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Análise da conciliação pré-processual e processual do tratamento do superendividamento (art. 104-A)

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10/12/2021 às 14:00
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A vantagem da utilização dos núcleos especializados no tratamento ao superendividamento é a possibilidade de conciliar em uma fase pré-processual, contando com equipe multidisciplinar que ajudará o consumidor na elaboração do plano de pagamento dos credores.

O art. 104-A trata da conciliação para tratar o superendividamento no judiciário. Estando o consumidor, pessoa natural, superendividado (passivo maior que ativo), não tendo como pagar suas dívidas sem garantir o mínimo existencial, poderá solicitar, judicialmente, a realização de audiência conciliatória com a presença de todos os credores oriundos de dívidas de consumo.

Muito embora o caput do art. 104-A preveja que o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas a requerimento do consumidor, deve-se entender como poder dever, devendo somente ser analisado se o consumidor e as dívidas suscitadas cumprem os requisitos para participarem de um plano de pagamento. Assim, caso uma pessoa jurídica que alegue ser consumidora requeira a audiência de conciliação nos termos do art. 104-A, o juiz irá indeferir o pedido, uma vez que pessoas jurídicas, ainda que consumidoras, não poderão participar do processo de repactuação e revisão de dívidas do CDC.

Primeiramente, é preciso delimitar, segundo o CDC, qual consumidor e quais dívidas poderão participar do tratamento do superendividamento.

Analisando o disposto no art. 54-A, conjuntamente com o art. 104-A, não poderão participar do processo de repactuação e revisão de dívidas (art. 104-A ao art. 104-C):

a) se o consumidor não for pessoa natural (art. 104-A, caput);

b) se o consumidor estiver de má-fé (art. 54-A, §1º);

c) se o consumidor agiu de maneira fraudulenta (art. 54-A, §3º);

d) se o consumidor contraiu dívidas com a intenção de não pagar (art. 54-A, §3º e art. 104-A, §1º);

e) se a dívida é proveniente de produtos e serviços de luxo de alto valor e o consumidor tinha condições, ao menos, de avaliar o risco da insolvência (art. 54-A, §3º);

f) se as dívidas não são de consumo (alimentícias, tributárias, previdenciárias, etc) (art. 54-A, §2º);

g) se as dívidas são provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural (art. 104-A, §1º).[2][3]

Fora estas hipóteses, o consumidor estará autorizado a requerer a realização da audiência, visando inicialmente pactuar um acordo com os credores de maneira amigável.

Inspirado no modelo francês de tratamento do superendividamento (que prevê a conciliação das dívidas por uma comissão administrativa, portanto pré-processual), o modelo previsto e idealizado pela comissão de juristas, através do art. 104-A, deverá seguir caminho semelhante (ou seja, também pré-processual).

Adaptando ao Brasil e a sua realidade, a conciliação pré-processual deverá ser feita no judiciário (art. 104-A) ou através dos órgãos públicos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 104-C), que terão competência concorrente para a realização das audiências.

As audiências pré-processuais no judiciário foram utilizadas por vários estados, antes da Lei 14.181/2021, para o tratamento do consumidor superendividado. Elas ocorriam, em sua grande maioria, nos CEJUSCs (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania), com o propósito de contribuir com a desjudicialização.[4]

A proposta idealizada pela comissão de juristas, externada através do art. 104-A, era a utilização dos núcleos (inserido como instrumento da Política Nacional das Relações de Consumo - art. 5º, inciso VII) especializados no tratamento do superendividamento. Para tanto, estes núcleos devem contar com equipe especializada multidisciplinar (economistas, psicólogos, assistentes sociais, etc) visando dar não somente o suporte jurídico (com a ajuda na elaboração do plano), mas também social e psicológico.

Neste sentido, esclarece Clarissa Costa de Lima que os núcleos terão competência para: I -atender e entrevistar o superendividado para o preenchimento de formulário-padrão  com os seus dados socioeconômicos, identificação dos credores, valor das dívidas, entre outros; II oficiar aos credores, quando necessário, requisitando cópia do contrato, III promover, em parceria com instituições de ensino públicas ou privadas ou o SNDC Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, oficinas interdisciplinares de educação financeira e preparação de proposta de plano de repactuação, além de prestar assistência social e acompanhamento psicológico dos consumidores superendividados, na medida das possibilidades; IV realizar a audiência/sessão de conciliação conjunta e global com todos os credores para a elaboração de plano de pagamento.[5]

A vantagem da utilização dos núcleos especializados no tratamento ao superendividamento é exatamente a possibilidade de conciliar em uma fase pré-processual, contando com equipe multidisciplinar que ajudará o consumidor na elaboração do plano de pagamento. Nesta fase, através da utilização dos núcleos, o consumidor não precisa estar representado por advogado (justamente por ser pré-processual), facilitando o acesso e incentivando a busca pelo tratamento, através de um plano que lhe permita o pagamento de suas dívidas.

