No meu artigo anterior, expus sobre a meritocracia e sobre a falta de políticas públicas voltadas aos menos favorecidos, para que possam ascender socialmente.
Nos termos do artigo 145 da Constituição Federal, em seu § 1º, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
A bem da verdade, a Constituição Federal não é seguida neste ponto, uma vez que os que têm menos capacidade econômica pagam mais impostos no Brasil.
Acerca do princípio republicano e do princípio da legalidade, Heleno Torres vai explicar:
A legalidade é o princípio fundamental da Constituição Financeira, numa dimensão de reserva absoluta de lei para todos os atos da atividade financeira do Estado. Na atividade financeira do Estado predomina a função administrativa. Por conseguinte, é urna exigência do princípio republicano e fundamento do agir administrativo. Não basta que exista "lei", em sentido formal, mas que toda a administração pública possa agir em conformidade com a lei, sem contradições, reduções ou excessos em relação ao texto legal[1].
Heleno Torres continua ao expor que o conteúdo da legalidade financeira deve ser observado entre os entes públicos, órgãos da administração direta e indireta, Estado Democrático de Direito e particulares afetados ou beneficiários da atividade financeira do Estado. (TORRES, 2014, p.94)
Por isso é tão necessária uma reforma tributária no país, a fim de que os impostos sejam pagos por quem tem efetiva capacidade contributiva. Há patente contradição ao que está escrito na Constituição e o que é efetivamente exercido.
Um dos objetivos da Constituição Financeira é prover recursos para políticas públicas e, pelo magistério de Heleno Torres, visa a eliminação de privilégios:
Função de eliminação de privilégios. A Constituição Financeira não admite privilégios. Recusou à ação financeira o poder de atuar sem lei prévia e assegurou espaço para a democracia popular no controle e na destinação dos recursos ou bens públicos. Com isso, protege-se a liberdade e a propriedade, determina-se a certeza e a segurança jurídica, legitima-se a cobrança elo tributo ou a realização do gasto público ou da política pública pela autorização democrática e, com isso, cumpre-se, a um só tempo, os primados republicanos do Estado de Direito e da atuação democrática desse Estado[2].
Todavia, não é o que vemos em nosso sistema tributário. Fernando Facury Scaff, sobre orçamento republicano, vai dizer:
Republicano é o orçamento público no qual se arrecada mais de quem ganha mais, ou de quem possui mais bens, e gaste mais com quem mais necessita dos serviços públicos que são concretizados através de gastos públicos. Diz-se republicano, pois implementa o princípio da isonomia, sem privilégios a quem quer que seja, tratando desigualmente aos desiguais, na medida de sua desigualdade, visando reduzi-las, e não aprofundá-las, e respeitando suas diferenças. Isso demonstra uma combinação entre a capacidade contributiva, noção bastante conhecida dos tributaristas, que aponta para a correlação ideal entre a cobrança de tributos sobre quem ganha mais ou possui mais bens, e a capacidade receptiva, conceito cunhado por Regis de Oliveira, que indica a correlação ideal entre a necessidade de cada qual em receber os serviços públicos que são prestados pelo governo. Exemplificando esse segundo conceito: quem possui mais necessidade na ampliação dos serviços públicos de saúde é quem pode pagar por um plano privado ou quem está à margem da possibilidade de realizar esse gasto individual? O conceito de capacidade receptiva, próprio do Direito Financeiro, é bastante interessante para se compreender o mecanismo redistributivo do orçamento, e imprescindível para a noção de orçamento republicano. Será que temos um orçamento republicano no Brasil atual? Seguramente, não. Atualmente, arrecada-se mais de quem ganha menos e se gasta mais com quem ganha ou possui mais[3].
Partindo da concepção de Fernando Scaff, o orçamento republicano é aquele que busca igualdade. Pelo princípio republicano, quem ganha mais paga mais e quem mais precisa, deve ter suas necessidades sobrepostas aos de outros grupos.
Entrementes, no Brasil não existe um orçamento republicano porque se arrecada mais de quem ganha menos.
O sociólogo alemão Wolfgang Streeck aponta que um crescimento cada vez menor, uma desigualdade cada vez maior e um endividamento crescente do Estado não se sustenta no longo prazo:
Quanto menos o sistema fiscal exigir da propriedade dos mais abastados e dos seus herdeiros, em prol da comunidade, tanto mais desigual será a distribuição da riqueza, o que se manifesta, entre outras coisas, numa taxa de poupança mais elevada na faixa superior da sociedade[4].
Streeck vai dizer que a crise fiscal não será desencadeada por excesso de democracia redistributiva e sim por cortes no Estado de bem-estar e crescimento disparado de desigualdade de renda.
O nosso sistema tributário é regressivo, o que equivale a dizer que os pobres pagam mais impostos proporcionalmente ao que ganham, ao passo que os ricos, não. O sistema tributário brasileiro ao invés de distribuir renda, concentra, porque não é progressivo.
