Capa da publicação Nova Lei de Improbidade: proteção ineficiente da moralidade administrativa
Artigo Destaque dos editores

A proteção ineficiente dos princípios da moralidade administrativa em razão das alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21

Exibindo página 2 de 3
01/06/2022 às 18:40
Leia nesta página:

2. Do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot[25]) como parâmetro de controle de constitucionalidade.

Superada a fase histórica centrada no eu e a presunção de que as relações individuais são equilibradas, a sociedade e a própria noção de Estado evoluíram. O desiquilíbrio das relações individuais se agravou. Novos direitos foram apreendidos da realidade. Noções de coletividade e de fraternidade trouxeram novos coloridos para a definição de bens jurídicos. O plural era tão senão mais importante do que o singular no contexto contemporâneo de sociedade. Aos direitos fundamentais individuais, portanto, agregaram-se os direitos fundamentais transindividuais, cujo traço característico é justamente a compreensão de que o ser humano é um ser social e de que há bens e valores que se sobrepõe ao interesse individual, devendo por todos ser preservados.

Contudo, enquanto ao Estado bastava inicialmente a adoção de uma postura negativa (garantismo negativo) para a tutela de direitos e liberdades individuais, a complexidade da dinâmica social, agravada pela disparidade econômico-social e pela existência de poderes sociais que atuam no plano da realidade de forma desequilibrada, fez despertar a necessidade de que o Estado passasse para uma atuação proativa, seja para garantir o próprio exercício dos direitos e liberdades individuais, seja para albergar os novos direitos reconhecidos (de terceira dimensão). Assim, ao papel clássico do Estado (respeito às garantias individuais por abstenção) agregou-se uma atuação destinada a proteger e concretizar esses direitos, tendo por objetivo a promoção da igualdade social e a dignidade da pessoa humana em sentido amplo.

É aqui que reside o núcleo do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot), outra face do princípio da proporcionalidade: prevendo a Constituição Federal direitos fundamentais, é atribuição do Estado a adoção de postura tendente a concretizar esses direitos e colocá-los a salvo de investidas ilegítimas, seja de parte dos particulares ou do próprio Estado. Em assim não agindo, incorre em inconstitucionalidade por não tutelar, de forma eficaz, os direitos postos. Isso porque os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam determinados valores e decisões essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parâmetro para controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais[26]. Eis a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Reforço que há direitos que exigem uma postura ativa por parte do Estado para fins de suas salvaguardas e para sua própria promoção. Prestigiar os direitos fundamentais é dar concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, é defeso ao Estado omitir-se desse mister. Daí porque o princípio da proibição da proteção deficiente também alcança as condutas omissivas ou insuficientes do Estado à tutela desses direitos. Nas palavras de Ingo W. Sarlet:

O Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que como contraponto à assim designada proibição de excesso expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). Neste sentido, o princípio da proibição de insuficiência atua como critério para aferição da violação de deveres estatais de proteção e dos correspondentes direitos à proteção.[27]

Em sentido muito semelhante, Alexandre Moreira Van Der Broocke conclui que

o dever de proteção, já consagrado pela jurisprudência e pela doutrina em relação aos direitos fundamentais, deve ser levado em consideração, também, em relação aos demais direitos constitucionais, posto que não há espaço de discricionariedade para a atuação do legislador em relação à efetivação do direito previsto na Lei Maior. Ou seja, se existe previsão constitucional que respalde um direito qualquer, fundamental ou não, é imperativo que o Estado-Legislador desempenhe seu mister, conferindo-lhe o regramento normativo infraconstitucional que possibilite sua plena efetivação. Agindo de forma diversa, seja pela sua postura omissiva (untermassverbot) ou comissiva (übermassverbot), o legislador incide em antinomia inconstitucional. Ao que parece, a corrente garantista se mostra mais condizente com os desafios que se colocam diante do Estado Democrático de Direito, uma vez que nela a Constituição da República se reveste de maior coercibilidade em relação não só ao Estado-Legislador, como também em face dos demais poderes. Sendo assim, partindo-se da premissa de que o dever de proteção (schutzpflicht) é condição de possibilidade da incidência da proibição da proteção deficiente (untermassverbot), e que, segundo o viés garantista, pode-se afirmar que o dever de proteção se estende para além dos direitos fundamentais, a proibição da proteção deficiente abrange os direitos constitucionais em geral.[28]

