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O escárnio de Cachoeira e o erro do populismo midiático

O escárnio de Cachoeira e o erro do populismo midiático

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Cachoeira não queria depor na CPI. Pediu dispensa, mas não lhe foi deferido o pedido. Foi à CPI e nada disse. Trata-se de um direito fundamental de todo acusado. Apesar disso, nada disso é respeitado pelo populismo midiático.

A problemática do delito não é algo alheio ou raro na vida da população brasileira (é muito difícil que alguém não tenha sido ou não tenha um conhecido que tenha tido a experiência da vítimização). Desde que a mídia se apoderou com “unhas e dentes” do (rentável, lucrativo) discurso criminológico o assunto nunca mais saiu da pauta do cotidiano das televisões, dos jornais, dos políticos etc. Minuto a minuto o tema, sendo recorrente, volta para os diálogos, telejornais, manchetes, projetos legislativos, leis novas etc. O sentimento de temor (medo) e de desproteção, pelo que dizem as pesquisas, aumenta a cada dia.

O inconsciente (ou imaginário) coletivo tem algumas convicções formadas sobre a matéria. A primeira, evidentemente, é a de que nenhum crime pode ficar sem castigo. O castigo seria imprescindível não só para “vingar” o que foi feito (fato ofensivo), senão também para evitar que o criminoso repita o seu ato. O medo da reincidência constitui uma das fontes do desejo da retribuição. A população, em geral, no entanto, em tempos de populismo punitivo, não postula apenas o castigo devido, sim, cada vez mais reivindica castigos mais duros, “mão dura” contra o crime, fim da impunidade, corte de direitos e garantias fundamentais etc.

Se perguntássemos para a população qual é o tratamento mais adequado para quem sofreu um aneurisma, claro que o cidadão comum diria: “não tenho a mínima ideia”. Com certeza, ademais, nunca diria que um curandeiro seria a pessoa indicada para solucionar o problema citado. Sobre o mundo da medicina complexa o indivíduo comum não costuma opinar, por falta de conhecimento específico. Não é isso o que acontece, no entanto, no campo da criminalidade. Todo mundo, incluindo, portanto, os jornalistas, tem uma receita (infalível) para a “cura” desse “mal”. Prisão, castigo duro, humilhação, degradação da preso, abolição das garantias penais, tortura etc. Tudo que possa servir de instrumento de “vingança” vem à cabeça do cidadão comum (daí a demanda forte por pena de morte, prisão perpétua etc.).

A criminologia midiática, nesse sentido, também é bastante pródiga em sugerir ou afirmar coisas disparatadas (com o escopo de alcançar “ibope”). Cachoeira não queria depor na CPI. Pediu dispensa, para exercer o seu direito silêncio (que é constitucional). Não lhe foi deferido o pedido. Foi à CPI e nada disse. Trata-se de um direito fundamental de todo acusado. Hoje, embora ainda não superada totalmente a fase da inquisição, ninguém é obrigado a falar nada como acusado. Ninguém é obrigado a se autoincriminar (conforme a Convenção Americana de Direitos Humanos). Apesar de todas essas garantias constitucionais e internacionais já pertencerem à nossa cultura jurídica, nada disso é respeitado pelo populismo midiático.

Vejamos o que afirmou um editorial do Correio Braziliense (23.05.12, p. 14): “A cidadania levou ontem (frente ao exercício do direito ao silêncio pelo acusado Cachoeira) um tapa no rosto e se descobriu impotente, abandonada”. A linguagem é terrorífica. Coloca toda população na posição de vítima. O exercício do direito constitucional ao silêncio constitui (para esse populismo midiático) uma grave “ofensa”, um “mal” que deve ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro. Coisa do diabo e não de Deus (consoante Maffesoli). Aliás, a proposta final do editorial foi a seguinte: “É hora de colocar uma vírgula no direito que garantiu o silêncio de Cachoeira: se o crime é contra o bem público, o acusado não pode se calar impunemente ante a autoridade. Elementar”. Extirpação, pura e simples, da garantia, que constitui cláusula pétrea no nosso sistema constitucional. Do ponto de vista jurídico, aberração maior é impossível. Mas nossa crítica contra esse disparate não pode ser unicamente negativa.

É preciso reconhecer que o crime organizado dos poderosos econômicos, sobretudo quando envolve outros poderosos do poder público (políticos, juízes, fiscais, policiais etc.), é algo muito grave, que pode afetar inclusive a governabilidade e o próprio sistema democrático de direito. O crime organizado atinge as raízes da democracia (Ferrajoli). Ninguém pode imaginar qualquer tipo de discurso que defensa a impunidade desses específicos delitos. Ao mesmo tempo, se para punir esses criminosos a Constituição brasileira prevê uma determinada forma, um específico procedimento (regido pelo devido processo legal), constitui um renomado disparate pretender a (impostergável) punição do réu com desrespeito a esses direitos e garantias fundamentais.

Todos queremos a proteção do Estado, mas também não podemos nunca esquecer de postular a proteção contra o Estado, que constitui fonte de muitos abusos e arbitrariedades. Em nome do eficientismo penal não podemos abandonar as garantias constitucionais que configuram termômetros de civilidade. As duas coisas não são incompatíveis. O Estado conta com mil maneiras racionais e válidas de provar os delitos organizados dos poderosos econômicos, que não podem mesmo ficar impunes. Não podemos abandonar o velho e bom discurso formulado por Beccaria de que o direito penal constitui também garantia do réu contra os abusos do Estado. O populismo midiático se equivoca redondamente quando, para reivindicar mais eficiência da persecução penal, sugere o corte dos direitos constitucionais. Não se pode cobrir um corpo descobrindo outro, quando há cobertor para os dois. A proteção do Estado (punindo os criminosos) é fundamental, tanto quanto a proteção contra o Estado. O populismo penal midiático comete o mesmo erro antes cometido por alguns criminólogos críticos que ignoram a função protetiva (e civilizatória) dos direitos e das garantias. É preciso que o populismo penal midiático resolva, de uma vez por todas, seu dilema entre a barbárie e a civilização.


Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

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GOMES, Luiz Flávio. O escárnio de Cachoeira e o erro do populismo midiático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3290, 4 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22153. Acesso em: 16 abr. 2024.