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Tráfico de drogas e substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.

Uma análise evolutiva do tratamento da matéria no ordenamento jurídico brasileiro

Tráfico de drogas e substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. Uma análise evolutiva do tratamento da matéria no ordenamento jurídico brasileiro

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Analisa-se historicamente o tratamento do ordenamento jurídico brasileiro à vedação de substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos aos condenados por crime de tráfico de drogas.

Sumário: INTRODUÇÃO 1 PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS 1.1 ORIGEM DAS PENAS E DO DIREITO DE PUNIR 1.2 EVOLUÇÃO DAS PENAS 1.3 ORIGEM DAS PENAS ALTERNATIVAS 1.4 CONCEITO 1.5 NATUREZA JURÍDICA 1.6 CARACTERÍSTICAS1.6.1 Autonomia 1.6 2 Substitutividade 1.6.3 Não Cumulatividade 1.6.4 Condicionalidade 1.6.5 Obrigatoriedade de Aplicação 1.7 REQUISITOS 1.7.1 Requisitos Objetivos 1.7.2 Requisitos Subjetivos 1.8 ESPÉCIES 1.8.1 Pena Substitutiva de Multa 1.8.2 Prestação Pecuniária 1.8.3 Prestação Inominada 1.8.4 Perda de Bens e Valores 1.8.5 Prestação de Serviços à Comunidade ou a Entidades Públicas 1.8.6 Limitação de Fim de Semana 1.8.7 Interdição Temporária de Direitos 1.9 CONVERSÃO 2 TRÁFICO DE DROGAS 2.1 DEFINIÇÃO DE DROGA 2.2 TRÁFICO DE DROGAS E AUMENTO DA VIOLÊNCIA 2.3 ANÁLISE DO TIPO PENAL 2.3.1 Conceito do Crime de Tráfico de Drogas. 2.3.2 Objetividade Jurídica 2.3.3 Sujeitos do Delito 2.3.4 Conduta Criminosa 2.3.5 Elemento Subjetivo 2.3.6 Consumação e Tentativa 3 ANÁLISE EVOLUTIVA DO TRATAMENTO DA VEDAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 3.1 NOÇÃO HISTÓRICA 3.2 POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 3.2.1 Efeitos da Decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 97.256/RS 3.3 INCONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO CONTIDA NA LEI DE DROGAS 3.3.1 Mitigação do Princípio Constitucional da Individualização das Penas3.3.2 Isonomia de Tratamento entre o Tráfico de Drogas e os Crimes Hediondos 3.3.3 Impossibilidade de Ampliação do Rol de Restrições Constitucionais Destinadas ao Tráfico de Drogas 3.4 CONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO CONTIDA NA LEI DE DROGAS 3.4.1 Existência de Outras Limitações à Substituição de Pena na Legislação Infraconstitucional 3.4.2 Outorga Constitucional ao Legislador Ordinário para Regular a Individualização da Pena 3.4.3 A Amplitude do Princípio Constitucional da Individualização das Penas 3.4.4 A Substituição de Pena para os Crimes Hediondos e o Tratamento Constitucional Conferido ao Tráfico de Drogas 3.5 Resolução nº 5 do Senado Federal.


INTRODUÇÃO

 O presente estudo fundamenta-se no §4 do artigo 33 e artigo 44 da Lei nº 11.343/06, no que tange à vedação abstrata de substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, objetivando analisar a evolução do tratamento dado à matéria pelo ordenamento jurídico brasileiro.

  Inicialmente conheceremos um pouco mais dos temas que interessam para compreender a problemática em que se baseia a pesquisa, iniciando pelo estudo das penas restritivas de direitos e todos os seus aspectos. Na sequência, trataremos do crime de tráfico de drogas e as consequências advindas de tais condutas. Compreendidos os dois principais assuntos inerentes ao tema, passaremos à análise do tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro à vedação de substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos aos condenados por crime de tráfico de drogas.

 Justifica-se a escolha do tema pela insegurança jurídica causada quando um assunto de tal importância é objeto de divergência. Se tal discussão se referisse a qualquer ilícito já seria um problema, já que um dos princípios do Direito brasileiro é o da segurança jurídica, mas o fato de a divergência recair sobre o interesse de punir do Estado, e mais, acerca de crime como o tráfico, considerado atualmente o motivo da prática da maioria dos outros crimes, torna o problema ainda mais grave e o tema merecedor de atenção social e importante objeto de estudo acadêmico.

