Capa da publicação A barbaridade nossa de cada dia: cancelamento de monetização pelo TSE
Capa: Reprodução
Artigo Destaque dos editores

A barbaridade nossa de cada dia

Exibindo página 2 de 2
20/01/2022 às 22:50
Leia nesta página:

3 OS CRIMES CONTRA A HONRA

Parece que além de uma inversão total quanto à posição que deveriam tomar com relação à situação por que passa a comunicadora Bárbara, bem como quanto à sua condição de presumidamente inocente, a qual se agiganta com a conferência do selo pela rede social Twitter, os detratores da comunicadora em destaque se olvidaram daquilo que tanto parecem gostar, ou seja, dos limites que realmente existem para a liberdade de expressão, seja em geral, seja nas redes sociais, devendo-se ter em conta bens jurídicos como a honra das pessoas afetadas pelas mais diversas manifestações. Não se admite em uma democracia a censura prévia, como tem ocorrido com várias pessoas, mas todos são responsáveis por aquilo que veiculam e, se desbordam voluntariamente e inequivocamente os limites de uma discussão, partindo para ofensas pessoais com dolo de difamar, injuriar ou caluniar, incidem em tipos penais previstos dentre os chamados Crimes contra a Honra, bem como em ilícito civil indenizável.

Utilizando o exemplo já narrado neste trabalho do jornalista e seus impropérios, é possível tipificar, em tese, a conduta de acordo com o Código Penal Brasileiro.

Um primeiro ponto importante é ter presente a distinção entre os crimes de calúnia, difamação e injúria.

O Código Penal prevê três modalidades de crimes contra a honra, a saber: calúnia (art. 138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140). Uma das questões mais importantes é saber diferenciar cada um desses crimes. Assim sendo, vejamos os conceitos: a) Calúnia é a falsa imputação de fato criminoso a outrem; b) Difamação é a imputação a alguém de fato ofensivo à sua reputação; c)Injúria é a ofensa à dignidade ou decoro de outrem.

Verifica-se que nos dois primeiros (calúnia e difamação) atribui-se sempre um fato ofensivo da honra a uma pessoa. A diferença é que na calúnia o fato é criminoso e na difamação ele é apenas desonroso, imoral etc. Por seu turno, a injúria constitui não a atribuição de um fato (criminoso ou não), mas o mero xingamento, rotulação, palavreado ofensivo. [12]

De acordo com o exposto a respeito das ofensas proferidas pelo jornalista envolvido, verifica-se que ele atribui a qualidade negativa de mentirosa à comunicadora, alega que o filho menor desta terá vergonha dela no futuro, a chama de negacionista (seja lá o que isso queira dizer), diz que ela deveria ser encarcerada e/ou ser submetida a monitoramento com tornozeleira eletrônica. Todas essas afirmações são obviamente ofensivas diretamente à honra da vítima e não há como afirmar que se fazem sem inequívoca intenção de injuriar. O crime de injúria (artigo 140, CP), está, portanto, em tese, perfeitamente caracterizado e é perpetrado de forma continuada (inteligência do artigo 140, CP c/c artigo 71, CP). A continuidade delitiva se configura porque o agente reitera, mediante várias ações no Twitter, as diversas ofensas, perpetrando crimes da mesma espécie e em condições de tempo, lugar e modo de execução semelhantes.

Observe-se que embora se possa inferir que ao atribuir a condição de mendaz e criminosa à vítima poderia haver também crimes de difamação e calúnia, isso não se sustenta. Explica-se: como já exposto acima, para a configuração de ambos os delitos em comento seria necessário que o ofensor descrevesse condutas ou situações fáticas (narrativas com início, meio e fim), as quais indicassem a ofendida proferindo supostas mentiras ou praticando crimes que não praticou. Ocorre que, mesmo quando indagado por Bárbara a respeito de quais seriam as mentiras ou crimes por ela perpetrados, o ofensor simplesmente se cala. Ou seja, fica na mera ofensa escrita leviana sem qualquer substrato narrativo, tal como quando se xinga alguém com um palavrão, o que é exemplo típico de injúria e não de difamação ou calúnia. Fazendo uma ponte com o item anterior, é interessante notar que nem o ofensor nem os órgãos públicos se dispõem ou têm capacidade de efetivamente descrever condutas reais, mas apenas de proferir imputações genéricas.

