1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade analisar a matriz constitucional dos direitos da criança e do adolescente, assim como o processo de efetivação desses direitos. Será demonstrada ao longo do trabalho a atuação do Poder Judiciário na concretização desses direitos, bem como a possibilidade de o magistrado ter uma atuação mais enérgica junto às autoridades locais, de modo que possa colaborar com o planejamento e execução das políticas públicas voltadas à infância e juventude. Também será tratada a importância de o Judiciário estar preparado para decidir os processos judiciais envolvendo crianças e adolescentes, especialmente sobre a relevância das equipes interdisciplinares para a efetiva realização do melhor interesse da criança.
2. DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
As políticas públicas voltadas à infância e juventude têm sua matriz constitucional no art. 227 da Constituição Federal. Segundo dispõe o citado artigo:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Contudo, para além da contemplação constitucional desses direitos, é preciso também instrumentalizar formas pelas quais possam ser efetivamente realizados. Neste viés é que o constituinte originário se preocupou em qualificá-los com absoluta prioridade.
Ademais, a prioridade e preferência do constituinte originário pelos direitos da infância e da juventude também se reproduz no Estatuto da Criança e do Adolescente, mais especificamente no art. 4º, par. único, alíneas c e d, cuja redação inclina os poderes públicos à formulação e execução de políticas sociais públicas voltadas à criança e ao adolescente, assim como à destinação privilegiada de recursos públicos junto aos mais diversos setores da administração.
Todavia, não obstante a previsão constitucional e infraconstitucional no que tange à prioridade de políticas públicas frente a esses direitos e garantias, na prática o que se vê é o descaso na imensa maioria dos municípios brasileiros. Ora por conta da escassez de recursos públicos ante à concentrada arrecadação de tributos nas mãos da União Federal e dos Estados; ora por conta da falta de compromisso das autoridades políticas municipais.
A título de exemplo, não é difícil encontrar municípios desprovidos de equipamentos públicos adequados ao atendimento prioritário da criança e do adolescente. Isto sem falar nas precárias condições de funcionamento dos Conselhos Tutelares, das Unidades de Internação ou de Semiliberdade. Para além da precariedade estrutural, também a falta de qualificação profissional dos atores envolvidos na rede de proteção tem agravado o problema.
Diante dessa realidade, cresce exponencialmente a atuação do Poder Judiciário nas questões envolvendo a execução de políticas públicas, nomeadamente aquelas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Contudo, se por um lado o Judiciário tem sido cada vez mais chamado a atuar nessa seara, paradoxalmente é também o Judiciário muitas vezes vítima de sua própria falta de planejamento, i. é., da estruturação inadequada para atuar na rede de proteção, ora por ausência de apoio interdisciplinar, ora por uma atitude estritamente legalista, que a depender do caso concreto só tende a se afastar do melhor interesse da criança e do adolescente.
Nas linhas seguintes abordar-se-ão esses dois temas, quais sejam: o controle de políticas públicas no âmbito dos direitos e garantias constitucionais da criança e do adolescente; bem como o papel do magistrado na busca do melhor interesse da infância e juventude.
3. DO CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO
Dúvidas não pairam de que, tradicionalmente, ao Poder Executivo compete planejar e executar as políticas públicas. Ou seja, em regra é o Executivo quem escolhe, planeja e executa o orçamento, cuja aprovação ocorre perante o Poder Legislativo. Em tese, o orçamento deveria refletir as escolhas constitucionais. Mas, na prática, a lei orçamentária tem se tornado mais uma peça de ficção que efetivamente um instrumento de efetivação de direitos e garantias constitucionais. Daí o porquê da precariedade dos serviços públicos de saúde, segurança, educação, etc., todos com amparo constitucional, mas que acabam sendo preteridos por outras escolhas mais atrativas do ponto de vista político. Em suma, as escolhas dos políticos poucas vezes coincidem com as opções constitucionais.
Assim, na medida em que a execução das políticas públicas se afasta da escolha constitucional, vale dizer, dos direitos e garantias constitucionais, verifica-se não somente a inconstitucionalidade das opções políticas dos gestores públicos, como também a reação das instituições democráticas legitimadas para o controle das ações públicas. A este fenômeno acresce-se, ainda, a insatisfação generalizada ou particular dos cidadãos, que, sentindo-se violados em seus direitos e garantias, recorrem ao Poder Judiciário.