Assim, com a criação dos núcleos especializados (agora instrumento da Política Nacional das Relações de Consumo pelo inciso VII do art. 5º), o consumidor terá mais um caminho para solucionar e equacionar sua condição de superendividado, promovendo o resgate de sua dignidade.

Neste sentido, a partir do art. 104-A, e criado os núcleos especializados de tratamento ao superendividado, o consumidor poderá se valer de dois caminhos: requerer o processo de repactuação através dos núcleos em uma fase pré-processual (o que é aconselhável em razão do suporte e assistência prestada ao consumidor), ou ajuizar uma ação de repactuação de dívidas requerendo uma audiência conciliatória (fase processual), caso em que precisará  estar representado por advogado ou pela defensoria pública.[6]

Esta audiência (seja na fase pré-processual ou processual), em que serão notificados e/ou citados todos os credores, será presidida por juiz ou por conciliador credenciado no juízo, devendo o consumidor apresentar proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos, com previsão de quantia suficiente para garantia de uma vida digna (mínimo existencial), devendo também manter, na proposta a ser apresentada, as garantias e as formas de pagamento que foram pactuadas nas dívidas originais.

Assim, será fundamental a indicação pelo consumidor superendividado de todos os credores, devendo eles participarem da audiência conciliatória. Neste sentido não poderá o consumidor escolher qual credor participará do processo de repactuação e revisão e qual ficará excluído. Isso seria beneficiar um credor em detrimento de outro(s), pois o credor não incluído continuaria podendo cobrar os valores do contrato original enquanto outros participariam da repactuação. Para que o tratamento seja eficaz e justo, será necessário a participação de todos os credores, cujas dívidas acarretam o superendividamento.

Embora o objetivo primordial da audiência conciliatória é tratar o consumidor superendividado através de um plano de pagamento, promovendo o resgate de sua dignidade, ela também serve para promover um maior equilíbrio no pagamento aos credores, principalmente protegendo o crédito dos fornecedores com menor capacidade de cobrança.

Caso o consumidor tenha vários credores, os que possuem maior capacidade econômica, dispondo de equipe de advogados e empresas especializadas em cobrança e busca de bens, terão mais chances de recuperar o crédito do que outros credores. Com o processo de repactuação de dívidas, será analisada cada dívida, devendo proporcionar aos credores o maior equilíbrio nestes pagamentos, o que não significa, necessariamente, pagar a todos de maneira proporcional (ex: definir que pelas condições econômicas do consumidor será possível ele pagar 50% da dívida de cada credor).

Afinal de contas, uma dívida de cartão de crédito em que o consumidor ficou inadimplente por algum tempo contém, só de juros moratórios, uma quantia que ultrapassa (e muito!) o valor do principal. Já uma dívida proveniente de uma compra parcelada no varejo terá um aumento promovido pelos juros moratórios (2% pelo art. 52, §1º do CDC) muito menor. Assim, na audiência deverá ser considerado o valor principal da dívida (excluído os juros, taxas e demais encargos) como patamar inicial para definição do quanto a pagar a cada credor, promovendo uma forma de pagamento mais justa e equilibrada.

Conforme o caput do art. 104-A indica, o consumidor deverá apresentar o plano de pagamento na audiência de maneira a facilitar a conciliação, pois já se terá um patamar para as negociações. E ninguém melhor do que o próprio consumidor, (assistido por advogado ou defensor público na fase processual ou assistido pela equipe multidisciplinar no núcleo), para dizer o quanto e a melhor forma de pagar os credores, garantindo ainda uma quantia para o mínimo existencial, de acordo com a sua realidade.