No que pertine às escolhas públicas, Heleno Torres vai dizer que nada tem a ver com as tragic choices do direito americano, porque no direito financeiro não é cabível o subjetivismo:
Política é poder, e o direito financeiro requer o poder juridicamente qualificado para decidir sobre as escolhas da atividade financeira, mormente quando a Constituição funda um Estado Social, com compromissos desenvolvimentistas, dirigido à efetividade de direitos fundamentais, proteção da dignidade da pessoa humana e redução de desigualdades sociais e regionais, o que somente pode ser alcançado com respeito à função social da propriedade e redistribuição de riqueza[5].
Perceba que o direito financeiro é estritamente ligado à efetividade dos direitos fundamentais, redução das desigualdades e redistribuição de riqueza o que é impossível de obter com a atual tributação.
O sistema tributário brasileiro incide sobre três pilares: consumo, renda e patrimônio. No Brasil, a carga tributária é maior sobre o consumo do que sobre a renda.
A tributação do consumo é embutida no preço dos produtos e serviços. Tendo em vista que a tributação aplicada a determinado gênero alimentício é a mesma para todos os consumidores, seja ele pobre ou rico, quem ganha pouco acaba pagando mais imposto porque perde um pedaço maior da sua renda adquirindo determinado item.
As camadas mais altas da população têm condições de investir, já a camada mais pobre gasta tudo o que ganha com o pagamento de impostos que incidem sobre alimentação.
Pesquisa IBGE de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 menciona que as famílias com rendimento de até dois salários-mínimos (R$ 1.908) comprometem uma parte maior de seu orçamento com alimentação e habitação que aquelas com rendimentos superiores a 25 salários-mínimos (R$ 23.850).
Somados, os dois grupos representam 61,2% das despesas das famílias com menores rendimentos, sendo 22% destinados à alimentação e 39,2% voltados à habitação. Entre aquelas com os rendimentos mais altos, a soma atinge 30,2%, sendo 7,6% com alimentação e 22,6% com habitação.[6]
A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA) aponta que a carga tributária para alimentos é uma das mais altas do mundo.
No país, a taxa média de impostos para a cesta básica é de 9,8%, acima da média praticada pelos países membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 7% para todos os alimentos, não apenas os da cesta básica[7].
Em países desenvolvidos, o peso da tributação sobre o consumo é menor. Nos países que integram a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média é de 33%. No Canadá, está em 23,5% e nos Estados Unidos, em 17,5%.
No Brasil, os tributos sobre o consumo são indiretos, ou seja, os empresários pagam os impostos e os repassam aos consumidores, e estes, os pagam indiretamente.
Segundo a POF 2017-2018, alimentação, habitação e transporte comprometiam, em conjunto, 72,2% dos gastos das famílias brasileiras, no que refere ao total das despesas de consumo, ou seja, aquelas utilizadas para a aquisição de bens e serviços.
Quanto ao pagamento de imposto de renda, em 2021, quem não precisa declarar imposto de renda são todos aqueles que receberam valor abaixo de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos) em 2020.
Quem ganha acima de R$ 5.300,00 (cinco mil e trezentos mil reais) por mês paga uma alíquota de 27,5% de imposto de renda. E quem ganha R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) paga a mesma alíquota.
Em 1996, o país parou de tributar os sócios e acionistas que recebem lucros e dividendos de empresas. Assim, famílias que possuem renda de cem salários-mínimos, recebendo sua remuneração integralmente via distribuição de lucros e dividendos não pagam impostos.
Desde 1988, o imposto sobre grandes fortunas é previsto na Constituição, mas até o momento não foi regulamentado e as discussões são inúmeras, passando de falta de pessoal para fiscalizar até a definição do que seria grandes fortunas joias, obras de arte, pedras preciosas, colecionáveis; itens de difícil fiscalização.
Os impostos sobre veículos, imóveis e terras, pagos por ricos e pobres, também são desequilibrados.
O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), por exemplo, com relação ao estado de São Paulo, é de 4% sobre o valor venal do veículo; motos, caminhonetes, ônibus, microônibus e maquinário pesado, de 2% e de caminhões, 1,5%.
A compra de um veículo já sofre inúmeras onerações com IPI, ICMS, PIS e COFINS e o consumidor que adquire um veículo para realizar transporte escolar, entregar comida paga a mesma porcentagem de uma moto ou carro de luxo.
O IPVA igualmente prejudica os mais pobres que utilizam o veículo para o trabalho na falta de transporte público, tendo em vista ser um imposto anual e se não pago, sujeito a apreensão do bem, inscrição do nome em dívida ativa, protesto, o que impede o cidadão de adquirir crédito e gera suspensão de linhas crédito.
Por outro lado, jatinhos, helicópteros, iates e lanchas são livres de impostos.