Não é possível pugnar pela excludente de punibilidade prevista no artigo 142, II, CP em prol do jornalista enfocado, tendo em vista a ressalva legal de que não se aplica a benesse quando inequívoca a intenção de injuriar. Certamente o ofensor poderia discordar das ideias e afirmações de Bárbara e as criticar, até mesmo de forma incisiva. No entanto, parte para ofensas pessoais totalmente desnecessárias e que em nada contribuem para o debate de ideias. Ao contrário, quando instado a esclarecer quais seriam as tais ações mentirosas e/ou criminosas, não diz absolutamente nada, não desmente a comunicadora em nenhum ponto específico, não aponta qual infração à lei teria ocorrido para que tanto ela como o público possam avaliar a situação. Não, apenas permanece na conduta social e intelectualmente inútil de assacar ofensas genéricas ad hominem. Desse modo, não há como negar que o intento não é de eventual crítica séria, mas tão somente de ofender a honra de terceiro.

Importante salientar que, tendo em vista que o autor teria cometido os crimes de injúria por meio da internet na rede social Twitter, haverá, de acordo com o artigo 141, § 2º., CP, um aumento considerável da pena prevista da ordem do triplo (alteração feita pela Lei 13.964/19). Dessa forma, a pena prevista in abstracto, que seria normalmente de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, passará a ser de detenção, de 3 (três) meses a 1(um) ano e 6 (meses). Há a possibilidade de aplicação de incremento penal em cascata, devido ao crime continuado, conforme acima exposto, variando o aumento entre um sexto e dois terços. Entretanto, o mais comum nestes casos é que se opte pela aplicação do maior aumento (triplo), afastando o menor, isso nos termos do artigo 68, Parágrafo Único, CP. Obviamente é inviável cumular o aumento do triplo, previsto no artigo 141, § 2º., CP com o aumento de um terço, previsto no artigo 141, III, CP (crime praticado na presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação da ofensa). O aumento do § 2º. é uma clara especialização da fórmula geral contida no inciso III, de modo que seu uso conjunto configuraria bis in idem, ou seja, o infrator seria punido duas vezes pelo mesmo motivo, o que não é aceitável de acordo com os princípios gerais do Direito Penal. Dessa forma, parece que o mais natural será que o caso seja abrangido pelos Juizados Especiais Criminais, uma vez que, mesmo com as exasperações legais, a pena in abstracto tem seu máximo menor que dois anos (inteligência do artigo 61 da Lei 9.099/95).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Não há dúvida de que, além da responsabilidade criminal, haverá o dever de indenizar no cível pela prática de ato ilícito, nos estritos termos dos artigos 186, 187 e 927, do Código Civil Brasileiro.

Fato é que a avalanche de manifestações ofensivas à comunicadora Bárbara, certamente situa a todos os envolvidos naquilo que Pablo Malo, fazendo referência ao trabalho de Laird Wilcox, descreve como difamação ritual (sendo a palavra difamação aqui usada em seu caráter amplo ou lato de ofensa à honra e não em seu sentido estrito técnico jurídico). Essa difamação ritual se constitui da destruição ou do intento de destruição da reputação, status ou caráter de uma pessoa ou grupo por meio de linguagem ou publicações injustas. O elemento central da difamação ritual é a retaliação por atitudes, opiniões ou crenças, reais ou imaginárias da vítima, com a intenção de silenciar ou neutralizar sua influência, a fim de que sirva de exemplo aos demais, evitando que outros mostrem uma independência ou insensibilidade similar e não observem os tabus ou ideias hegemônicas supostamente devidas. A difamação ritual não se encaixa num debate aberto ou no intento de argumentar, persuadir ou fazer um contraponto civilizado de ideias. Ela é usada como um meio de castigo e opressão. Mesmo quando tem elementos cognitivos, seu ânimo é primariamente emocional. A difamação ritual é usada para ferir, intimidar, destruir e perseguir e para evitar o diálogo, o debate e a discussão de que depende uma sociedade livre. [13]


4 CONCLUSÃO

Percebe-se que o ocorrido com a comunicadora Bárbara Zambaldi Destefani é demonstrativo de um fenômeno de inversão de valores e incapacidade de empatia, ocasionado por uma polarização ideológica cega. Isso leva os indivíduos a atuarem em prejuízo de suas próprias liberdades e direitos, movidos por uma reação emocional de satisfação em observar a opressão sofrida por seus semelhantes, ao ponto de olvidar princípios básicos como a Presunção de Inocência. Isso conduz ao descontrole e ao cometimento de abusos no exercício de direitos que seriam legítimos, mas acabam, devido ao uso abusivo, descambando para os ilícitos penal e civil.

Dessa forma é que é possível que a simples conferência de um selo azul do Twitter a uma comunicadora de comprovada capacidade agregadora e que reflete os sentimentos e opiniões de grande parcela da população, se transforme numa polêmica homérica e no linchamento virtual da influenciadora digital.