Logo, a proibição de proteção deficiente pode ser definida, segundo Carlos Bernal Pulido, como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, a partir do qual poderá ser constatado se um ato estatal viola ou não um direito fundamental de proteção. Trata-se de compreender, assim, o duplo viés do princípio da proporcionalidade: de proteção positiva ou de proteção de omissões estatais. Em outras palavras, tem-se que a inconstitucionalidade pode advir de um ato excessivo do Estado, ou pode advir de uma proteção insuficiente de um direito fundamental por parte deste (e. g., quando o Estado abre mão de determinadas sanções cujo objetivo é a proteção de direitos fundamentais). Esta dupla face do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos do poder público à Constituição, e tem como consequência a redução do espaço de conformação do legislador[29].

Dos conceitos e definições fixadas, pode-se concluir pela existência de uma relação simbiótica entre o princípio da proibição da proteção deficiente e o ato de legislar. Ainda que caiba ao legislador, por excelência, o dever constitucional de estabelecer a forma como a proteção e promoção dos direitos fundamentais irá ocorrer (o que se dá, via de regra, por meio de leis), esse exercício terá que ser realizado dentro das balizas constitucionais, funcionando o princípio da proibição de proteção deficiente como um limite mínimo a ser atentado por aquele. Juarez Freitas, equaciona bem a questão:

Guardando parcial simetria com o princípio da proibição de excesso (Übermassverbotes), a medida implementada pelo Poder Público precisa se evidenciar não apenas conforme os fins almejados (Ziekonformität), mas, também, apta a realizá-los (Zwecktauglichkeit). Igualmente se mostra inadequada a insuficiência ou a omissão antijurídica causadora de danos.[30]

Aduza-se que sequer há cogitar de interferência indevida na atividade legislativa. O legislador, embora investido pelo povo, não goza de liberdade absoluta para o exercício do seu mister. Deve irrestrita atenção aos preceitos constitucionais no desenvolvimento de sua atividade, a qual, como já exaustivamente exarado, consiste na busca pela promoção e proteção dos direitos fundamentais. Como bem pondera Juliana Venturella Nahas Gavião:

Desse modo, em não havendo uma proteção normativa ao direito fundamental, no que tange à sua dimensão objetiva (ou seja, como imperativo de tutela), verifica-se ato de omissão estatal flagrantemente inconstitucional, porquanto impedirá a realização e o desfrute do direito fundamental por seu titular. Em outras palavras, não existe liberdade absoluta de conformação legislativa, ainda que deva ser reconhecido o espaço que é conferido ao legislador para adaptar os mandamentos constitucionais. E isso exsurge da própria interpretação sistemática do direito, que ensina que os atos estatais devem ser permanentemente pautados pelas diretrizes constitucionais, notadamente na quadra da história e da evolução dos direitos fundamentais que se encontra a humanidade.[31]

Outrossim, é assente que a democracia não se expressa somente por meio do princípio majoritário, esse considerado a maioria necessária no Congresso Nacional para a aprovação de atos legislativos. A mesma Constituição Federal que garante o direito das maiorias põe a salvo e em igualdade de relevância e importância os direitos das minorais. E, havendo sobreposição indevida e/ou ilegítima de um sobre outro, é inerente à função do Poder Judiciário reequilibrar a balança dando voz àqueles que a tiveram subtraída de forma irregular. Nesse sentido, é a ponderação realizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso ao assentar que é da competência do Poder Judiciário promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso. Nas suas palavras:

o déficit democrático do Judiciário, decorrente da dificuldade contramajoritária, não é necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição pode estar afetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa nas campanhas, o abuso do poder econômico, a manipulação dos meios de comunicação. O papel do Judiciário, e, especialmente, das cortes constitucionais e supremos tribunais deve ser resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso; sem, contudo, desqualificar sua própria atuação, exercendo preferências políticas de modo voluntarista em lugar de realizar os princípios constitucionais. Além disso, em países de tradição democrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucional funcionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitos entre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandes papéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional.[32]

Nessa ordem de ideias, não transparece dificuldade alguma em se valer do princípio da proibição da proteção deficiente para fins de realizar controle de constitucionalidade sobre normas editadas pelo legislador que não observam os fins almejados (Ziekonformität), como também não se apresentam aptas a realizá-los (Zwecktauglichkeit).