Com relação ao IPTU, não seria diferente. Noticiado pela Rede Brasil Atual que o reajuste de IPTU em São Paulo penaliza a periferia e reduz impostos dos mais ricos[8].
A reportagem informa que legislação propõe reajuste de quase 90% no valor do metro quadrado dos imóveis das famílias mais pobres, geralmente com até 80 metros quadrados e no máximo dois quartos. Casas de apenas um pavimento, com acabamento interno simples e sem acabamento externo, na periferia, vão passar de R$ 612 para R$ 1.159 o metro quadrado.
Valores um pouco menores, mas igualmente exorbitantes, serão aplicados para casas térreas e sobrados no centro expandido e na região central da capital. Um sobrado simples, na região de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, por exemplo, terá o valor do metro quadrado reajustado em 57%. Ao mesmo tempo, o prefeito propõe a redução de pouco mais de 5% do valor para imóveis com mais de 300 metros quadrados, vários quartos, escritórios, salão de festas e piscina.
O professor de Planejamento Urbano da Universidade de São Paulo (USP), Nabil Bonduki, avalia que o projeto tem um caráter injusto. "A valorização dos imóveis de uma forma geral, periferia e centro, foi muito maior do que se expressou no IPTU. Só que a renda das pessoas, com exceção daqueles 1% mais ricos, não acompanhou essa valorização. Então seja a classe média ou setor mais popular, eles não têm hoje condições de pagar um IPTU se ele for atualizado de acordo com o valor do mercado imobiliário".
Quanto ao ITR Imposto Territorial Rural, que incide sobre fazendas, tem valores irrisórios, contudo, grandes propriedades rurais são fortemente utilizadas para plantio de arroz, feijão, soja e demais itens exportados em grandes escalas pelos grandes agricultores.
Há certa dificuldade na cobrança de tal imposto, pela complexidade de avaliação do valor da terra nua e a imprecisão do conceito de área utilizada, beneficiando grandes fazendas na arrecadação menor do que de fato seria a correta.
E para piorar o cenário, a inflação dos alimentos, durante a pandemia, continua crescendo, prejudicando ainda mais a camada mais vulnerável da população.
E não só isso. Combustível tem aumentado bastante, inviabilizando inclusive a mantença da população mais pobre em serviços precários, sem garantia alguma, tais como entrega de comida e transporte de passageiros por aplicativos.
O Senado analisa uma série de projetos de lei que modificam regras específicas do atual sistema tributário, tais como projetos que acabam com a isenção tributária dos lucros e dividendos pagos por empresas a seus sócios e acionistas e simplificação e redução de imposto sobre consumo.
Não obstante, apenas estão em discussões e nada de palpável ainda saiu do papel e não se sabe quando, tampouco se sairá, haja vista o grande lobby de vários representantes dos afetados por tais propostas.
"Sem decisão política, a atividade financeira do Estado resulta mera gestão patrimonial, reduzida a simples exercício de burocracia, sem direção política ou qualquer conformidade com os anseios do povo, segundo os rumos da democracia"[9].
- TORRES, Taveira Heleno. Direito Constitucional Financeiro: Teoria da Constituição Financeira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.98.
- Ibidem, 104.
- SCAFF, Facury Fernando. Orçamento republicano, justiça distributiva e a liberdade igual, CONJUR, 12 de junho de 2018, Seção Contas à vista. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jun-12/contas-vista-orcamento-republicano-justica-distributiva-liberdade-igual>. Acesso em 15 de dezembro de 2020.
- STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado: A crise adiada do capitalismo democrático, Coimbra: Conjuntura Actual Editora, p.71
- TORRES, Taveira Heleno. Direito Constitucional Financeiro: Teoria da Constituição Financeira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.120/121.
- SOUZA, Diana Paula de. Famílias com até 2 salários gastam 61% do orçamento com alimentos e habitação, IBGE, 04 de outubro de 2019, POF, Estatisticas Sociais. Disponível em:<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25606-familias-com-ate-dois-salarios-gastam-61-do-orcamento-com-alimentos-e-habitacao>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.
- ABIA, ABIA defende a manutenção da desoneração da cesta básica na Reforma Tributária, 07 de dezembro de 2020. Disponível em: <https://www.abia.org.br/noticias/abia-defende-a-manutencao-da-desoneracao-da-cesta-basica-na-reforma-tributaria>. Acesso em 18 de dezembro de 2021.
- GOMES, Rodrigo. Aprovado na Câmara, reajuste do IPTU de São Paulo penaliza a periferia e reduz imposto dos mais ricos, Rede Brasil Atual, Seção Cidadania, 30 de novembro de 2021. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2021/11/reajuste-iptu-sao-paulo-prefeitura-penaliza-periferia/>. Acesso em 15 de janeiro de 2022.
- TORRES, Taveira Heleno. Direito Constitucional Financeiro: Teoria da Constituição Financeira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.121.