O art. 68 da Constituição Federal de 1934 dispunha ser vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas. Também as Constituições de 1937 e 1967 mantiveram-se neste sentido. Com o advento da vigente Constituição, ampliou-se o poder de atuação do Poder Judiciário mediante a possibilidade de revisão dos atos dos demais poderes, em prol da prevalência dos direitos sociais e princípios constitucionais. O art. 5º, inciso XXXV, da Carta de 1988, dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Na lição de Mendonça, na atual concepção de bem-estar social as relações sociais demandam uma atuação jurisdicional mais abrangente do que aquela destinada à simples soluções de conflitos, uma vez que as próprias relações da sociedade moderna demandam sejam resguardados interesses transindividuais e valores constitucionais.[3]
À luz do art. 37 da Constituição Federal e nas palavras de Bandeira de Melo:
Assim como ao Judiciário compete fulminar todo comportamento ilegítimo da Administração que apareça como frontal violação da ordem jurídica, compete-lhe, igualmente, fulminar qualquer comportamento administrativo que, a pretexto de exercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar as fronteiras dela, isto é, desbordar dos limites de liberdade que lhe assistam, violando, por tal modo, os ditames normativos que assinalam os confins da liberdade discricionária.[4]
No mesmo sentido são as lições de Grinover:
Qualquer tipo de ação na jurisdição constitucional ou ordinária, pode ser utilizado para provocar o Poder Judiciário a exercer o controle e a possível intervenção em políticas públicas. Na jurisdição constitucional, pelo mandado de injunção, inclusive coletivo, pela ação de descumprimento de preceito fundamental, pela ação de inconstitucionalidade por omissão. E na jurisdição ordinária, por uma ação coletiva, individual com efeitos coletivos ou meramente individual, sendo certo que, neste ultimo caso, mais cuidados deverão ser tomados para a observância dos limites postos à intervenção. Isso porque o acolhimento da pretensão estritamente individual diminui a disponibilidade de verbas destinadas à política pública geral (aspecto negativo), embora a reiteração de pedidos no mesmo sentido acabar influindo, como já ocorreu, na ampliação da própria política público (aspecto positivo).[5]
A propósito desse tema, também o Supremo Tribunal Federal já se posicionara favoravelmente:
EMENTA DIREITO ADMINISTRATIVO. SEGURANÇA PÚBLICA. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. OFENSA NÃO CONFIGURADA. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 04.11.2004. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido. (RE 628159 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 25/06/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 14-08-2013 PUBLIC 15-08-2013).
Portanto, uma vez desconsiderados os preceitos constitucionais, i. é., os direitos e garantias contemplados na Constituição Federal, nomeadamente quanto aos direitos e garantias da criança e do adolescente, tendo em vista a prioridade absoluta desses direitos, legitimado estará o Poder Judiciário para controlar as opções políticas dos políticos, vale dizer, a execução das políticas públicas, respeitados, é claro, os limites constitucionalmente previstos.
4. DO PAPEL DO MAGISTRADO NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Como acima restou demonstrado, excepcionalmente o Judiciário pode intervir na execução das políticas públicas. Ocorre, no entanto, que essa intervenção não deixa de ter seus efeitos deletérios. O ideal seria que o Judiciário não fosse convocado a interferir nas políticas públicas; que as opções políticas dos gestores públicos observassem os preceitos constitucionais. Neste contexto, a questão relevante que se coloca é a de saber como e de que forma o Judiciário poderia agir preventivamente. Ou seja, o Judiciário poderia ter uma atitude preventiva mais enérgica e capaz de evitar violações constitucionais acerca das políticas públicas, especialmente no que toca àquelas voltadas à proteção da criança e do adolescente?
Segundo leciona Sadek, o Judiciário representa uma força de emancipação. É a instituição pública encarregada, por excelência, de fazer com que os preceitos da igualdade estabelecidos formalmente prevaleçam na realidade concreta.[6] Ainda segundo a citada autora, a definição do papel do juiz como a de um ator político envolve o reconhecimento de que suas atribuições produzem impactos sociais, econômicos e políticos. Esse protagonismo que rejeita ou supera o juiz «boca da lei» institui um juiz «corresponsável» pela concretizacao dos direitos e, nessa medida, um agente com atuação na arena pública.[7]
Conforme defende Antoine Garapon, coordenador do LInstitut des Hautes Etudes sur la Justice, de Paris, o juiz é, doravante, considerado como o árbitro dos bons costumes e até mesmo da moralidade política.[8] Elucida o citado autor que: o juiz torna-se o último guardião das promessas, tanto para o indivíduo como para a comunidade política. Não tendo guardado a memória viva dos valores que os fundamentam, estes últimos pediram à justiça que zelasse pelos seus juramentos.[9] Em suma, não é o Judiciário que se autopromove, mas sim a sociedade e mesmo os entes públicos que vão buscar no sistema de justiça a solução última dos problemas atuais. Isso fez com que o Judiciário viesse a ocupar um espaço de visibilidade, assim como aumentar sua responsabilidade no que toca à efetivação dos direitos fundamentais.