 Por fim, para realização deste estudo foram utilizadas pesquisas bibliográficas tais como doutrinas, jurisprudências pátrias, leis específicas, bem como artigos científicos, concernentes ao assunto.


1 PENAS RESTRITIVAS DE DIREITOS

Antes de iniciar o estudo do mérito do tema ora proposto, é necessário conhecer os principais temas relacionados à discussão jurídica analisada. Dessa forma, iniciaremos com o exame das penas restritivas de direitos, a fim de compreendermos qual a dimensão do direito discutido.

1.1 ORIGEM DAS PENAS E DO DIREITO DE PUNIR

 Quando se investiga a origem da sociedade, duas são as correntes a respeito:

a) A primeira acredita que inicialmente o homem era só, e passou a viver em sociedade posteriormente;

b) A segunda diz que o homem nunca viveu sozinho, mesmo no início dos tempos.

Defensor da teoria de que convivendo socialmente o homem encontra-se em seu estado natural, Carrara (apud NUCCI, 2009, p. 59) afirma:

É falsa a transição de um estado primitivo, de absoluto isolamento, para outro, modificado e artificial. [...] O estado de associação é o único primitivo do homem; nele a própria lei natural o colocou desde o instante da sua criação.

 Noutro sentido, Cesare Beccaria acreditava que o homem vivia inicialmente sozinho e que só sacrificou sua liberdade, sujeitando-se a viver em grupo, por necessitar cada vez mais de coisas que só poderia conseguir através do esforço comum com os demais indivíduos da sua espécie. (BECCARIA, 2010).

 Qualquer que seja a origem da sociedade, o fato é que hodiernamente todos os seres humanos estão inseridos em algum conjunto de indivíduos que lhes concede benefícios e lhes impõe regras.

Para viver em conjunto, o homem dispõe de parte se sua liberdade em prol do bem comum. Há que se salientar que tal submissão só acontece porque o interesse almejado supera a parcela da liberdade sacrificada, conforme explica Beccaria (2010, p. 18):

Ninguém faz graciosamente o sacrifício de uma parte de sua liberdade apenas visando ao bem público. Tais fantasias apenas existem nos romances. Cada homem somente por interesses pessoais está ligado às diversas combinações políticas deste globo, e cada um desejaria, se possível, não estar preso pelas convenções que obrigam os demais homens.

 Para que a convivência em grupos fosse possível foram criadas regras. Mas o ser humano, naturalmente mau, sempre procurou tirar vantagem do próximo ou agredir a liberdade alheia visando atingir seus interesses individuais, fez-se necessária então a vinculação de sanções às regras.    

 Assim como existem regras morais e jurídicas, também existem sanções correspondentes a cada uma delas. O ideal seria que todo homem fosse coagido somente por sua consciência, mas existem aqueles que não se intimidam pela sanção moral ou sendo por ela atingidos carecem de remorso. Há ainda os que se consideram superiores e nenhuma importância dão à reprovação social de sua conduta e finalmente os que não compartilham do entendimento de imoralidade do ato, e visando punir tais comportamentos foi necessário organizar as sanções (REALE, 2002).

 As sanções organizadas e predeterminadas são a principal diferença entre o mundo ético e o jurídico. O sistema retributivo é uma característica essencial do sistema legal. Kelsen (1998, p. 23), em Teoria Pura do Direito, discorre acerca de sua importância:

Outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coativas, no sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas - particularmente contra condutas humanas indesejáveis - com um ato de coação, isto é, com um mal - como a privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros -, um mal que é aplicado ao destinatário mesmo contra sua vontade, se necessário empregando até a força física - coativamente, portanto.

[...] Finalmente, o conceito de sanção pode ser estendido a todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica, desde que com ele outra coisa não se queira exprimir senão que a ordem jurídica, através desses atos, reage contra uma situação de fato socialmente indesejável e, através desta reação, define a indesejabilidade dessa situação de fato.