Para a reserva e delimitação da quantia do mínimo existencial, é importante o consumidor demonstrar na conciliação o quanto (quantia) será necessário para a manutenção digna da sua vida e de seus familiares (se houver dependência).[7] Como a proposta partirá do consumidor (com os valores, prazos e formas de pagamento), ele terá que apontar uma quantia que não será utilizada para o pagamento dos credores (quantia destinada para o mínimo existencial). Para tanto, ele poderá anexar os gastos com educação, alimentação, saúde, moradia, entre outros, suficientes para a manutenção de uma vida com dignidade.[8][9]

Assim, deverá ser proposto pelo consumidor, através de um plano de pagamento, o quanto ele poderá pagar (qual o valor será disponibilizado para pagamento de cada credor), a partir de quando ele começará a pagar (se haverá a solicitação de algum prazo de carência para começar a pagar as prestações) e a periodicidade do pagamento (se os pagamentos serão mensais, bimestrais, semestrais, etc).[10]

O prazo máximo do plano proposto pelo consumidor deverá ser de até 5 anos (se tiver condição de propor um plano de pagamento viável, com a manutenção do mínimo existencial, o ideal é que seja até em um prazo menor). Segundo esclarece Clarissa Costa de Lima, os modelos de falência nos países, em geral, adotam planos com duração que variam de três a dez anos, e que o Relatório do Banco Mundial aponta que, quanto maior for a duração do plano, maior são as chances de fracasso. A experiência demonstra que planos de pagamento com duração maior que três anos tendem a falhar ou a apresentar altos índices de descumprimento.[11]

Clarissa Costa de Lima também aponta outras desvantagens dos planos com duração mais longa. Segundo a autora, o prazo maior impõe grande sacrifício ao consumidor/devedor, pois terá o orçamento comprometido com o pagamento dos credores por muito tempo, podendo gerar um desestímulo, já que a impossibilidade de usufruir de sua renda pode gerar a impressão de que está trabalhando somente para pagar credores. Toda esta situação por muito tempo pode reduzir o incentivo do consumidor de se manter produtivo, podendo ir para o mercado informal ou depender de benefícios sociais do governo.

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Também, segundo a autora, quanto mais longo o plano, mais suscetível de alterar a realidade econômica do devedor, podendo comprometer os pagamentos. Com o decurso do tempo, em função de algum imprevisto (como a perda de emprego ou morte na família), pode-se alterar a capacidade de pagamento do devedor.[12] Ou seja, o que era viável para o consumidor pagar hoje poderá ficar comprometido no futuro em razão de alguma mudança (e quanto maior o prazo, mais chances de alterações ocorrerem...).

Diante deste contexto, entendemos que o prazo máximo deverá ser realmente de 5 anos, mesmo que as partes (consumidor e credores) concordem com um prazo de pagamento maior.

Afinal de contas, em se tratando de conciliação, poderíamos supor que as partes pudessem negociar outros termos do que está sugerido na lei, desde que houvesse concordância mútua. Porém, temos que considerar que o consumidor superendividado apresenta uma vulnerabilidade agravada, em razão de sua exclusão social. Na grande maioria dos casos (senão em todos), está com o nome negativado, sofrendo pressões constantes dos credores para efetuar os pagamentos, tendo dificuldades de ter crédito no mercado e até mesmo de encontrar emprego (uma vez que alguns empregadores levam em consideração as inclusões nos bancos de dados para aferição da credibilidade da pessoa a ser contratada). Com isso, no afã de voltar a ter o nome limpo e podendo até mesmo voltar a ter crédito novamente, o consumidor poderia aceitar um prazo longo (de 10 anos por exemplo) proposto por algum fornecedor, não manifestando sua vontade de maneira totalmente consciente e racional, mas sim pressionado para aceitar o acordo.

Desta forma, como a finalidade da norma é promover a reinserção social, dando dignidade ao consumidor (que está excluído socialmente), é muito importante que o plano seja exequível, livrando o consumidor das dívidas em período razoável (que a lei entendeu, conforme a experiência em outros países, ser de 5 anos). Sendo assim, caberá ao juiz ou o conciliador credenciado orientar às partes, na audiência, sobre o prazo máximo do plano de pagamento, caso queiram ajustar um prazo maior, sob pena do plano não ser homologado posteriormente em sentença judicial. [13]

No plano proposto pelo consumidor, ele não poderá alterar as garantias e as formas de pagamento que foram pactuadas nas dívidas originais. Caso assim o faça, o fornecedor poderá recusar, legitimamente, o plano ofertado. Assim, se há uma garantia fidejussória (fiança ou aval) prevista na dívida original, o consumidor não poderá excluir esta garantia na repactuação da dívida. A repactuação poderá alterar os valores, prazos de pagamento, etc, mas não a garantia que foi concedida anteriormente.

