
BRASIL. Lei n° 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14181.htm>
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Conciliações em 2021 já são mais que o dobro das realizadas no mesmo semestre de 2020. Publicado em 25/08/2021. Acesso em 31/08/2021. Disponibilizado em https://www.cnj.jus.br/conciliacoes-em-2021-ja-sao-mais-que-o-dobro-das-realizadas-no-mesmo-semestre-de-2020/
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). CNJ Serviço: o que muda com a Lei do Superendividamento? Publicado em 06/08/2021. Acesso em 31/08/2021. Disponível em https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-o-que-muda-com-a-lei-do-superendividamento/
FARINELLI, Alisson; CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. Conciliação e mediação no novoCódigo de Processo Civil (PLS 166/2010). Revista de Processo, São Paulo , v. 36, n. 194, p. 277-305, abr. 2011.
MARQUES, Cláudia Lima. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006.
RIDOLA, Paolo. A dignidade da pessoa humana e o “princípio liberdade” na cultura constitucional europeia. Trad. de Carlos Luiz Strapazzon. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 115-116
SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituiçãoda República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 22. 2
SILVA, Joseane Suzart Lopes da. Superendividamento dos consumidores brasileiros e a imprescindível aprovação do projeto de Lei 283/2012. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 100, ano 24, p. 361-391. São Paulo: Ed. RT.