Um mero pontinho azul na tela. Isso faz lembrar um livro em que Carl Sagan descreve a Terra como um Pálido Ponto Azul, explorando uma percepção materialista apequenada daquilo que somos, bem como do lugar que ocupamos no universo. [14] Embora discordando da visão materialista e diminuidora do humano apregoada por Sagan na sua obra, a expressão pálido ponto azul pode ser bem empregada para demonstrar como uma bagatela pode ser motivo para reações exacerbadas de pessoas movidas pelo desejo de calar toda e qualquer dissidência do discurso hegemônico ao qual ideologicamente aderem. A única coisa necessária é um pretexto que possa ser utilizado, mesmo que de forma distorcida, pervertida ou até mesmo invertida.


5 REFERÊNCIAS

BÁRBARA. Significado do Nome Bárbara. Dicionário de Nomes Próprios. Disponível em https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/barbara/#:~:text=B%C3%A1rbara%3A%20Significa%20%22estrangeira%22%2C,que%20significa%20%22l%C3%ADngua%20incompreens%C3%ADvel%22.&text=O%20nome%20se%20tornou%20bastante,filha%20de%20um%20oficial%20romano , acesso em 19.01.2022.

BÁRBARO. Significado de bárbaro. Dicionário on line de Português. Disponível em https://www.dicio.com.br/barbaro/ , acesso em 19.01.2022.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Inquérito Judicial das Fake News: as obviedades que precisam ser explicadas. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/854579298/inquerito-judicial-das-fake-news-as-obviedades-que-precisam-ser-explicadas , acesso em 19.01.2022.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Valorizando as Garantias ou a Difícil Arte de Enxergar o Outro como Igual. Disponível em https://jus.com.br/artigos/9636/valorizando-as-garantias-ou-a-dificil-arte-de-enxergar-o-outro-como-igual , acesso em 19.01.2022.

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.

MALO, Pablo. La Difamación Ritual. Evolución y Neurociencias. Disponível em https://evolucionyneurociencias.blogspot.com/2017/08/la-difamacion-ritual.html , acesso em 20.01.2022.

MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010.

MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

SAGAN, Carl. Pálido Ponto Azul. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012.

TUMA JÚNIOR, Romeu, TOGNOLLI, Claudio. Assassinato de Reputações Um Crime de Estado. Rio de Janeiro: TopBooks, 2013.

WILCOX, Laird. The Practice of Ritual Defamation How Values, Opinions, and Beliefs are Controlled in Democratic Societies. Disponível em https://www.thesocialcontract.com/pdf/twenty-three/tsc_20_3_wilcox_defamation.pdf , acesso em 20.01.2022.


Notas

  1. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Valorizando as Garantias ou a Difícil Arte de Enxergar o Outro como Igual. Disponível em https://jus.com.br/artigos/9636/valorizando-as-garantias-ou-a-dificil-arte-de-enxergar-o-outro-como-igual , acesso em 19.01.2022.
  2. MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 592 595.
  3. Op. Cit., p. 595.
  4. CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 39.
  5. Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Inquérito Judicial das Fake News: as obviedades que precisam ser explicadas. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/854579298/inquerito-judicial-das-fake-news-as-obviedades-que-precisam-ser-explicadas , acesso em 19.01.2022.
  6. MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010, p. 427.
  7. MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996, p. 133 134.
  8. BÁRBARO. Significado de bárbaro. Dicionário on line de Português. Disponível em https://www.dicio.com.br/barbaro/ , acesso em 19.01.2022. [Popular] que é muito legal, interessante, filme bárbaro.
  9. BÁRBARA. Significado do Nome Bárbara. Dicionário de Nomes Próprios. Disponível em https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/barbara/#:~:text=B%C3%A1rbara%3A%20Significa%20%22estrangeira%22%2C,que%20significa%20%22l%C3%ADngua%20incompreens%C3%ADvel%22.&text=O%20nome%20se%20tornou%20bastante,filha%20de%20um%20oficial%20romano , acesso em 19.01.2022.
  10. SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 27 28.
  11. Op. Cit., p. 52.
  12. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 141.
  13. MALO, Pablo. La Difamación Ritual. Evolución y Neurociencias. Disponível em https://evolucionyneurociencias.blogspot.com/2017/08/la-difamacion-ritual.html , acesso em 20.01.2022. Para acesso também ao texto de Wilcox: WILCOX, Laird. The Practice of Ritual Defamation How Values, Opinions, and Beliefs are Controlled in Democratic Societies. Disponível em https://www.thesocialcontract.com/pdf/twenty-three/tsc_20_3_wilcox_defamation.pdf , acesso em 20.01.2022. Similarmente sobre o tema temos no Brasil: TUMA JÚNIOR, Romeu, TOGNOLLI, Claudio. Assassinato de Reputações Um Crime de Estado. Rio de Janeiro: TopBooks, 2013, passim.
  14. SAGAN, Carl. Pálido Ponto Azul. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, passim.
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A barbaridade nossa de cada dia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6777, 20 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96035. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos