Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/18930
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Depoimento sem dano.

O olhar interdisciplinar na compreensão do delito e o respeito à dignidade da pessoa humana na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

Depoimento sem dano. O olhar interdisciplinar na compreensão do delito e o respeito à dignidade da pessoa humana na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

Publicado em . Elaborado em .

Resumo: O presente artigo analisa as formas de violência, contextualizando a compreensão do delito com os conceitos e métodos da criminologia, capaz de fornecer a justiça um saber científico, que represente a realidade social onde o delito ocorre. A punição da inescrupulosa violência sexual contra crianças e adolescentes, usual e cotidiana, deve ser solucionada através de instrumentos que tornem capazes a materialização de provas, sem causar danos psíquicos às vítimas no processo de investigação, analisando o crime através de um olhar científico e interdisciplinar, reconhecendo a vulnerabilidade e a fase de desenvolvimento psicológico das vítimas. A análise de obras, estatísticas e artigos científicos, relacionando estudos transversais e longitudinais enriquecem este artigo, que tem como objetivo delinear um trajeto rumo ao novo modelo de Ciência Penal, analisando um projeto humanitário e altruísta idealizado por um Juiz de Direito que compreendeu as dinâmicas sociais causadoras do delito e a importância da reintegração da vítima, atendendo as exigências da sociedade e transformando a justiça em um verdadeiro reduto de cidadania.

Palavras-chave: Criminologia. Depoimento Sem Dano. Abuso Sexual. Interdisciplinaridade e o Fenômeno Delitivo. Novo Modelo de Justiça Penal.


Introdução

Desde o surgimento da humanidade, houve uma relação de superioridade e inferioridade entre adultos, crianças e adolescentes. O crime impera na humanidade desde tempos imemoriais, ultrapassando as fronteiras históricas e culturais da sociedade contemporânea. Torna-se relevante lembrar o quão minado de dramas é o território por onde andamos, sem notar que esses dramas também nos atingem. O manto diáfano da imagem de pais educados, tios extrovertidos, famílias felizes, muitas vezes, escondem a nudez crua de uma realidade sórdida.

A inescrupulosa e cruel violência sexual contra crianças e adolescentes está presente em nossa sociedade. Sua ocorrência está relacionada com fatores sociais, pessoais e situacionais. Desta forma, a resolução desses conflitos e as políticas de profilaxia devem basear-se em dados empíricos,que relacionam o delito com o meio social onde ocorreu e com as condições psicológicas da vítima e do delinqüente. O sistema legal necessita de qualidade técnica e humana. O abandono da vítima é um dos problemas mais difíceis de serem enfrentados na sociedade contemporânea. Sua reintegração é, deploravelmente, uma meta longínqua e que deve estar acompanhada da solidariedade e empatia da sociedade.

É neste contexto que surgiu o projeto "Depoimento Sem Dano", criando um rapport ideal na inquirição de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência/abuso sexual, objetivando a redução de danos psíquicos ocasionados pela atuação do sistema legal, melhorando a prova produzida e garantindo a proteção integral das vítimas.

Neste trabalho, preliminarmente, conceituarei as formas de maus-tratos contra crianças e adolescentes. Em seguida, buscarei na criminologia um olhar interdisciplinar e científico do fenômeno delitivo, e demonstrarei o processo de vitimização. Ao analisar a criação social do conceito de infância, será ilustrado a vulnerabilidade de crianças e adolescentes em fase de desenvolvimento psicológico de se tornarem vítimas de abuso sexual. Após essa explanação, apresentarei o célebre projeto "Depoimento Sem Dano", que se caracteriza pelo altruísmo e humanismo na inquirição de crianças e adolescentes vítimas e/ou testemunhas de abuso sexual, indo ao encontro do novo modelo de ciência penal.

O objetivo capital do trabalho é demonstrar ao leitor a importância de um projeto que pode humanizar e aperfeiçoar a Justiça através de um olhar interdisciplinar que a criminologia nos faculta para a compreensão e, principalmente, para a solução dos conflitos sociais, principalmente o crime.


1 Formas de violência e maus-tratos contra crianças e adolescentes.

A violência na infância sempre foi um problema não apenas individual, mas também um problema social. Jamais existiu uma definição universal exata quanto aos maus-tratos, pois os contextos culturais são diversificados, e as sociedades, diferenciam-se através de seus costumes e tradições, portanto, criam conceitos diferentes. No entanto, atualmente, é consenso em todo o mundo que abusar de crianças e adolescentes é crime, e assim deve ser tratado.

A doutrina tradicional engloba, dentro dos maus tratos, a violência física, violência/abuso sexual, violência psicológica e negligência. Pode-se incluir dentro dessa doutrina alguns delitos que surgiram com a globalização e com a praticidade de comunicação entre sociedades culturalmente distintas. Tais delitos são: a pornografia infantil e pedofilia na internet, o turismo sexual e a prostituição infantil.

Maus-tratos físicos, segundo documento oficial do Ministério da Saúde, são atos violentos intencionais, praticado pelos pais, responsáveis ou pessoas próximas pela criança ou adolescente, cujo "objetivo é de ferir, danificar ou destruir esta criança ou adolescente, deixando ou não marcas evidentes em seu corpo" (BRASIL, 2002 P.13).

Portanto, violência física caracteriza-se por atos de agressão que podem ir de uma simples palmada até o espancamento inescrupuloso e cruel, podendo provocar hematomas, queimaduras, hemorragias, e até mesmo causar a morte.

Na violência/abuso sexual, a criança e o adolescente se tornam uma gratificação sexual ao delinqüente. O abuso sexual consiste em qualquer tipo de interação, contato ou envolvimento da criança em atividades sexuais que ela não compreende. "Os atos designados como abuso sexual podem ou não envolver contato físico com a criança; por isso, não se deve esperar que essa modalidade de violência apresente, necessariamente, um sinal corporal visível" (GONÇALVES, 2005 p.293). Desta maneira, além das regras sociais e legais da sociedade serem violadas, o delinqüente está causando danos físicos e psíquicos à vítima, e, possivelmente, também a família da vítima e seus amigos. No decorrer deste trabalho, trataremos minuciosamente os detalhes e características principais da violência sexual na infância.

A violência psicológica é qualquer ato onde o delinqüente rechaça, ignora, isola, infunde e corrompe a vítima, ocasionando lesões psíquicas que podem comprometer seu desenvolvimento intelectual. Segundo Ferreira, apontado na obra de Cezar (2007 p.29), a violência psicológica raramente é encontrada nas estatísticas oficiais, "pois sua condição e invisibilidade manifesta-se na depreciação da criança pelo adulto através da humilhação, ameaças, impedimentos, ridicularizações que minam a sua auto-estima, e fazem com que acredite ser inferior aos demais, sem valor".

A criança e o adolescente não são seres humanos incapazes e inferiores, mas sim, pessoas em fase de desenvolvimento psicológico. O sofrimento psíquico ocasionado pela violência psicológica pode acompanhar a vítima durante toda a sua vida, gerando profundos sentimentos de mágoa e insegurança, sensação de abandono e solidão. Em muitos casos, onde a violência psicológica é demasiadamente reiterada, o resultado pode ser um grave transtorno de conduta anti-social.

Pais ou responsáveis tem o dever de manter a integridade de seus filhos, além de fornecer os cuidados básicos para a educação e saúde dos mesmos. Quando os pais deixam de lado esses cuidados básicos ocorre o que chamamos de negligência.

A negligência significa a omissão de cuidados básicos como a privação de medicamentos; a falta de atendimento aos cuidados necessários com a saúde; o descuido com a higiene; a ausência de proteção contra inclemências do meio com o frio e o calor; o não provimento de estímulos e de condições para a freqüência à escola. (Brasil, 2002 p. 13)

Um conceito exato de negligência é de difícil discernimento devido às diferentes condições sócio-econômicas que vivem as famílias. No entanto, é consenso entre os doutrinadores que omitir os cuidados básicos necessários e acessíveis a todas as famílias é crime, e assim deve ser tratado.

Vive-se, atualmente uma constante mutação cultural. Um dos principais fatores responsáveis é o advento da internet, que facilita a troca de informações, a comunicação e a interação entre os seres humanos de todas as culturas e regiões. A internet, facilitadora do intercâmbio de informações, trouxe diversas oportunidades de educação, lazer e entretenimento. Essas trocas de idéias podem ser feitas por qualquer pessoa a qualquer hora do dia, inclusive por crianças.

A comunidade virtual trouxe consigo, desta forma, os crimes de pornografia infantil (que caracterizam-se principalmente pela divulgação de fotos e vídeos pornográficos de crianças e adolescentes na rede mundial de computadores) e a pedofilia virtual, onde adultos sedutores atraem crianças geralmente prometendo encontros onde a alegria e a brincadeira recíproca será o atrativo principal. No entanto, o objetivo é aliciar a confiança das crianças e, posteriormente, abusá-las sexualmente. Alguns cometem tais abusos pela própria internet (abuso psicológico, por exemplo), outros utilizam a internet para marcar encontros pessoais com suas vítimas.

Matéria divulgada no Espaço Vital, no dia 09 de setembro de 2010, destaca o crescimento de 112% nos últimos quatro anos do total de internautas no Brasil. É relevante destacar que a pesquisa aponta usuários a partir dos 10 anos de idade, isto é, crianças em fase de desenvolvimento e com acentuado grau de vulnerabilidade a se tornarem vitimas de delitos.

É extremamente importante destacar outra pesquisa divulgada pelo mesmo site em 14 de maio de 2010, que aponta o alto índice de crimes sexuais no Brasil, chegando ao espantoso número de um crime sexual por hora na internet.

A internet não é apenas um "paraíso de ataque" de delinqüentes que buscam na pedofilia e na pornografia infantil apenas maneiras de encontrar prazer, mas também, o fator financeiro destaca-se no que concerne a crimes virtuais. Fotos pornográficas de crianças brasileiras, por exemplo, podem servir de "mostruário sexual" para exploradores de outros países. Assim, ao escolherem seus "produtos", incumbe ao delinqüente que angariou a confiança da criança realizar a sua captura e, conseqüentemente, o tráfico de pessoas para outros países. Com isso, aquele que antes era um pedófilo, passou a ser um especialista em tráfico de crianças, lucrando valores altos com esse crime, que começou com um simples bate-papo virtual.

O turismo sexual caracteriza-se pelo deslocamento transitório de pessoas, individualmente ou em grupos, cujo fim principal da viagem é o sexo. Quando se fala em turismo sexual não estamos falando de viagens românticas, mas sim de "uma complexa rede de agentes e logradouros que utilizam o estímulo do prazer sexual como elemento agregador da atividade turística" (CEZAR, 2007. p. 35), isto é, o atrativo da viagem é a exploração e o abuso sexual, para, através disso, obter consideráveis ganhos financeiros.


2 A criminologia interdisciplinar capaz de definir e explicar o delito na era moderna.

A transição da criminologia clássica para a moderna criminologia possui como característica marcante a ampliação e problematização de seu objeto de estudo. Enquanto na era clássica os estudos tinham como objetivo a intervenção e compreensão do delinqüente, a moderna criminologia ampliou o horizonte de pesquisas. O delito deixou de ser apenas uma entidade jurídica que deve estar contida na lei promulgada, tornada pública para que todos sintam ameaça da pena, para tornar-se um fenômeno social e humano, produzido tanto por fatores psicológicos, como também influenciado por agentes biológicos, sociais e físicos. "Para a criminologia o delito se apresenta, antes de tudo, como problema social e comunitário, que exige uma determinada atitude (empatia) para se aproximar dele". (MOLINA; GOMES, 2008. p.69)

O delinqüente, que para os positivistas era apenas um pecador que, dotado de livre-arbítrio, optou pelo mal, deixou de ser uma realidade biopsicopatológica, para ser examinado através de uma perspectiva biopsicossocial, um ser humano como qualquer outro.

[O delinqüente] é o homem real e histórico do nosso tempo, que pode acatar as leis ou não cumpri-las por razões nem sempre acessíveis a nossa mente; um ser enigmático, complexo, torpe ou genial, herói ou miserável, porém, em todo caso, mais um homem como qualquer outro. (MOLINA; GARCIA, 2008 p. 73)

O homem é um ser aberto, comunicativo, inserido dentro de um contexto social estudado e compreendido. Portanto, o comportamento delitivo será uma resposta previsível, típica e normal.

O abandono da vítima é um dos problemas mais difíceis de serem enfrentados na sociedade contemporânea. Sua reintegração é, deploravelmente, uma meta longínqua e que deve estar acompanhada da solidariedade e empatia da sociedade.

Um indivíduo torna-se vítima a partir do momento que sofre as consequências negativas de um fato traumático, especialmente, de um delito. A vitimização pode ocorrer direta ou indiretamente com os danos materiais e/ou psicológicos e sociais de um delito, ou até mesmo através da intervenção do sistema jurídico.

Na moderna criminologia, o controle social ganhou grande importância. Mais importante que a interpretação das leis é analisar o processo de aplicação das mesmas à realidade social, conhecer o a sociedade no qual esta lei vigora e buscar a sua eficácia dentro de tal cultura.

O controle social, entendido como o conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais responsáveis pelo submetimento dos indivíduos as normas de socialização, é de extrema relevância para inserir o indivíduo dentro de uma cultura, para que ele seja capaz de compreender as normas de conduta. Quando as instituições informais (família, escola, igreja, entre outras) falham, a intervenção torna-se responsabilidade das instituições formais (polícia, judiciário...), para que seja mantido o controle da sociedade dentro do ordenamento jurídico.

O delito é um fenômeno humano e cultural, individual e social, por isso, necessita de um complexo, plural e heterogêneo sistema interdisciplinar para a sua compreensão. A criminologia é uma ciência capaz de explicar o delito na modernidade, pois adota o princípio interdisciplinar como o método mais eficaz na compreensão do delito. Esse método é formado por uma superestrutura científica, capaz de adotar os diversos olhares em seu diagnóstico para compreender e explicar todas as dinâmicas e variáveis do crime. Funciona como uma grande rede de "retroalimentação", capaz de integrar e coordenar todas as informações obtidas pelas ciências auxiliares (psicologia, sociologia, biologia, psiquiatria, entre outras), eliminando possíveis contradições internas, onde cada conclusão obtida é enriquecida ao ser contrastada com as conclusões de outras disciplinas. (MOLINA; GOMES, 2008 p. 36)

Compreender o funcionamento mental do ser humano é de extrema relevância para a ciência jurídica. Desta forma, torna-se crucial o auxílio da psicologia para explicar o fenômeno delitivo. Thomé Ferreira (2006 p.11) destaca alguns questionamentos importantes que chegam às mesas dos operadores do Direito e que somente com o amparo e assistência da psicologia é possível chegar às respostas ideais: "O que leva alguém a cometer um crime? Quais suas motivações inatas e aprendidas? O que pode ser feito, em termos psicológicos, para que o crime seja minimizado na sociedade?" Essas questões, intrigantes no orbe jurídico, servem de acesso para o ingresso da psicologia no Direito.

A sociologia surgiu no século XIX após alguns acontecimentos que afetaram diretamente as bases da sociedade e alteraram a convivência dos seres humanos. Dentre os acontecimentos fundamentais, destacam-se a revolução francesa (acontecimento de ordem política), a revolução industrial (de ordem econômica) e o renascimento (de ordem cultural) que colocou o homem no centro do universo, trocando a teoria Teocêntrica pelo Antropocentrismo.

Após todas essas transformações, tornou-se necessária uma ciência para estudar a sociedade. Dessa forma, surgiu a sociologia como uma "interpretação científica da realidade social". (SELL, 2002 p. 29)

Para compreender o delito, delinqüente e a vítima é extremamente relevante o estudo do contexto social, do ambiente dos fatos e dos protagonistas, da sociedade onde cada um está inserido. E a ciência capaz de tal compreensão e de criar normas para o controle social é a sociologia.

O ser humano é uma complexa realidade biopsicossocial, e seu caráter de delinqüente conta com um importante e inquestionável substrato biológico. É inerente a natureza humana algumas características de maior destaque em alguns seres humanos do que em outros. Por exemplo: a probabilidade de nascer um homem alto e forte em uma família onde só tem homens altos e forte, do que em uma família onde predominam homens de menor estatura. Porém, é importante destacar que o suporte biológico do ser humano "não decide de forma fatal a conduta do mesmo. É somente a matéria-prima, o ponto de partida, que interage com os sutis fatores psíquicos e sociológicos [...]". (MOLINA; GOMES, 2008 p.158). Por isso, toma sentido o auxílio da biologia para a criminologia.

Somente pode ser culpado e responsabilizado por algo quem é "normal". Ferreira, apontado por Thomé Ferreira (2006 p.43), afirma que podemos conceituar normal como "aquilo que é segundo a norma. Já para a loucura, destaca-se o estado ou condição de louco; falta de discernimento, absurdo, insensatez, imprudência, temeridade; tudo que foge às normas, que é fora do comum".

O elemento mais essencial para que se possa ser considerado patologia é o dano causado pelo indivíduo. Esse dano pode ser, por exemplo, o cometimento de um ato criminoso, pela conseqüente falta de controle dos próprios impulsos. Dessa forma, percebe-se a relação da psiquiatria (que trata do criminoso patológico) e a criminologia.

Sigmund Freud criou no séc. XIX, de maneira célebre, uma ciência capaz de tratar, e até mesmo curar através do simples ato de ouvir um paciente, que buscava uma liberação emocional intensa de um momento traumático. Tal ciência, denominada psicanálise, faculta informações relevantes sobre o funcionamento psíquico do homem. Ela explica de que forma nosso inconsciente, responsável pelos desejos e impulsos instintivos, influencia nossa mente. Porém, é controlado pelo ego, que faz a "mediação" entre nossos desejos impulsivos e a nossa personalidade moral de proibições sociais.

Quando o controle não ocorre e o Id (parte inconsciente da mente) ultrapassa os limites das proibições, pode ocorrer um delito. Por exemplo, a agressividade é um impulso inconsciente, proibido pelo Superego, e controlado pelo nosso Ego, que busca adaptar os desejos do Id com as possibilidades oferecidas pelo meio externo. Dessa forma, fica evidente a relação entre a psicanálise a criminologia. Thomé Ferreira (2006 p.19).


3 A vitimização.

A vitimização é um processo pelo qual uma pessoa sofre as consequências negativas, direta ou indiretamente, de um fato traumático, principalmente um crime, um delito. Esse complexo e dinâmico processo de vitimização deve ser analisado através de fatores sociais, pessoais e situacionais, vulneráveis para o seu acontecimento, e através dos impactos psíquicos ocasionados na vítima, isto é, o delito deve ser analisado de maneira interdisciplinar como a criminologia nos faculta. "Por que o crime é tão devastador, tão difícil de superar? Por que o crime é essencialmente uma violação do ser, uma dessacralização daquilo que somos, daquilo em que acreditamos, de nosso espaço privado" (ZEHR, 2008 p. 24). O mesmo autor destaca a dramaticidade causada pelo crime ao perturbar dois pressupostos essenciais: a crença de uma autonomia pessoas, agora violada, e a credulidade de que o mundo é um lugar ordenado e dotado de significado. Portanto, a vitimização é um complexo onde o fato traumático pode ocasionar graves lesões psíquicas.

A vitimização possui, basicamente, duas classificações: vitimização primária e vitimização secundária.

A vitimização primária é compreendida como o modo que um indivíduo sofre os efeitos (materiais ou psíquicos) traumáticos de um fato delituoso, seja de forma direta ou indireta.

Na vitimização secundária encontram-se os danos causados pela intervenção do sistema legal na vítima do delito. Tais danos podem ser superiores aos causados na vitimização primária, pois o indivíduo relembra os fatos, geralmente de maneira traumática. Além disso, é possível que esteja frente-à-frente com delinqüente, o que pode agravar ainda mais a lesão psíquica. Em casos de violação contra a liberdade sexual na infância, as lesões psíquicas na vitimização secundária são ainda mais graves. "A reação da criança depende não só da violência per si, mas também, e em grande medida, do processo que tem curso após o ato violento" (GONÇALVES, 2005 pg. 290).

Medo e vergonha são algumas das consequências mais comuns na vitimização secundária. Quando se agrava, pode ocasionar transtornos psíquicos que alteram o modo de vida da pessoa e sua personalidade. Além disso, devido a constante vivência do fato traumático e conseqüente transtorno mental, a vítima pode, em casos extremamente graves, futuramente tornar-se delinqüente devido ao fenômeno que alterou o funcionamento de sua mente.

O sistema legal é detentor da justiça. Portanto, não se pode deixar nas mãos da vítima a responsabilização e punição ao delinqüente, pois a paixão ocasionada pelo delito pode instrumentalizar a vingança e a represália, retirando o caráter de racionalidade. Portanto, deve tal sistema penalizar de maneira imparcial, pública e desapaixonada o delinqüente, e respeitar o máximo possível os sentimentos e emoções da vítima, compreendê-la e tentar evitar uma revitimização mais grave do que a vitimização primária.

Através dessa análise interdisciplinar do delito que a criminologia moderna é capaz de realizar, pode-se concluir que é responsabilidade do Estado reconhecer a situação atual da sociedade, da vítima e do delinqüente, e criar maneiras de investigação que objetivem neutralizar qualquer tipo de vitimização secundária. Essas investigações devem fazer com que a vítima e a testemunha lembrem o caso de maneira pacífica, como um fato que aconteceu, está na biografia de vida, mas que deve ser apenas lembrado quando necessário para que se possa chegar à conclusão final do processo e a punição do responsável, e não revivido com as mesmas emoções e transtornando mentalmente os envolvidos.


4 A construção social do conceito de infância

O conceito de infância tal qual é compreendido na atualidade, nem sempre vigorou nas sociedades humanas. Não havia, em épocas anteriores ao século XVI, lucidez e clareza sobre as etapas da vida humana. Não era admitida a existência autônoma da infância como uma categoria diferenciada, de pessoas em fase de desenvolvimento psicológico. Crianças e adolescentes eram tratados como "adultos inferiores". Bastava passar o período de dependência física da mãe para serem tratados como adultos. Porém, somente a partir do século XIX doutrinadores e estudiosos passaram a se preocupar com as crianças.

Com a publicação, na França em 1960 e nos Estados Unidos em 1962 do livro de Ariès sobre a "História social da infância e da família", o autor nos trouxe um dos primeiros estudos sobre a infância, fase de desenvolvimento psíquico. Toma sentido a assertiva do autor, aludido por Nacsimento, Brancher e Oliveira (s/d, p.4):

Durante a Idade Média, antes da escolarização das crianças, estas e os adultos compartilhavam os mesmos lugares e situações, fossem eles domésticos, de trabalho ou de festa. Na sociedade medieval não havia a divisão territorial e de atividades em função da idade dos indivíduos, não havia o sentimento de infância ou uma representação elaborada dessa fase da vida.

A arte e a literatura exerceram extrema importância histórico-social no conceito de infância, pois foi a partir de criações artísticas de imagens e livros, principalmente a partir do séc. XVII, que a família passou a ser retratada de forma significante. Assim, um sentimento de compaixão foi aos poucos sendo criado e a criança e o adolescente começavam a ser reconhecidos como seres dependentes - tanto fisicamente no trabalho, como na vida social e cultural - dos seus pais, que tinham a responsabilidade da criação e educação dos mesmos até atingirem um estágio de vida onde seriam capazes de sobreviverem com as "próprias forças".

A palavra infância passou a designar a primeira idade de vida: a idade da necessidade de proteção, que perdura até os dias de hoje. Pode-se perceber, portanto, que até o século XVII, a ciência desconhecia a infância. Isto porquê, não havia lugar para as crianças nesta sociedade. Fato caracterizado pela inexistência de uma expressão particular a elas. Foi, então, a partir das idéias de proteção, amparo, dependência, que surge a infância. As crianças, vistas apenas como seres biológicos, necessitavam de grandes cuidados e, também, de uma rígida disciplina, a fim de transformá-las em adultos socialmente aceitos.

Na atual sociedade contemporânea, a divisão de faixas etárias entre crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos encontra-se acentuada pelo alto nível dos estudos realizados sobre cada etapa da vida, e sobre a evolução psicológica que transcorre na vida das pessoas através da idade e experiência de cada ser humano. O conceito de infância depende da cultura de cada sociedade. Porém, é consenso a afirmação de que crianças e adolescentes não são seres inferiores, seres incapazes, mas sim, pessoas em desenvolvimento psíquico, físico, biológico e intelectual. Correspondem a uma mente aberta para aprendizados. Época onde os conceitos e princípios aos poucos são armazenados na consciência, onde "tudo é novo", onde busca-se o aprendizado através de uma aguçada curiosidade.

O "sucesso" na formação da pessoa em fase de desenvolvimento depende do contexto social em que essa pessoa está inserida, depende dos pais e de toda a família, da escola na qual a criança e/ou o adolescente busca uma formação e dos amigos. Enfim, existe uma relação do ser humano com o meio social em sua formação. Torna-se relevante a afirmação de Sarmento, referido por Nascimento, Brancher e Oliveira (s/d p. 13/14)

O imaginário social é inerente ao processo de formação e desenvolvimento da personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece no contexto social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições sociais e culturais são heterogêneas, mas incidem perante uma condição infantil comum: a de uma geração desprovida de condições autônomas de sobrevivência e de crescimento e que está sob o controle da geração adulta.

Quando as instituições informais (família, escola, igreja...) conseguem transmitir as normas de conduta e de convivência para um ser humano em fase de desenvolvimento psicológico, as instituições formais atuam apenas para reiterar algo já exposto, não havendo necessidade de opressão e sanção. No entanto, "o princípio do parens patriae legitima que o Estado assuma a responsabilidade pela criança nos casos em que a família falha seu papel. E o princípio do melhor interesse da criança enfatiza como primordial o bem-estar e interesse da criança" (RAMIRES; PASSARINI; SANTOS, 2009 p. 216). Em síntese, a família, a escola, a sociedade e a infra-estrutura do bairro onde a criança convive são de extrema relevância na formação deste indivíduo, para que ele possa acatar com passividade e tranqüilidade as normas de socialização.


5 A vulnerabilidade das crianças e dos adolescentes para se tornarem vítimas de abuso sexual.

Algumas características físicas, biológicas e psicológicas de um ser humano, sua sociedade, sua vizinhança, sua rotina diária, seus costumes, seu sexo e sua idade podem torná-lo mais ou menos vulnerável a vitimização do que outro.

Não se pode aceitar, na criminologia moderna, um conceito anacrônico onde afirma que existe vítima nata. A vitimização depende fundamentalmente de três fatores: sociais, pessoais e situacionais. Isso significa afirmar que o risco de vitimização não é genérico, mas sim, diferencial, variando de pessoa para pessoa.

Os déficits psico-biológicos – como idade, sexo e enfermidade – caracterizam a tipologia de vulnerabilidade pessoal da vítima na etiologia do delito. Na vulnerabilidade relacional destaca-se o desequilíbrio presente entre vítima e ofensor, e a dinâmica desintegradora em que degenera a interação (ex. relação entre homem e mulher). A vulnerabilidade contextual expressa a ausência de defesa específica de certas vítimas determinada pelas características vitimogenêsicas de um concreto habitat ou entorno: o bairro, a escola, o local de trabalho, o espaço virtual, etc. A vulnerabilidade social deriva de estruturas sócio-econômicas.

Após essa explanação, pode-se declarar que o crime não é um fato genérico, muito mesmo aleatório, ele é seletivo: existem vítimas mais ou menos vulneráveis, com maior ou menor grau de fatores de risco, locais apropriados para o cometimento do delito, um contexto social e uma relação entre delinqüente-vítima para que o crime ocorra. Enfim, depende de toda a gama de fatores psicológicos, biológicos e sociais.

O abuso sexual em crianças e adolescentes expressa uma visível relação de superioridade do adulto e, na grande maioria das vezes, também de confiança. É extremamente comum esses casos acontecerem dentro da família, caracterizando a violência intrafamiliar. "Por violência intrafamiliar entende-se aquela que ocorre entre os membros da família, nos diferentes subsistemas (conjugal, parental, fraternal), principalmente no ambiente da casa, porém, não exclusivamente nele" (MACIEL; CRUZ, 2009 p.89).

Os dados apontados na pesquisa realizada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde foram consultados 295 processos de abuso sexual contra crianças e adolescentes entre maio de 2003 e dezembro de 2008, demonstram a relação intrafamiliar entre delinqüente e vítima na grande maioria dos fatos:

A pesquisa acima mencionada comprova a vulnerabilidade de pessoas em desenvolvimento psicológico de se tornarem vítimas dentro da própria casa, onde o delinqüente encontra facilidade na realização do ato devido à confiança que nele a vítima depositava. Baseando-se na freqüência e incidência na ocorrência desse fenômeno delitivo intrafamiliar, é necessário intensificar estudos de caráter epidemiológico sobre a natureza dessa violência e, conseqüentemente, a análise de intervenções preventivas eficazes.

É importante olhar para esses delitos com as lentes da criminologia, isto é, assumir o caráter que esta ciência nos ensinou, levando em consideração toda a relação psicológica e social do delito, e examiná-lo com o auxílio de todas as ciências que possam nos ajudar a compreender o fato e os fatores causadores. Toma sentido a assertiva de Faleiros, apontado por Cezar (2007, p.44):

Ética, cultural e socialmente, a violência sexual contra crianças e adolescentes é uma violação de direitos humanos universais, de regras sociais e familiares das sociedades que ocorre. É, portanto, uma ultrapassagem dos limites humanos, legais, culturais, sociais, físicos, psicológicos. Trata-se de uma transgressão e, nesse sentido, é um crime, ou seja, um ato delituoso, delinqüente, criminoso e inumano da sexualidade da criança e adolescente.