3. Da inconstitucionalidade do art. 11 da Lei n. 8.429/92 com redação dada pela Lei n. 14.230/21. Da vedação do retrocesso social. Da proteção ineficiente da moralidade administrativa enquanto direito fundamental. Do descumprimento da ordem de penalização emanada da Constituição Federal.

As alterações promovidas pelo Poder Legislativo no art. 11 da Lei n. 8.429/92 foram sensíveis refletindo diretamente na proteção adequada da moralidade administrativa e seus princípios norteadores.

Primeiro, é de se observar que o art. 11 da Lei n. 8.429/92 visa tutelar a observância aos princípios regentes da administração pública, princípios esses fundados na moralidade administrativa. A Constituição Federal, no caput do art. 37, estabelece que a administração pública será guiada pelos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Ou seja, cuida-se de norma programática que impôs ao legislador derivado a criação de comandos e normas destinadas à proteção desses valores constitucionais. Aliás, o constituinte originário impôs, no âmbito interno, verdadeiro mandado de penalização do agente ímprobo em seara não-penal (§ 4º do art. 37 da Constituição Federal - CF).

Logo, a alteração legislativa realizada na redação do art. 11, que limita drasticamente as hipóteses de proteção desses princípios, importa em manifesto retrocesso social, uma vez que retirou do alcance da lei de improbidade uma infinidade de condutas que são absolutamente incompatíveis com o exercício de cargo ou função pública. Não há razão ética, moral ou constitucional a justificar que atos dolosos que violem os princípios da impessoalidade, da moralidade, da publicidade ou da eficiência não sejam tutelados pela LIA. O fato de eventualmente eles também serem tratados pela esfera penal e civil não lhes retire a qualificação de atos ímprobos, porque atentam contra toda a amálgama de direitos envoltos pelo conceito de moralidade administrativa.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Mas a proteção deficiente da moralidade administrativa foi mais longe. O Poder Legislativo teve a cautela de tornar as hipóteses do art. 11 numerus clausulus ao inserir a oração caracterizada por uma das seguintes condutas, dificultando sobremaneira a inserção de condutas usualmente praticadas por agentes ímprobos e que, antes, eram sistematicamente apuradas pelos órgãos competentes e reprimidas pelo Poder Judiciário.

Ainda, deixou de caracterizar como ato ímprobo a prática de conduta visando fim proibido em lei ou regramento (antigo inc. I), o ato de retardar ou deixar de praticar, indevidamente ato de ofício (antigo inc. II) e o ato de revelar fato ou circunstância que se encontra em segredo (antigo inc. III), passando a exigir que dessa conduta propicie beneficiamento por informação privilegiada ou que coloque em risco a segurança da sociedade e do Estado.

Em resumo: o artigo que tinha o condão de viabilizar que condutas graves e claramente violadoras dos princípios da moralidade administrativa sofressem a tutela jurisdicional na seara da improbidade administrativa, foi quase que completamente esvaziado, encerrando, atualmente, apenas dez hipóteses de condutas ímprobas que são de difícil ocorrência na praxe forense. O retrocesso social será manifesto, mesmo ele sendo considerado um princípio de envergadura constitucional.

Aduza-se que o princípio que impede o retrocesso social tem por particular característica ser dirigido especialmente aos Poderes Executivo e Legislativo[33], visando barrar adoção de políticas públicas e leis que coloquem os cidadãos em desvantagem social ao atual estágio de evolução comunitária. Como sustenta Luís Roberto Barroso, embora se trate de princípio implícito, ele encontra-se incorporado no texto constitucional, fazendo nascer para o cidadão um direito subjetivo negativo, não podendo ser suprimido. Em síntese: Por este princípio [proibição do retrocesso social], que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.[34]

Ingo Wolfgang Sarlet, em lúcida ponderação acerca do princípio da vedação do retrocesso social, assenta que

não é possível, portanto, admitir-se uma ausência de vinculação do legislador (assim como dos órgãos estatais em geral) às normas de direitos sociais, assim como, ainda que em medida diferenciada, às normas constitucionais impositivas de fins e tarefas em matéria de justiça social, pois, se assim fosse, estar-se-ia chancelando uma fraude à Constituição, pois o legislador que ao legislar em matéria de proteção social apenas está a cumprir um mandamento do Constituinte poderia pura e simplesmente desfazer o que fez no estrito cumprimento da Constituição.[35]

Não bastasse a inconstitucionalidade pelo retrocesso social, as alterações realizadas na lei não superam o juízo de proporcionalidade que é necessário para a avaliação da compatibilidade das alterações com a ordem constitucional porque:

(i) carecem de motivação idônea, uma vez que formuladas no desiderato de salvaguardar agentes públicos que atuam em descompasso com regras, normas, princípios e direitos fundamentais vinculados à moralidade administrativa. Ou seja, se tutelou o infrator ao invés e proteger o bem jurídico guarnecido pela Constituição Federal;

(ii) o Poder Legislativo não demonstrou ou justificou adequadamente a necessidade da redução do alcance da norma penalizadora modo a otimizar a proteção suficiente da moralidade administrativa. Aduza-se que a invocação genérica de que haveria abusos por parte dos membros do Ministério Público no ajuizamento de ações fundadas no art. 11 não se apresenta como fundamento idôneo a legitimar democraticamente a mudança legislativa. A uma, porque se cuida de argumento revanchista, sem embasamento legal ou moral; a duas, cabe ao Poder Judiciário realizar o controle do uso temerário do direito de ação; a três, além do Judiciário, o próprio ordenamento já possui instrumentos para inibir essa prática, seja por meio da aplicação de multa por litigância de má-fé, seja por meio da Lei de Abuso de Autoridade (13.869/19); a quatro, é antidemocrático obstaculizar o próprio manejo da ação judicial visando a tutela do coletivo sob um pseudoargumento de abuso;

(iii) a drástica redução do alcance da norma viola o princípio da proporcionalidade em sentido estrito e engendra retrocesso social na proteção da moralidade administrativa enquanto direito fundamental. O legislador partiu de uma premissa equivocada quando da elaboração do texto da lei, concluindo que haveria condutas anteriormente previstas no tipo que seriam muito vagas e imprecisas, afora, supostamente, albergar meras irregularidades administrativas que não justificariam a aplicação da Lei de Improbidade. Contudo, o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça há anos é no sentido de que a exegese das normas previstas no art. 11, considerada a gravidade das penas previstas na lei, deve ser realizada cum granu salis, máxime porque uma interpretação ampliativa poderá acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público, preservada a moralidade administrativa e, a fortiori, ir além do que o legislador pretendeu . Logo, ao que se percebe, nunca se verificou excessos por parte na interpretação adequada e constitucionalmente legítima do contido no antigo art. 11 pelo Poder Judiciário.

Ademais, também não atentou o legislador para o fato de que o art. 11 visa proteger os princípios sensíveis da administração pública, os quais possuem elevada carga normativa, valorativa e amplo espectro de incidência.

Por óbvio, é inviável que o legislador discrimine absolutamente todas as formas de condutas que importem em violação aos princípios da administração pública. A capacidade inventiva do ser humano não é resumível em palavras. O Direito é mera sombra da realidade, sempre a acompanhando com atraso. No mesmo sentido, são as lições Jürgen Habermas, ao afirma que

uma norma abrange seletivamente uma situação complexa do mundo da vida, sob o aspecto da relevância, ao passo que o estado de coisas por ela constituído jamais esgota o vago conteúdo significativo de uma norma geral, uma vez que também o faz valer de modo seletivo. Essa descrição circular caracteriza um problema metodológico, a ser esclarecido por toda teoria do direito.[36]

Daí porque se apresenta relevante para tais situações sejam albergadas por normas abertas, viabilizando que o intérprete atue na proteção da moralidade administrativa, sempre a partir de uma leitura constitucional do alcance da norma. A utilização de um tipo aberto para a tutela de princípios (normas de elevada carga valorativa) viabiliza o constante e permanente controle das mutações sociais pelos tribunais, maximizando a proteção ao direito fundamental à moralidade administrativa. Segundo muito bem pondera Fábio Medina Osório, a previsão de um tipo aberto na proteção dos princípios da Administração Pública (i) permite-se ao intérprete grande mobilidade, atualizando os textos legais diante dos fatos e dos velozes acontecimentos e mutações sociais, dentro das exigências técnicas de fundamentação e aplicação das normas aos casos concretos; (ii) outorga-se flexibilidade normativa aos mecanismos punitivos, de tal modo a coibir manobras formalistas conducentes à impunidade, com o que se reduz o campo da impunidade e das decisões absolutórios injustas, um dos grandes obstáculos ao combate à corrupção; (iii) acompanha-se a dinâmica da corrupção e dos fenômenos de má gestão pública.[37]