[...] Nas ordens jurídicas modernas só muito excepcionalmente se encontram normas que são o sentido subjetivo de atos de legislação e que prescrevem uma determinada conduta sem que a conduta oposta seja tomada como pressuposto de um ato coercitivo que funcione como sanção.

 O instituto das sanções passou por algumas fases antes que chegasse ao sistema que conhecemos hoje. Verifica-se ao longo dos tempos uma passagem gradual da força bruta para a força jurídica. Nas sociedades de direito o Estado tem o monopólio da coação, mesmo quando não a aplica diretamente, é o responsável pela delegação deste poder ao sujeito responsável pela sanção.

 As ofensas ao direito podem ocorrer em diversas intensidades. A forma mais grave de ilícito jurídico é o ilícito penal. Ao Direito Penal é dada a função de zelar pelos valores fundamentais da sociedade. Capez (2008, p. 1) conceitua o Direito Penal como sendo:

O segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em conseqüência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.

 De outra forma, Reale (2002, p. 347) explica:

O Direito Penal, no sentido próprio do termo, é o sistema de princípios e regras mediante os quais se tipificam as formas de conduta consideradas criminosas, e para as quais são cominadas, de maneira precisa e prévia, penas ou medidas de segurança, visando objetivos determinados.

 Como já adiantou Miguel Reale em seu conceito de Direito Penal, dada à importância dos bens jurídicos que esse ramo do direito tutela, a ele coube a aplicação da sanção mais gravosa, a pena.

A pena é a maior invasão na liberdade do indivíduo admitida pelo direito. Exatamente por isso é que, para a sua aplicação, se mostra absolutamente necessária a observação da estrita legalidade, além de diversos princípios.

1.2 EVOLUÇÃO DAS PENAS

Nos primórdios da humanidade já existiam os castigos que, embora não fossem entendidos como penas da forma como vemos hoje, já constituíam a forma inicial desse instituto. Nessa época as punições eram aplicadas visando acalmar os deuses. Temendo a reprimenda divina pela infração cometida, esses povos expulsavam o indivíduo da sociedade, entregando-o à própria sorte, acreditando que se isso não fosse feito, toda a comunidade sofreria o castigo divino (NUCCI, 2009).

 Numa segunda fase, chamada vingança privada, quem pretendesse algo que outrem o impedisse de fazer teria que tratar de conseguir por si mesmo, utilizando sua força. O Estado nessa época não era suficientemente forte e nem dispunha de leis para dirimir todos os conflitos particulares, ficando cada um responsável pela satisfação de sua própria pretensão (CINTRA, 2009).

A justiça com as próprias mãos logo mostrou desvantagens, dentre elas, o extermínio do grupo, o círculo vicioso que levava à violência eterna, a injustiça causada pela vitória do mais forte e não do que tinha o direito, e muitas outras, deparando-se com a tendência destruidora dessa forma de justiça, tomou o soberano ou chefe da tribo a função punitiva, adveio assim a vingança pública (NUCCI, 2009).

  Com a vingança pública prevaleceu a ideia de que o infrator deveria sofrer o mesmo mal que causou, por conseqüência, essa etapa é marcada pelas penas cruéis, desumanas, sem qualquer finalidade pedagógica, de caráter unicamente retributivo. Por outro lado, é mérito desse período a difusão da ideia de que a pena aplicada deveria ser proporcional ao delito praticado. Também foi nessa época que nasceu uma forma mais segura de repressão às condutas indesejáveis, por não dar margem ao contra-ataque (NUCCI, 2009).

O Direito Romano, dividido em períodos, atribuía inicialmente o poder absoluto ao pater familias, este poderia aplicar as sanções que desejasse ao seu grupo, exercendo sobre eles o poder da vida e da morte. Na fase do reinado surgiu o primeiro estágio da vingança pública, tendo a pena um caráter sagrado. Na república, o Estado e a igreja se separaram, desaparecendo de vez a vingança privada e surgindo a composição como nova forma de dirimir conflitos. Cerne da Constituição do Império Romano, a Lei das XII Tábuas trouxe a ideia de igualdade entre os condenados, tão valorizada até hoje, também foi a época da concepção do elemento subjetivo do crime, diferenciando-se dolo e culpa, mas apesar de tantos avanços as penas ainda eram cruéis e de caráter unicamente repressivo (NUCCI, 2009; CINTRA, 2009).