Crianças e adolescentes possuem imaturo desenvolvimento psicológico, não compreendem as atividades sexuais, portanto, incapazes de dar qualquer tipo de consentimento e legitimidade ao agressor. Muitas vezes, pela relação de confiança, a vítima aceita o ato por não saber dos danos que este pode causar, e acreditar que está fazendo o certo, ou seja, obedecendo a seu pai ou padrasto, por exemplo, que na maioria das vezes, utiliza a vítima como um instrumento de descarga de seus impulsos, para aliviar suas tensões, tal como a droga para o drogadito. Fisicamente, as vítimas são passivas, oferecem poucas ou não oferecem chance alguma de defesa. Isso demonstra a vulnerabilidade das crianças e adolescentes a se tornarem vítimas de abuso sexual.

Quando ocorrem tais delitos, geralmente por falhas nas instituições informais como a família e a escola, por exemplo, surge a necessidade de uma atuação altruísta das instituições formais, que devem olhar o delito como um problema social e individual, aceitando o alto grau de vulnerabilidade da vítima para a revitimização, pois esta ainda está em desenvolvimento, está em fase de aprendizado educacional. O sistema legal deve ser capaz de colher informações essenciais da vítima sem aumentar os danos psíquicos ocasionados através da vitimização primária.

A intervenção judicial deve priorizar a proteção integral da criança, isto é, aceitar o seu caráter de possuir a mente em formação, tomando medidas que impeçam a continuação do abuso, viabilizando uma intervenção técnica adequada que a ajude a enfrentar tranquilamente o problema. É inadmissível, mas real e cotidiano, o sistema judicial investigar o fato, buscando a culpabilização e condenação do abusador, esquecendo a reintegração da vítima na sociedade que, quando criança ou adolescente, é vulnerável a alterações na personalidade e na conduta. Albornoz, ao relembrar citação própria em outra obra (2009, p.183), destaca as consequências psíquicas possíveis após a ocorrência de fatos traumáticos:

As vivências abusivas instauram na mente da criança um processo de distribuição de energia psíquica que faz com que a personalidade dos jovens se estruture a partir do forte impacto na adversidade e em função dele, abafando as chances de desenvolvimento da tendência natural de cada indivíduo.

Desta forma, justifica-se a necessidade de humanização no decorrer do processo judicial e, principalmente, na vida da vítima que, quando estiver em fase de desenvolvimento psicológico, poderá sofrer fortes alterações comportamentais. Segundo Ramires, Passarini e Santos (2009 p. 214), o impacto da violência doméstica na vida da criança e do adolescente atinge diretamente todas as esferas do desenvolvimento e organização do self, isto é, "as dimensões afetiva, cognitiva, social, física e neurológica [...]".

O depoimento da vítima do delito é de extrema relevância para a comprovação dos fatos. Porém, quando se trata de crianças e adolescentes, deve-se levar em consideração o atual estado psíquico e fazer com que a vítima não reviva o fato, mas sim, relembre. Reviver é o mesmo que revitimar; relembrar é fazer com que tal fato faça parte da biografia da pessoa com o mínimo de danos psíquicos possíveis.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul divulgou oficialmente um gráfico demonstrando que, na grande maioria das vezes, o abusador comete diversos vezes o delito até esse ser descoberto. Os dados foram obtidos através de uma consulta realizada em 295 processos de abuso sexual contra criança e adolescentes, entre maio de 2003 e dezembro de 2008:

Devido à confiança depositada no delinqüente e a não compreensão dos atos nos quais está sendo vítima, crianças e adolescentes, por vergonha e medo, não denunciam o caso que, quanto mais for reiterado, maior será o grau de vitimização. Essas pesquisas representam apenas uma aproximação da realidade, pois muitos casos não são levados ao judiciário e incrementam a cifra negra nas estatísticas. "[...] Os efeitos da violência são detectados a posteriore, e é comum que um tempo longo (anos, às vezes) transcorra entre a violência original e o aparecimento de um defeito observável" (GONÇALVES, 2005 p.288). Desta forma, destaco a relevância de professores, vizinhos e amigos de detectarem alterações no comportamento da criança, que pode estar sendo vítima de abuso sexual.

Para angariar a confiança da criança e/ou do adolescente, o abusador costuma permitir que sua vítima participe de atividades proibidas, criando um vínculo de afeto entre os dois. Analisemos um caso hipotético: a mãe pede para a filha de 5 anos de idade não sair de casa sozinha para comprar sorvete por que é perigoso. Juntamente com seu noivo, reitera o pedido para que seu ele também não autorize a criança a sair sozinha. No entanto, quando está sozinho com a sua enteada, o padrasto autoriza a criança a buscar o sorvete. Dessa forma, cria-se um vínculo muito forte entre os dois, uma ilusão de amor e carinho. A relação entre o casal (padastro e mãe) é muito boa. O padrasto aproveita a relação e o estado de tranqüilidade no contexto familiar e começa a acariciar a criança de apenas 5 anos em suas regiões genitais. A criança aceita, pois está em fase de desenvolvimento psicológico e não compreende as relações sexuais, acreditando que esse ato do padrasto é mais uma demonstração de carinho e amor. Aos poucos, o padrasto ganha confiança e, através dessa relação de superioridade, passa a abusar sexualmente de sua enteada por longos e duradouros períodos.

A criança cresceu. Agora com 12 anos, percebeu que estava sendo vítima de um abuso sexual, porém, reconhece o medo de relatar o caso. O silêncio das vítimas de abuso sexual ocorre devido a alguns fatores, tais como: ameaças físicas e psicológicas; o abusador aproveitou da imaturidade psíquica da vítima e a distorceu a realidade, fazendo com que a vítima, psicologicamente, se sentisse abusadora; medo de perda de atenção, carinho e afeto do abusador que "a ama tanto"; medo de também ganhar uma punição pelos fatos, afinal de contas, fez muitas vezes o que a sua mãe proibiu e o padrasto autorizou, como buscar o sorvete, por exemplo.