Rafael Munhoz de Mello, igualmente, considera perfeitamente conciliável com o Direito Administrativo Sancionador a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, mediante a adoção da técnica de tipificação indireta e das normas em branco. Sustenta o festejado autor:

O princípio da tipicidade não veda a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, mas, por outro lado, seu uso não afasta a exigência de tipicidade. Permanece sendo necessário, quando utilizando conceito indeterminado, que o comportamento proibido seja descrito com clareza e objetividade, de modo a que os particulares possam evitar a aplicação da sanção administrativa. É admitida no direito administrativo sancionador a tipificação indireta.

Na tipificação indireta o dispositivo legal que prevê a infração administrativa faz referência a outro dispositivo, no qual foi estipulada uma obrigação ou proibição, cuja inobservância caracteriza ilícito administrativo. Desde que seja possível identificar a conduta proibida, a tipificação indireta não viola o princípio da tipicidade. A tipificação global ou residual, através da qual se pretende tipificar como conduta sujeita à aplicação de sanção administrativa todo e qualquer descumprimento de norma jurídica, sem qualquer especificação, vai de encontro ao princípio da tipicidade. Na tipificação global utiliza-se uma cláusula onicompreensiva, que abrange todos os comportamentos que violem dispositivo normativo qualquer dispositivo. Não há óbice no direito administrativo sancionador à edição das chamadas normas em branco.[38]

Em sentido muito próximo, Alexandre Santos de Aragão, tratando do princípio da legalidade a partir dessa concepção mais contemporânea, denomina o fenômeno de legalidade principiológica ou legalidade formal axiológica no sentido de que as atribuições de poderes pela lei devem, por sucintas que sejam, ser pelo menos conexas com princípios que possibilitem o seu controle; princípios aqui considerados em seu sentido amplo, abrangendo finalidades, políticas públicas, standards etc.[39]

Outrossim, outra violação do legislador ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito jaz na desatenção dos princípios interpretativos da constitucional, os quais são de observância obrigatória para adequada conformação da legislação infraconstitucional com a ordem jurídica.

Com efeito, a intepretação das normas jurídicas constitucionais reclama do exegeta (e aqui se encontra incluído o legislador ao exercer seu mister) aquilo que se denomina de máxima efetividade. Ou seja, normas que tutelam direitos fundamentais como a moralidade administrativa merecem uma interpretação que lhes garanta máxima eficácia social possível. Não há como concluir como razoável e proporcional uma norma legislativa que deixa de tutelar integral e adequadamente a moralidade administrativa, quanto mais diante dos reflexos sociais nefastos que a corrupção administrativa enseja.

Já o princípio da força normativa da Constituição impõe ao legislador e a sociedade (considerando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais) que atentem para a realidade social na qual está inserida e faça guarnecer aqueles valores que são caros para o povo em dado momento histórico. A sociedade clama pelo combate à corrupção administrativa. As manifestações sociais dos últimos anos são provas mais do que fidedigna disso. Assim, a sobrevinda de uma alteração legislativa que desprotege esse valor social tão caro, viola o princípio da força normativa da Constituição.

Assim, se dessume a relevância de que o tipo previsto no art. 11 seja uma cláusula aberta (como já era, diga-se), permitindo que condutas absolutamente graves que atentem contra a Administração Pública sejam puníveis pela LIA, diploma vocacionado para essa função. Veja-se que, por exemplo, a prosperar a redação atual do artigo, condutas como advocacia administrativa e adulteração de documento público praticado por funcionário público, que não gerem dano ao erário ou enriquecimento ilícito do agente, ficarão excluídas do alcance da Lei n. 8.429/92. Cuidam-se de apenas dois exemplos de condutas corriqueiras na prática forense (dentre tantos outros) que bem demonstram a gravidade e o impacto que a alteração legislativa engendrará na tutela da moralidade.

Desse modo, impõe-se a declaração de inconstitucionalidade do caput do art. 11, repristinando a redação primitiva, com a única ressalva que não mais persiste a modalidade culposa, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei n. 8.429/92.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ECHE, Luís Mauro Lindenmeyer. A proteção ineficiente dos princípios da moralidade administrativa em razão das alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6909, 1 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98213. Acesso em: 7 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos