Capa da publicação A barbaridade nossa de cada dia: cancelamento de monetização pelo TSE
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A barbaridade nossa de cada dia

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20/01/2022 às 22:50
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O TSE determinou o cancelamento da monetização do canal Te Atualizei do Youtube, sob a alegação de fake news.

1 OS FATOS

A comunicadora Bárbara Zambaldi Destefani, do Canal Te Atualizei do Youtube teve sua monetização cancelada por uma decisão proferida em processo administrativo do TSE, sem que fosse sequer notificada a respeito, bem como sob a alegação genérica de prática de fake news sem que se apontasse especificamente qual ou quais teriam sido as notícias ou alegações falsas por ela proferidas.

Já há alguns meses sofrendo esse prejuízo profissional que chega a atingir recursos alimentares da própria implicada e de sua família (ela tem um filho menor enfermo), sem conseguir nem mesmo saber qual a acusação que contra si paira no referido processo que, segundo consta, corre em sigilo, o que seria de se esperar por parte da comunidade de jornalistas e comunicadores em geral, não importando qual sua coloração político ideológica? Seria a reação de solidariedade com a colega oprimida. Mas, não foi nada disso que aconteceu.

Eis que a conta do Twitter de Bárbara recebe um selo azul de autenticação da plataforma, tendo em vista tratar-se de figura pública com muitos seguidores e alto alcance midiático. O selo azul indiretamente confere credibilidade àqueles que o possuem, pois que significa tratar-se de perfil autêntico, bem como de maior capacidade influenciadora. No entanto, na verdade, o que o selo azul do Twitter realmente significa é que aquele perfil visualizado é o original e não algum imitador, apenas isso.

O que deveria ser algo indiferente ou rotineiro na dinâmica das redes sociais, acabou se transformando em uma polêmica criada exatamente por outros jornalistas e comunicadores, os quais pleiteavam a retirada do selo conferido. Mas, nem todos ficaram somente em uma crítica meramente deslocada ou sem sentido. Houve quem partisse para o abuso com a inequívoca intenção de ofender a honra da comunicadora em questão. Um desses chegou a afirmar no Twitter que Bárbara não merecia o selo azul, mas sim uma tornozeleira eletrônica. Seguiu afirmando, sem apontar fatos, que a comunicadora só faria mentir e seria uma negacionista (seja lá o que isso signifique). Não bastasse isso, aludiu ao filho menor de Bárbara, afirmando que a criança no futuro iria se envergonhar da mãe, tendo em vista ser ela uma propagadora de mentiras na internet. No seguimento, naquilo que se poderia chamar de um discurso direto de ódio, insinuou que o futuro da comunicadora poderia também ser na cela, dando a entender que não somente uma tornozeleira usada em criminosos seria suficiente, mas haveria necessidade, em algum momento, da própria prisão de Bárbara. Além disso, afirmou que Bárbara deveria (seria um conselho seu) se candidatar a cargo que lhe conferisse imunidade, reiterando indiretamente a afirmação de que ela poderia ser presa. Não resta dúvida de que o jornalista em questão atribuiu claramente o epíteto de criminosa a Bárbara, já que somente usam tornozeleiras eletrônicas e ficam confinados em celas tais pessoas, salvo algumas exceções de inocentes e indivíduos que sofrem abusos de autoridade, aos quais com certeza não estava se referindo o profissional em suas mensagens no Twitter.

Bárbara limitou-se a responder às ofensas e insistir na indagação ao jornalista sobre quais seriam seus crimes, quais seriam suas mentiras, pois, afinal de contas, nem mesmo o TSE até o momento a notificou a respeito e ela não é acusada formalmente de absolutamente nada. Quanto a isso o jornalista fez ouvidos moucos.

São estes os lamentáveis fatos que se passaram.


2 A BÁRBARA INVERSÃO DE VALORES

Como já foi dito, o que se esperaria da classe dos jornalistas e comunicadores em geral com relação à situação de Bárbara, seria uma ação solidária para que pelo menos se justificassem ou fundamentassem as medidas contra ela tomadas. Isso não por uma questão de bondade, caridade ou mero espírito de corpo, mas por uma reação de autopreservação. Ora, hoje é a comunicadora em destaque que sofre restrições injustificadas e não fundamentadas de acordo com a lei. E amanhã? Quem será? Poderá ser o próprio jornalista acima enfocado ou quaisquer outros comunicadores de redes sociais ou de veículos de massa, artistas, escritores, acadêmicos, pessoas comuns etc.. Está em jogo a liberdade de pensamento, opinião, expressão e imprensa.

Entretanto, parece ser difícil para o indivíduo polarizado ideologicamente enxergar no outro um semelhante, exercitar um mínimo que seja de empatia.

Há bastante tempo escrevi um texto acerca da necessidade de conscientização quanto ao fato de que os direitos e garantias individuais não são direitos dos outros ou de um outro diverso de nós, são nossos próprios direitos. [1] No bojo daquele texto outrora produzido utilizei uma passagem literária que tomo a liberdade de novamente trazer à baila por seu alto poder ilustrativo e sua extrema pertinência na atual conjuntura. Trata-se de um conto inspirado de Bernardo de Carvalho, intitulado Estão Apenas Ensaiando.