Além de vulnerável à vitimização, a puberdade precoce - caracterizada pelas alterações visíveis na fisiologia humana, como o aumento da massa corporal e o desenvolvimento de mamas – insere as crianças e adolescentes dentro de um grupo de maior risco de se tornarem vítimas de abuso, pois seu corpo torna-se ainda mais atraente. Além disso, seu desenvolvimento fisiológico precoce não é acompanhado pelo desenvolvimento psicológico, isto é, a criança não é capaz de discernir ou tomar qualquer atitude referente à sexualidade, mesmo que o seu corpo atingiu um grau elevado de desenvolvimento, pois ainda não compreendeu a alteração fisiológica que ocorreu. Por isso, torna-se relevante a atuação dos pais ou responsáveis de educarem seus filhos de acordo com o seu desenvolvimento, ter consciência e aceitar a realidade social, ou seja, aceitar o rápido desenvolvimento do corpo da criança na puberdade e fazer o máximo possível para fazer com que ela também compreenda seu desenvolvimento.

Reiteradamente, demonstro a vulnerabilidade do ser humano em desenvolvimento psicológico para se tornar vítima de um abuso sexual, e também, extrema vulnerabilidade para se tornar uma vítima do sistema legal que não vê o delito como seletivo (não leva em consideração os fatores sociais, biológicos, físicos, psicológicos...), mas sim, como um simples ato de desrespeito à norma jurídica vigente.


6 Depoimento Sem Dano: o projeto.

Idealizado pelo Juiz de Direito Dr. José Antonio Daltoé Cezar, o projeto pretende, nos casos de depoimento de crianças e adolescentes vítimas e/ou testemunhas de abuso sexual, retirá-los do ambiente repleto de formalismo de uma sala de audiências, que conta com a presença do juiz, dos representantes da acusação e da defesa, e geralmente também do abusador, e transferi-los para um ambiente propício para a inquirição.

Tal projeto prevê a criação de uma sala confortável, tranqüila e pacífica, um rapport ideal, onde o depoente possa sentir-se à vontade, sem constrangimentos. O ambiente receptivo dessa sala possui como principal "instrumento" o profissional de qualidade técnica e humana capacitado para determinada função. Isso tudo para evitar perguntas inapropriadas, agressivas e impertinentes por parte dos operadores do Direito e que possam aumentar significativamente a revitimização. Segundo Rovinski e Stein (2009 p.71) "[...] para facilitar a recuperação de fatos guardados na memória não bastam recursos cognitivos diferenciados de acesso a informação, mas, também, a criação de um ambiente acolhedor ao entrevistado".

A sala deve possuir um sistema de áudio e vídeo interligado com outra sala onde se encontram o Juiz, o Promotor, advogado, réu e serventuário da justiça, que acompanham o depoimento através do vídeo ou, se possível, através de um vidro onde só é possível a visão externa, e que podem interagir com o profissional que faz a inquirição pelo sistema de áudio que o entrevistador carrega consigo, impossibilitando o mesmo áudio por parte do entrevistado. A gravação é extremamente relevante, considerando que alguns detalhes cruciais só são detectados a posteriore, quando da análise do depoimento.

As crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, protagonistas no projeto "Depoimento Sem Dano", carregam consigo elevado abalo psíquico decorrente da vitimização. "Assim, a habilidade do entrevistador em abordar essa criança, conhecendo seus limites e potencialidades, é condição sine qua non para a obtenção de dados mais detalhados e acurados, evitando uma atitude sugestiva para a produção de prova esperada" (ROVINSKI; STEINS, 2009 p.72).

O profissional responsável pela inquirição é, geralmente, psicólogo ou assistente social, que deve estudar o processo, o meio social onde ocorreu o delito, a família do delinqüente e da vítima, e ser capacitado para, através da escuta da criança e/ou do adolescente, extrair os dados necessários sem causar danos psíquicos ao entrevistado.

Para que os objetivos do projeto sejam alcançados com maior facilidade, importante é que o técnico entrevistador – assistente social ou psicólogo – facilite o depoimento da criança. Para isso, é desejável que possua habilidade em ouvir, demonstre paciência, empatia, disposição para o acolhimento, assim como capacidade de deixar o depoente à vontade durante a audiência. (CEZAR, 2007 p. 66)

No acolhimento inicial (a chegada do depoente antes da audiência), o projeto pretende evitar o encontro do réu com a vítima. O responsável pela inquirição deve passar um certo tempo (que geralmente é cerca de 15 minutos) com o depoente para garantir a sua confiança e, principalmente, observar o seu estado psíquico, objetivando a tranqüilidade da vítima ou testemunha para que possa relatar os fatos com todas as informações essenciais.

Após, presta o técnico à criança e seu responsável os esclarecimentos necessários sobre os papéis que cada um deles exercerá durante a realização do depoimento – Juiz, Promotor de Justiça, Advogado, técnico e depoente. Deve também o profissional da inquirição explicar-lhes o motivo dela (vítima ou testemunha de abuso sexual) estar protegida.

Durante a inquirição, é dever do profissional responsável manter seu próprio controle emocional e deixar a vítima exalar seus sentimentos e emoções, pois a gravação em áudio e vídeo poderá ser anexada ao processo, para que os que ele apreciarem possam observar as emoções do depoente, muitas vezes, impossíveis de serem repassadas em palavras escritas.

É extremamente relevante, além do contexto onde ocorreu o fato, examinar o intervalo de tempo do momento do fato até a inquirição. Esse é um dos principais desafios a serem enfrentados, pois na grande maioria dos casos, esse intervalo de tempo é muito grande, e a vítima ou testemunha acaba esquecendo-se de algumas situações essenciais para caracterizar o abusador como criminoso e condená-lo pelo delito.

Após o término da audiência, o técnico permanece com a criança ou adolescente e sua família, com o sistema de gravação desligado, realizando a devolução do depoimento e coleta de assinaturas de maneira responsável e tranqüila, para que, se caso necessário o retorno do depoente, este deve ter a certeza da segurança e responsabilidade do "Depoimento Sem Dano", deixando uma boa impressão capaz de abrir a possibilidade para posterior contato.

Daltoé Cezar (2007 p. 62), idealizador do projeto, destaca alguns itens como sendo os principais objetivos do projeto:

Redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou testemunha; a garantia dos direitos da criança/adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, quando, ao ser ouvida em Juízo, sua palavra é valorizada, bem como sua inquirição respeita sua condição de pessoa em desenvolvimento; Melhoria na produção de prova produzida.

De maneira célebre, o ilustre idealizador do projeto "trocou as lentes dos óculos" do Direito que a maioria dos juízes possuem, com uma visão estática e normativa, que caracterizam o crime apenas como algo ilícito, que foge as normas da constituição. Daltoé Cezar soube reconhecer o contexto social de cada fato e as condições físicas e mentais da vítima, isto é, colocou as "lentes" da criminologia, que trata o crime como um problema individual e social, e que busca em disciplinas auxiliares argumentos que possam ajudar a entender e comprovar os fatos.


7 Considerações Finais.

O direito, como ordenamento jurídico, é estático, normativo e dogmático. Ao ingressar dentro desse sistema, os operadores do direito passam a agir de acordo com esse dogmatismo e, geralmente, não buscam auxílio em outras disciplinas para chegar às soluções eficazes nos mais diversos tipos de processos.

Daltoé Cezar soube reconhecer as dificuldades nas soluções de conflito que o caráter mecânico do direito não consegue suplantar. Soube também, de maneira célebre, reconhecer a situação da política brasileira na atualidade. Proselitismos políticos e discursos de tom pernóstico substituem ações plausíveis que objetivam o bem comum, transformando a democracia decaída em demagogia das multidões rude e ignaras.

Ao elaborar uma sala para inquirição de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de abuso sexual, com uma decoração diferenciada, brinquedos, e com o auxílio de um psicólogo ou assistente social para realizar a entrevista, Daltoé Cezar reconhece o estado de desenvolvimento psicológico que se encontra a criança e, principalmente, reconhece a gravidade do crime de abuso sexual e a importância da reinserção da vítima na sociedade.

Destaca-se o fato desse projeto ir ao encontro dos três suportes básicos do novo modelo de Ciência Penal: comunicativo – por buscar o contato de profissionais especializados com a vítima e/ou testemunhas, para que o dano psicológico seja o menor possível -, resolutivo – por objetivar a resolução do problema na sociedade – e participativo – pois prima pela importante participação da vítima na culpabilização do delinqüente.

Em síntese, o "Depoimento sem Dano" é a inovação necessária no sistema jurídico atual, pois olha o crime como um fenômeno individual e coletivo, reconhece a necessidade de outras disciplinas para sua explicação e compreensão e objetiva diminuir ao máximo possível a vitimização secundária, respeitando a dignidade da pessoa humana e, desta forma, passa a atender as exigências da sociedade moderna, contribuindo de maneira significativa para tornar o judiciário um sistema íntegro, leal e coerente com os cidadãos.


Referências Bibliográficas

ALBORNOZ, Ana Celina Garcia. Perspectivas no Abrigamento de Crianças e Adolescentes Vitimizados. In: ROVINSKI, Sonia Liane Reichert e CRUZ, Roberto Moraes. Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e processos de intervenção. 1ªed. São Paulo: Vetor, 2009.

BRITO, Leila Maria Torraca (org). Temas de Psicologia Jurídica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Relume Durumá, 2002.

CEZAR, José Antonio Daltoé. Depoimento Sem Dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. 1ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

ESPAÇO VITAL. Total de internautas cresce 112% em quatro anos, aponta IBGE. Arquivo de notícias. Disponível em: <http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=20538>. Acesso em: 09 set. 2010.

FERREIRA, Vinicius Renato Thomé. Psicologia Aplicada ao Direito. Passo Fundo: Editora Imed, 2006.

GONÇALVES, Hebe Signori Gonçalves. Violência contra a criança e o adolescente. In: GONÇALVES, Hebe Signori Gonçalves e BRANDÃO, Eduardo Ponte (org). Psicologia Jurídica no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro: NAU, 2005.

MACIEL, Saidy Karolin; CRUZ, Roberto Moraes. Violência Psicológica Contra Crianças nas Interações Familiares: Problematização e Diagnóstico. In: ROVINSKI, Sonia Liane Reichert e CRUZ, Roberto Moraes (org). Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e processos de intervenção. 1ªed. São Paulo: Vetor, 2009.

MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de e GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos; introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 6ªed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

NASCIMENTO, Cláudia Terra do; BRANCHER, Vantoir Roberto; OLIVEIRA, Valeska Fortes. A Construção Social do Conceito de Infância: algumas interlocuções históricas e sociológicas. UFSM. Disponível em: <http://www.ufsm.br/gepeis/infancias.pdf>. Acesso em 11. Set. 2010

RAMIRES, Vera Regina Rohnelt; PASSARINI, Daniele Simone; SANTOS, Larissa Goulart dos.O Atendimento Psicológico de Crianças e Adolescentes Solicitado pelo Poder Judiciário.In: ROVINSKI, Sonia Liane Reichert; CRUZ e Roberto Moraes (org). Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e processos de intervenção. 1ªed. São Paulo: Vetor, 2009.

ROVINSKI, Sonia Liane Reichert; STEIN, Lilian Milnitsky. O Uso da Entrevista Investigativa no Contexto da Psicologia Forense. In: ROVINSKI, Sonia Liane Reichert e CRUZ, Roberto Moraes. Psicologia Jurídica: perspectivas teóricas e processos de intervenção. 1ªed. São Paulo: Vetor, 2009.

SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Durkheim, Weber, Marx. 3ªed.. São Paulo: Edifurb, 2004.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco entre o crime e a justiça. Trad. ACKER, Tônia Van. São Paulo: Palas Athena, 2008.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEGAZZO, André Frandoloso. Depoimento sem dano. O olhar interdisciplinar na compreensão do delito e o respeito à dignidade da pessoa humana na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2854, 25 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18930. Acesso em: 24 abr. 2024.