As formas de pagamento também deverão ser preservadas no plano a ser celebrado. Se a forma de pagamento é através do desconto no salário do consumidor (consignado), a proposta não pode propor outra forma, como por exemplo, o pagamento através de boletos. Porém, em se tratando de direito disponível, não há óbice para que o fornecedor aceite a alteração na garantia e na forma de pagamento na conciliação.

Visando dar efetividade à fase conciliatória do tratamento ao superendividamento, prescreve o §2º que o não comparecimento injustificado do credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação, acarretará 4 sanções. São elas: a) suspensão da exigibilidade da dívida; b) a interrupção dos encargos da mora; c) ficará sujeito ao plano compulsório de pagamento da dívida (se o montante devido for certo e conhecido pelo consumidor); d) o recebimento do crédito somente ocorrerá após o pagamento dos credores que participaram da audiência. [14]

No tocante à sanção de sujeição compulsória ao plano de pagamento, embora a redação tenha ficado dúbia, a ideia aqui foi possibilitar a inclusão do credor ausente no plano, de acordo com a proposta feita pelo consumidor, desde que o montante da dívida seja certo e conhecido.[15][16] Assim, ainda que não haja acordo algum com os credores presentes, o fato de haver algum credor ausente e o montante da dívida ser certo e conhecido, o juiz poderá homologar a proposta do consumidor no tocante à dívida deste credor ausente. Havendo credores presentes que fizeram acordo, o pagamento ao credor ausente, que estará no plano de maneira compulsória, será feito somente após a liquidação do pagamento aos credores que fizerem acordo.

Além destas 4 sanções estabelecidas no CDC, o não comparecimento de maneira justificada à audiência é considerado ato atentatório à dignidade da justiça. (§8º do art. 334 do CPC).

Sendo assim, a ideia é forçar o credor a participar da audiência no intuito de conciliar com o consumidor superendividado, resolvendo a situação. Infelizmente a prática mostrou que, antes da lei, as várias audiências que eram promovidas pela Defensoria Pública, Procons e Ministérios Públicos de alguns estados não surtiam muito efeito justamente porque os credores ignoravam as notificações para comparecimento às audiências extrajudiciais. Com a previsão e aplicação das sanções em casos de ausência injustificada, espera-se que os credores passem, a partir de agora, a participarem das audiências de conciliação.

E esta participação não poderá ser somente para não sofrer as sanções (participação proforma). Isso porque, caso o credor compareça e não negocie o plano apresentado pelo consumidor (caso não haja concordância com o plano apresentado e nem apresentação de contraproposta viável), não haverá conciliação e, havendo requerimento do consumidor pela continuidade do tratamento, o plano será definido compulsoriamente pelo magistrado (art. 104-B).

Havendo conciliação (é o que se almeja!), o juiz homologará o acordo através de sentença judicial, que terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada (§3º).

A sentença descreverá e delimitará o plano de pagamento com as medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida (§4º, inciso I), como a determinação de um prazo de carência para que o consumidor comece a pagar as prestações, se o caso recomendar; referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso (§4º, inciso II)[17]; data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes (§4º, inciso III), devendo ser o mais rápido possível considerando que a negativação atrapalha até mesmo o consumidor a conseguir emprego; condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento (§4º, inciso IV), como, por exemplo, dispor como condição que o consumidor não adquira outro financiamento ou faça empréstimo consignado, mesmo tendo margem disponível segundo a legislação, enquanto não pagar todos os credores. Assim, mesmo sendo uma fase conciliatória, o CDC autoriza o juiz a condicionar o plano acordado a algumas situações que deverão ser observadas, considerando o histórico do consumidor e as causas que o levaram ao superendividamento.

Por fim, o §5º dispõe que o requerimento do consumidor para a instauração do processo de repactuação de dívidas, através primeiramente da audiência de conciliação, não importará em declaração de insolvência civil. Isso é importante, porque a declaração de insolvência em nada contribui para o tratamento do superendividamento, não investigando as causas que levaram a este estado. A preocupação central, na insolvência, é a promoção de uma execução única sobre todos os bens disponíveis do devedor insolvente, a benefício conjunto de todos os seus credores, como forma de evitar o favorecimento de um em detrimento de outros. Na insolvência, as dívidas vencem automaticamente, perdendo o devedor o direito de administrar seus bens e deles dispor, os quais são arrecadados para a liquidação e para o pagamento dos credores. Permanecendo o débito, o devedor somente readquire sua capacidade civil depois de decorrido o prazo de cinco anos.

O consumidor somente poderá se valer de novo processo de repactuação de dívidas, nos moldes do art. 104-A, após o prazo de 2 anos contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento. Isso não impede que o consumidor requeira, mesmo durante o plano de pagamento, uma nova repactuação das dívidas homologadas no acordo. Ocorrendo alguma situação que altere a sua condição econômica, principalmente decorrente de algum acidente da vida (como morte, doença, desemprego), afetando a manutenção do mínimo existencial, poderá requerer novo reajuste dos pagamentos previamente acordados. Mas, para tanto, será necessário demonstração de que realmente a sua condição econômica foi afetada a ponto de não conseguir mais honrar com os pagamentos pactuados.

O que se quer evitar é que o consumidor possa se utilizar permanentemente do processo de repactuação, ainda que sua situação econômica permaneça inalterada. Ou seja, contraia dívidas sabendo que futuramente, caso fique em uma situação apertada, conte com o processo de repactuação. Assim, a lei estabeleceu um prazo de 2 anos, após o pagamento do plano homologado, como um limite para novo pedido de repactuação.

O que se almeja é que o consumidor, através de educação financeira e mudanças de novos hábitos e padrões de consumo, se necessário, consiga não mais precisar da ajuda da lei para viver de maneira digna. Da mesma forma que poderá haver novo pedido de repactuação durante o pagamento do plano, em situações excepcionais e devidamente demonstrado, entendemos que há a possibilidade do consumidor se valer de nova repactuação, antes mesmo do período de 2 anos após a liquidação do plano anterior, caso ocorra algum acidente da vida que modifique abruptamente a situação financeira do consumidor e de sua família, inserindo-o novamente em uma situação de superendividamento.

Nestes casos, será fundamental a análise da boa-fé do consumidor, de modo a verificar se a nova situação que alterou a sua condição econômica se deu por fatos alheios a sua vontade.

Por fim, situação que pode gerar controvérsia é em relação à competência para processar a ação de revisão e repactuação de dívidas. A primeira delas é se os juizados especiais poderiam ser competentes para tratar o superendividado nos moldes do art. 104-A e 104-B.

A princípio, poder-se-ia sustentar que os juizados seriam competentes por ser uma justiça que facilita o acesso ao consumidor e que possui um trâmite mais célere.[18] Embora a Lei do Superendividamento não tenha disposto sobre a competência do tratamento, a ideia da comissão de juristas é que a audiência pré-processual fosse feita nos núcleos criados para o tratamento do superendividamento (CEJUSCs), justamente porque nestes núcleos haverá a possibilidade de contar com toda uma expertise própria, com equipe multidisciplinar (psicólogos, assistentes sociais, economistas, etc.) para auxiliar o consumidor superendividado na elaboração do plano e também auxiliá-lo (com educação e apoio psicológico e social) para que não venha mais a entrar nesta situação de superendividamento. Desta forma, permitir que os juizados realizem estas audiências (que na verdade serão audiências judiciais processuais através de ações revisionais uma vez que os juizados não contêm núcleos específicos) será muito temerário. É sabido que os juizados estão abarrotados de processos e se destina a tratar de temas que exigem menos complexidade.

O tratamento do consumidor superendividado é um processo complexo, exigindo, conforme salientado, para uma solução eficiente, da presença de uma equipe multidisciplinar e de uma análise criteriosa (e por isso muitas vezes mais complexa) das dívidas do consumidor e dos gastos necessários para aferição do mínimo existencial.

O ideal realmente é que as audiências pré-processuais se realizem nos núcleos a serem estruturados, muito provavelmente na justiça comum. E as ações revisionais (caso o consumidor opte pela ação judicial) sejam também propostas na justiça comum. A justiça comum terá maiores condições de contar com apoio técnico especializado para auxiliar o consumidor. Nesse sentido, a fim de evitar maiores discussões, o ideal é o CNJ ou os tribunais locais regulamentarem a competência para o tratamento do superendividamento.

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Sobre o autor
Leonardo Garcia

Procurador do Estado do Espírito Santo; foi assessor do Relator no Senado Federal envolvendo a Lei do Superendividamento; mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP, Diretor do Brasilcon; Membro do Condecon/ES; Professor de Direito do Consumidor e autor de vários livros jurídicos, entre eles o Código de Defesa do Consumidor Comentado, atualmente na 16ªed., Ed. Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Leonardo. Análise da conciliação pré-processual e processual do tratamento do superendividamento (art. 104-A). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6736, 10 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95366. Acesso em: 26 abr. 2024.

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