O texto literário [2], narra a história de um ator que ensaia a fala de um lavrador que perdeu a esposa durante a guerra e que agora implora à Morte a restituição da mulher amada. Acontece que o ator diz o texto com certo distanciamento, o que leva o diretor da peça a frequentemente interromper os ensaios, exigindo muito mais vigor e desespero na interpretação. Não obstante, o ator insiste numa postura indiferente, que considera mais adequada, jamais cedendo aos apelos sensatos do diretor.

Durante o ensaio o ator aguarda a chegada de sua esposa no teatro, olhando constantemente no relógio, já que haviam combinado se encontrarem ali com horário marcado, estando ela atrasada.

É em meio a esse cenário que um personagem adentra o teatro e se dirige ao diretor, dizendo-lhe algo ao pé do ouvido. A simples troca de olhares e a reação da assistente do diretor, desatando em choro, dão ao ator a intuição de que algo terrível acontecera à sua mulher e que esta seria a razão do atraso. Nessa oportunidade o ator está no meio de sua fala e, por fim, encarna como nunca o lavrador desesperado. Nas palavras de Bernardo Carvalho:

(...) e por fim compreende aterrorizado e a um só tempo a sinistra coincidência da cena e do momento, o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, com buzinas, motores e sirenes; compreende por que o diretor não o interrompeu desta vez, porque por fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da morte; compreende que por um instante encarnou de fato o lavrador, que involuntária e inconscientemente, por uma trapaça do destino, tornou-se o próprio lavrador pelo que aquele vulto veio anunciar; compreende tudo num segundo, antes mesmo de saber dos detalhes do acidente que a matou atravessando a rua a duas quadras do teatro, diante dos olhos arregalados do diretor e da assistente (...). [3]

Quão lamentável não seria um dia ver toda uma classe de comunicadores brasileiros recebendo um choque de realidade tão intenso como este que a literatura nos proporciona vivenciar!

Este é um claro exemplo de que a cultura geral e, em específico, a literatura, com sua carga sensibilizante, deve integrar a formação do jurista e do homem. Há incontáveis lições a serem aprendidas pelo jurista e por todos (incluindo obviamente jornalistas e comunicadores) com a arte, a literatura, a filosofia..., as quais jamais serão encontradas nas letras frias das leis ou nos limitadíssimos comentários doutrinários dos manuais didáticos.

Na realidade, a reflexão mais urgente e imprescindível para evitar reações irracionais a formularem pretensas justificativas para legislações de terror e autoritarismo ou mesmo para atos à margem da lei e da Constituição, é aquela de recordar e repisar constantemente que o outro é um semelhante, portador dos mesmos direitos e garantias que sua condição humana comum impõe e que, quando pensamos retirar-lhe esses direitos é de nós mesmos, nossos familiares, amigos e futuras gerações que retiramos. Desprezar ou destruir os direitos e garantias erigidos ao longo de anos é ato tão insano quanto um suicídio. É matar a própria liberdade.

A verdadeira emergência em tempos de crise é encarnar sem demora o humano que há nos outros, ou melhor, reconhecer e encarnar irresignavelmente nossa humanidade. Isso sob pena de algum dia experimentar essa identificação de forma abrupta como aconteceu ao ator no conto de Bernardo Carvalho.

Afinal, se os homens não conseguem referir-se a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles, então o homem se torna incompreensível para o próprio homem. [4] É somente neste estado de confusão mental e desespero diante daquilo que se apresenta como um incompreensível absurdo que se pode conceber a reação tresloucada descrita neste texto. As pessoas que assim agem por se acharem nesse estado de deterioração moral e intelectual são quase dignas de piedade.

Mas, não é somente a dessensibilização empática que está a perverter os valores a serem levados em consideração no contexto.

Tendo em vista a condição em que se encontra Bárbara, é incrível que até mesmo juristas não venham manifestar-se de forma contundente a respeito da situação que se desenrolou. Não é admissível ou compreensível nem mesmo aos jornalistas e outros comunicadores sem formação jurídica, a alegação de ignorância a respeito dessa terrível perversão, que significou a atitude diante da concessão do selo azul à conta de Twitter da envolvida.