Para Eliana Calmon, ex-Ministra do Superior Tribunal de Justiça, a Constituição de 1988 passou a exigir dos magistrados o papel de fiscal das políticas públicas, além do que o juiz não é mais apenas um fazedor de processos. Ele é um agente político, um agente de poder, que deve atuar em harmonia com os outros Poderes, mas que deve ser parceiro prioritário da sociedade a que serve.[10]
Nesta seara, relevantes se mostram os escritos de Garapon:
A cooperação entre os diferentes actores da democracia já não é assegurada pelo Estado, mas antes pelo direito, que se assume, assim, como a nova linguagem política na qual são formuladas as reivindicações políticas. A justiça torna-se um espaço de exigibilidade da democracia. Oferece potencialmente a todos os cidadãos a capacidade de interpelar os seus governantes, de os chamar à atenção e de os obrigar a respeitar as promessas contidas na lei. A justiça parece oferecer-lhes uma possibilidade de acção mais individual, mais próxima e mais permanente do que a representação política clássica, intermitente e afastada.[11]
Diante dessa constatação é que se mostra relevante a atuação do magistrado como agente de transformação social. Isto é, de incentivador, articulador e promotor de novos paradigmas que levem a sociedade a pensar em sua totalidade. Trata-se do juiz que estimula o diálogo, a humanidade, a fraternidade, a compaixão do eu em relação ao outro para que este se sinta valorizado frente àquele, porque o eu não é ninguém menos que o outro. Nesse sentido, pode o magistrado atuar de modo a provocar nos cidadãos e nas entidades envolvidas o interesse pela discussão, pela participação e envolvimento não somente no planejamento, como na execução de políticas públicas voltadas à proteção da infância e da juventude.
O papel do magistrado na proteção dos direitos da criança e do adolescente não pode se reduzir aos termos da burocracia processual. É incoerente a ideia de que deve o magistrado aguardar a provocação das partes para agir. Ele deve ir além, ou seja, deve articular e promover o diálogo entre os envolvidos. É preciso que o magistrado de hoje assuma sua quota de responsabilidade na construção de uma nova rede de proteção da infância e da juventude. Ou seja, que saia do conforto dos gabinetes para o enfrentamento direto das questões relacionadas não apenas ao planejamento como à execução das políticas públicas que visem o melhor interesse da criança e do adolescente. Em resumo, é preciso pensar globalmente e agir localmente, pois, se de um lado os problemas sociais devem ser considerados em sua totalidade, doutro não restam dúvidas de que ações individualizadas tanto podem agravar quanto proteger, e até mesmo restaurar as esperanças de um mundo melhor.
Na prática, o que se propõe é que o magistrado assuma o papel de articulador e incentivador das políticas públicas destinadas à infância e juventude. Vale dizer que o magistrado no exercício da sua função pública deve valer-se da autoridade e do respeito que nutre no seio das comunidades locais, para, com isso, influenciar positivamente o agir comunitário de todos aqueles envolvidos na rede de proteção. Por exemplo, a construção permanente do diálogo entre o Judiciário, Executivo, Legislativo, Ministério Público, Polícias, Escolas, CRAS/CREAS, Conselhos Tutelares, etc., de modo que todos possam exercer de maneira plena/efetiva seus papeis, organizar fluxos, definir protocolos de atendimento e se unir em volta de um mesmo objetivo, qual seja, a construção de uma verdadeira e eficaz rede de proteção integral que, a rigor, não dependa da intervenção do Poder Judiciário para funcionar[12].
Neste sentido, deve o magistrado promover e participar de audiências públicas no seio do Judiciário ou de outros entes ou órgãos da administração pública, a começar por aqueles que têm a competência legal/constitucional para elaborar políticas públicas e efetuar o controle social de sua execução, como é o caso dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. Deve também diligenciar junto ao Executivo e ao Legislativo na elaboração da proposta orçamentária, exercendo sua função política e expondo publicamente a prioridade absoluta das políticas públicas de proteção aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Deve, em última análise, provocar o Ministério Público, na busca da efetiva solução dos problemas (sobretudo estruturais) existentes (como preconiza de maneira expressa o art. 221, da Lei nº 8.069/90), de modo que este promova as medidas administrativas e, se necessário, judiciais - destinadas à plena efetivação dos direitos infanto-juvenis, em toda abrangência prevista em lei. Como dito alhures, o magistrado é um agente político cujo poder encontra-se democraticamente legitimado pela Constituição, e, como tal, deve assumir sua parcela de responsabilidade na efetivação dos direitos constitucionalmente previstos.
Por outro lado, ao assumir sua quota de responsabilidade na defesa dos direitos da criança e do adolescente também requer do Judiciário uma postura menos legalista e mais humanística. Com bem leciona Digiácomo, a intervenção da Justiça da Infância e da Juventude, quando necessário, não tem por objetivo a pura e simples aplicação de medidas ou a concessão de um provimento jurisdicional qualquer, mas sim a obtenção - de maneira concreta e efetiva - da proteção integral infanto-juvenil, a partir da mais completa apuração dos fatos e de todas as suas nuances, sempre sob a ótica interdisciplinar.[13]
Ainda segundo Digiácomo:
Pela sistemática atual, portando, não basta ao magistrado invocar o princípio do melhor interesse da criança para, a seguir, tomar sua decisão com base em suas impressões pessoais e em conceitos genéricos relativos a uma determinada situação envolvendo crianças e adolescentes, mas sim deve aquele apurar - inclusive, como acima mencionado, junto aos próprios destinatários da medida - qual é a solução que, de fato, se mostra a mais adequada para o caso concreto individualmente analisado, a partir de elementos idôneos trazidos aos autos, dentre os quais, sem dúvida, não pode faltar uma avaliação técnica interdisciplinar criteriosa - e responsável, traduzida em um laudo pericial que não economize palavras para justificar e apontar a melhor alternativa (ou alternativas) existente(s).
Assim sendo, imprescindível se faz a adequada estruturação do Poder Judiciário, no sentido da contratação de equipes técnicas interprofissionais para atuar junto às Varas da Infância e da Juventude e em outros Juízos em que tramitam causas relativas a direitos e interesses de crianças e adolescentes, cuja intervenção é fundamental para tomada de decisões responsáveis e corretas, tanto sob o ponto de vista técnico-jurídico, quanto sob a ótica das demais ciências que, com seus conhecimentos específicos, deverão contribuir na busca de soluções que, concretamente, sejam as melhores e mais adequadas para cada caso individualmente considerado.[14]
Destarte, compete ao Judiciário exercer o seu papel na proteção da infância e da juventude não apenas com uma postura passiva, de quem apenas aguarda provocação dos lesados para só então agir. Ao contrário dessa posição inerte, o magistrado dos dias atuais deve agir também preventivamente, ou seja, por meio da articulação com os demais atores da rede de proteção (CREAS, CRAS, Ministério Público, Diretores de Escolas, CMDCA, etc.), de modo que, exercendo sua autoridade e respeito dentro das comunidades locais, possa influenciar positivamente na busca do melhor interesse da infância e juventude. Agindo assim, o Judiciário não somente estará cumprindo sua função de agente político, como também prevenindo a indesejável, porém irrenunciável intervenção na execução das políticas públicas.
Além do mais, o Judiciário também deve assumir uma postura mais compromissada com a concretização do melhor interesse da criança e do adolescente, nomeadamente por meio do aparelhamento das estruturas judiciais. Isto porque, conforme defendido alhures, para que o magistrado possa melhor decidir acerca dos casos que lhes são submetidos, mister que o mesmo tenha o suporte de uma equipe interdisciplinar capacitada a lhe indicar a melhor das alternativas existentes para solução desse ou daquele caso. Em suma, como afirma Digiácomo, não é o conhecimento legalista que indica o melhor interesse da criança, mas sim o conhecimento psicossocial das pessoas envolvidas. E, neste particular, atingir o melhor interesse da criança requer muito mais de outras áreas do conhecimento que do Direito posto.