Considerando que Bárbara é tão somente submetida a uma preliminar investigação administrativa do TSE e de Inquéritos em andamento pela Polícia Federal, cuja legitimidade e legalidade já se demonstraram serem altamente duvidosas, [5] é inafastável o reconhecimento de plena aplicação da Presunção de Inocência, a qual é considerada uma regra de tratamento imposta constitucionalmente. Aliás, ainda que tais procedimentos fossem indiscutivelmente legítimos e legais, nada se alteraria a respeito da necessária obediência constitucional à regra de tratamento da Presunção de Inocência. Conforme ensina Moraes:

Na cultura da Civil Law, a forma mais tradicional de se compreender a presunção de inocência é considerá-la como uma garantia de que o cidadão será tratado na persecução penal como inocente. Isto é, garante-se que os efeitos de uma eventual decisão condenatória somente sejam aplicados após seu trânsito em julgado. Salienta-se, nesse sentido, que a presunção de inocência como norma de tratamento decorre diretamente dos direitos e garantias processuais do acusado, tais como o devido processo legal, legalidade, imparcialidade, contraditório e ampla defesa, duplo grau de jurisdição, dentre outros, assegurando ao réu o estado de inocente que apenas poderá ser vencido por uma decisão penal condenatória com trânsito em julgado legal e constitucional, ou seja, que tenha respeitado e observado tais princípios supra elencados. [6] 

Note-se que a Presunção de Inocência, como nos alerta Malatesta, não é uma regra ou princípio que tenha sido erigida apenas no âmbito teórico, eventualmente confrontando a realidade dos fatos, derivando dos devaneios de algum nefelibata. Não, a Presunção de Inocência é algo que se impõe como um conhecimento por presença que deriva de uma intuição direta da realidade circundante. É fato real e conhecido de todos por experiência diretamente testemunhável que a grande maioria das pessoas não é criminosa. Dessa constatação real é que se chega à Presunção de Inocência, a qual, é obviamente uma presunção relativa ou juris tantum, cabendo e exigindo prova em contrário para eventual condenação e tratamento da pessoa envolvida como culpada. [7]

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Nessas circunstâncias, Bárbara necessariamente teria de ser tratada como inocente, seja pela Polícia, pelo TSE ou por qualquer juízo ou tribunal, seja pela população em geral e, com ainda mais razão, por seus pares comunicadores e jornalistas. E não foi o que aconteceu.

Entretanto, a inversão de valores é ainda mais intensa do que se possa pensar. Estando Bárbara numa situação clara e evidente de Presunção de Inocência, o recebimento de um selo de autenticidade conferido por uma rede social desinteressada e que teria atuado tão somente por uma análise totalmente objetiva de seus critérios de reconhecimento, deveria ser um motivo de reforço dessa Presunção de Inocência e, portanto, de questionamento, não da rede social ou da comunicadora, mas do Tribunal que impõe restrições à atuação desta última nas redes sociais, sem qualquer fundamentação plausível. A atribuição do selo de autenticidade pelo Twitter a Bárbara deveria ter sido motivo para mobilização de toda a classe de jornalistas e comunicadores em uma cobrança rigorosa frente ao TSE a fim de que se justifiquem as restrições impostas à comunicadora em questão. Ao contrário disso, o que se viu foi uma avalanche de ofensas à honra da comunicadora e de críticas sustentadas exatamente na decisão judicial restritiva que não se sustenta em fundamentos concretos e se vê ainda mais questionada pelo evidente prestígio e idoneidade comprovados daquela que é oprimida sem maiores demonstrações de legitimidade dessa repressão.

Essa situação invertida somente pode ser explicada pela cegueira deliberada ou patológica provocada pela atuação enviesada seja da nossa Justiça, seja dos próprios comunicadores e jornalistas em suas interações e atuações.

Nesse ponto é interessante perceber que o nome da vítima de toda essa perversão, Bárbara, tem duas linhas de significação. Uma delas que pode retratar sua atuação vitoriosa como comunicadora. Popularmente o termo bárbaro pode designar aquilo que é muito interessante, de excelente qualidade, como quando se diz: Ontem assisti a um filme bárbaro. [8] Por outro lado, há um significado negativo para o termo bárbaro, que pode referir-se ao estrangeiro, forasteiro ou a estranha, isso em razão da origem histórica referente ao emprego do termo por Gregos e Romanos para designar povos diversos considerados inimigos, atrasados, violentos etc. A palavra bárbaros derivou no grego de barbar, que tem o significado de língua incompreensível, pois os gregos usavam essa onomatopeia para expressar o que ouviam quando presenciavam estrangeiros falando, um Bar bar, que seria o equivalente ao blá blá em português. [9]

É nítido que a comunicadora em questão foi tratada por seus pares como uma estranha, conforme se demonstrou já no início deste item, pela absoluta falta de seu reconhecimento como semelhante. Neste sentido, Bárbara foi tratada barbaramente por outros comunicadores e jornalistas (não se trata de trocadilho infame, mas da descrição rigorosa dos fatos). E toda essa barbárie se dá e é possível somente porque vivenciamos um momento de escalada do que Mário Ferreira dos Santos denominou de Invasão Vertical dos Bárbaros. O nome da comunicadora se adequa, em sua pessoa e no exercício de sua profissão ao sentido positivo do termo em comento. Mas, seus detratores estão em plena consonância com o barbarismo vertical, cuja característica das mais acentuadas é apresentar a força como superior ao direito, admitindo sem peias o afastamento do Direito do campo da Ética para integrar-se apenas no campo da Política. [10] Nesse plano se dá ainda a ação do negativo, que é exatamente o que permite uma inversão da escala de valores que atinge todos os setores. [11]

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A barbaridade nossa de cada dia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6777, 20 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96035. Acesso em: 26 abr. 2024.

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