O Direito Germânico concebia a pena como expiação religiosa. Com leis de caráter consuetudinário, seu sistema penal caracterizava-se pela vingança privada e pela composição. Utilizavam ainda uma espécie de pena peculiar chamada ordália ou juízos de Deus, onde o acusado passava por testes de culpa como caminhar pelo fogo, ser colocado em água fervente ou ser jogado em um lago com uma pedra amarrada aos pés, se sobrevivesse, era tido como inocente. Existiam ainda os duelos judiciários, onde o vencedor era declarado inocente (NUCCI, 2009).

 O Direito Canônico, que predominou na idade média, pregava o caráter sacro da punição. Estado e igreja eram um só e por isso mesmo a heresia era ato penalmente punível, o que levou à Santa Inquisição. Apesar dos flagrantes excessos desse período, sua grande contribuição ao direito penal foi ter trazido a ideia da pena como um instrumento para a regeneração do criminoso, até então desconhecida (NUCCI, 2009).

 Todas as formas de punição até então conhecidas além de serem cruéis eram desproporcionais aos delitos cometidos, o que levou Cesare Beccaria, fundador da corrente de pensamento denominada escola clássica, a escrever sua obra “Dos Delitos e Das Penas”, onde manifesta sua discordância com o sistema penal vigente.  Considerado um marco do Direito Penal, Dos Delitos e Das Penas prega um Direito Penal justo e humanitário, baseado na legalidade e isonomia, algo inovador para a época, conta com um texto ainda atual e nele podemos encontrar diversos princípios considerados fundamentais no Direito Penal brasileiro, como legalidade, reserva legal, proporcionalidade, dentre tantos outros (BECCARIA, 2010).

 Além de Beccaria, outros iluministas como Montesquieu, Voltaire e Feuerbach, contribuíram no processo de modernização do direito penal. Esses homens difundiram o pensamento de que as penas deveriam ser humanas e proporcionais, visando a prevenção do delito e preservando a sociedade do tiranismo, vindo essa ideologia a ser consagrada com a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 (NUCCI, 2009).

 A prisão como pena surgiu no século XVII, consolidando-se somente no século XIX, com as colônias americanas, antes disso esta era somente um meio de guardar o réu até o julgamento. Esse primeiro sistema de penas, chamado “Sistema Pensilvânico”, contava com isolamento completo do condenado, que ficava em cela individual e só recebia visitas dos membros da Associação de Ajuda aos Presos e do sacerdote. Também se exigia o silêncio, e o pouco trabalho permitido era manufaturado (NUCCI, 2009).

 O primeiro registro de pena com sistema progressivo data de 1840, na colônia penal de Norfolk, na Europa, onde eram distribuídos vales aos condenados de acordo com seu comportamento e rendimento no trabalho, vindo a pena a ser gradativamente diminuída de acordo com esses critérios, esse método permitia a passassem do regime inicial, que era de isolamento celular noturno e diurno, para outro em que lhe era permitido trabalhar durante o dia, mas que mantinha o isolamento noturno, até chegar ao último estágio, que era de liberdade condicional. Tempos depois, a Irlanda adotou esse sistema, aprimorando-o, e instituindo o conhecido “Sistema Progressivo Irlandês”, que serviu de inspiração para as legislações de muitos países, dentre eles o Brasil (MIRABETE, 1996).

1.3 ORIGEM DAS PENAS ALTERNATIVAS

 A tendência mundial é restringir cada vez mais a aplicação da pena privativa de liberdade, principalmente com a visão moderna de que a pena não goza de caráter apenas retributivo, mas também preventivo. No Brasil, apesar de existirem divergências, a posição majoritária é a de que foi adotada a teoria eclética (ou mista), sobretudo pela redação do caput do artigo 59, do Código Penal (BRASIL, 1940), de onde se extrai:

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

Dele podemos extrair a idéia de que a pena, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, tem finalidade dupla, qual seja: a de retribuir ao condenado o mal do crime com o mal da pena, e prevenção, tanto geral, na medida em que mostra a todos qual o castigo para os que daquela forma se conduzirem, como especial, evitando que aquele criminoso volte a delinqüir. 

A prisão constitui realidade violenta e na maioria dos casos não recupera o indivíduo. A conseqüência natural da falência do instituto das penas privativas de liberdade é o entendimento de que esta deverá ser usada o menos possível, como último recurso, no caso de delinqüentes perigosos, para os quais não haja outra solução (BITENCOURT, 1993).

Seguindo a tendência de reservar a pena privativa de liberdade apenas para os casos mais graves, pela constatação da ineficiência do encarceramento na recuperação de indivíduos, a comunidade jurídica mundial passou a criar em seus ordenamentos penas alternativas à de prisão. O primeiro registro de pena alternativa de que se tem notícia data de 1926, quando o Código Penal Soviético previu a pena de prestação de serviços à comunidade. Em 1960, a lei penal russa instituiu a pena de trabalhos correcionais, que poderia durar de um mês a um ano, e não era cumulada com prisão. Também adotaram penas semelhantes os Códigos Polonês, Búlgaro e Tcheco (BITENCOURT, 1993).

 A Bélgica em 1963, por circular ministerial, de modo experimental instituiu a pena de limitação de final de semana, consistente no recolhimento do condenado em estabelecimento penal das quatorze horas de sábado às seis horas da manhã de segunda-feira (DOTTI, 1998).

 Na Inglaterra, é implantada em 1972 a Community Service Order, tida como a mais bem sucedida experiência de pena alternativa, que consistia na obrigação do condenado se dedicar, durante os períodos de descanso, a uma atividade não remunerada de interesse comum. Muita elogiada pelos estudiosos, esta espécie de sanção surte efeito na medida em que conscientiza o condenado dos problemas sociais existentes à sua volta e o torna parte da solução, fazendo-o sentir-se necessário (DOTTI, 1998).

Em 1975, o Código Penal Francês introduziu a dispensa da pena, o adiamento da pena e a retirada da licença para dirigir, como novas alternativas à pena privativa de liberdade (DOTTI, 1998).

Na Alemanha, com o advento no Novo Código Penal em 1975, as penas privativas de liberdade inferiores a seis meses passaram a ser substituías por pena de multa, desde que circunstâncias especiais não tornasse indispensável a prisão. Foi incluída ainda previsão de medida na qual a pena de multa era substituída por admoestação, desde que o condenado se comprometesse a não reincidir (LUZ, 2000).

O sucesso de recuperação de indivíduos gerado pelas penas alternativas, principalmente na Inglaterra com a Community Service Order, levou diversos países a adotarem esse sistema, a exemplo de Luxemburgo, em 1976, Canadá, em 1977, Dinamarca e Portugal, em 1982, França, em 1983, entre tantos outros (LUZ, 2000).

 Com a edição da Lei n° 7.209/84 o Brasil também aderiu à tendência mundial de procurar substitutos penais à pena privativa de liberdade, todavia, a adoção de tal sistema pelo Brasil nasceu de motivações diferentes das que impulsionaram a reforma do sistema penal nos países já mencionados (BOSCHI, 2002).

 A adoção de penas alternativas tem o intuito de proteger a dignidade da pessoa humana, tendo em vista a incontestável falência do sistema carcerário na recuperação de indivíduos, mas a reforma penal brasileira tem sua explicação real na crise fiscal do Estado e incapacidade de arcar com o custo das penitenciárias. Apesar do sistema de penas alternativas fazer parte de uma onda de humanização do Direito Penal, no Brasil foi convenientemente adotado visando diminuir a população carcerária e os custos que a prisão acarreta (AZEVEDO, 2006).

Embora tenham sido adotadas em nosso país por motivos escusos, as penas alternativas se legitimam na medida em que colaboram para um sistema penal mais justo e proporcional. Principalmente com o falido sistema prisional, a prisão não se mostra a melhor sanção em face da prática de delito considerado menos grave, já que neste caso o encarceramento teria efeito contrário do desejado, atuando muitas vezes como dessocializador do indivíduo.

1.4 CONCEITO

 Primeiramente, devemos compreender que a denominação “Penas Restritivas de Direitos”, embora comumente utilizada para se referir às penas elencadas no artigo 43 do Código Penal, não é a correta, como explica Jesus (2009, p. 526):

Nem todas as penas previstas no artigo 43 do CP são restritivas de direitos., [...] A prestação de serviços à comunidade e a limitação de fim de semana são restritivas da liberdade do condenado. Além disso, o arresto (limitação de fim de semana) pode ser considerado forma de cumprimento da pena privativa de liberdade e não uma alternativa. Melhor seria que o nomen juris do artigo 43 do Código Penal fosse “penas alternativas.”

 Mesmo reconhecendo a impropriedade do termo, nos utilizaremos da nomenclatura “Penas Restritivas de Direitos” neste estudo, visto que é largamente conhecida como tal, sendo até mesmo a utilizada na jurisprudência pátria que endossa a celeuma jurídica aqui tratada.

 Superada essa fase, passaremos ao conceito. Poucos são os doutrinadores que conceituam essa espécie de pena. Temos como a mais completa definição de Nucci (2009, p. 294), que diz:

As penas restritivas de direitos são consideradas alternativas às privativas de liberdade, expressamente previstas em lei, tendo por fim evitar o encarceramento de determinados criminosos, autores de infrações penais consideradas mais leves, promovendo-lhes a reeducação por meio de restrições a certos direitos.

 A legislação não traz o conceito, limitando-se apenas a elencar as espécies de penas alternativas, que encontramos no artigo 43 do Código Penal (BRASIL, 1940).

1.5 NATUREZA JURÍDICA

 A natureza jurídica das penas alternativas é de sanção penal autônoma e substitutiva, conforme está destacado no próprio caput do artigo 44 do Código Penal. Cada um desses elementos será estudado adiante quando tratarmos das características das penas restritivas de direitos (BRASIL, 1940).

1.6 CARACTERÍSTICAS

 As penas alternativas possuem algumas características que as tornam medidas sancionadoras singulares. A doutrina aponta como principais características a autonomia, a substitutividade, a não cumulatividade, a condicionalidade e a obrigatoriedade, sendo que esta última não é de aceitação unânime (JESUS, 2007).

1.6.1 Autonomia

As penas alternativas são autônomas porque na parte especial do Código Penal não existe fato típico para o qual a pena cominada seja dessa espécie. Essas penas subsistem por si mesmas e podem ser aplicadas a qualquer crime, desde que não seja vedado pela lei e estejam preenchidos os requisitos do artigo 44 do Código Penal (MIRABETE, 1996).

 A razão de a autonomia ser destacada no caput do artigo é de origem histórica. No Código Penal de 1940 havia as penas assessórias, que não podiam ser aplicadas diretamente pelo juiz e dependiam da imposição das principais, portanto, quando o legislador diz que essas penas são autônomas ele está explicando que não se tratam de penas assessórias (JESUS, 2007). 

 Há exceções à regra da autonomia, um exemplo é o artigo 28 da Lei n° 11.343/2006, que trata da criminalização da conduta do usuário de drogas, naquele artigo a pena diretamente cominada é alternativa (BRASIL, 2006).

1.6.2 Substitutividade

 As penas alternativas são substitutivas porque derivam de permuta feita após a aplicação da pena privativa de liberdade, não podendo ser aplicadas diretamente pelo juiz, sendo exceção a cominação de pena alternativa diretamente pela lei (SZNICK, 1999).

 Para melhor compreensão, vejamos quais são as fases da aplicação da pena: Primeiramente, o juiz elege o quantum da pena prevista no preceito sancionador do tipo que será aplicada ao caso concreto, com base nas circunstâncias judiciais elencadas nos incisos do artigo 59 do Código Penal. Em seguida, verificará a incidência de atenuantes e agravantes, bem como causas de diminuição e de aumento de pena. Na sequência, com base na quantia da pena, fixará o regime inicial de cumprimento da sanção. Por último, analisará a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Observe-se, portanto, que a substituição só poderá ocorrer após ser tornada concreta a pena privativa de liberdade e o seu regime de cumprimento (NUCCI, 2009).

 Embora a regra seja a substituição da pena no momento da sentença condenatória, excepcionalmente poderá ocorrer em fase de execução, desde que estejam presentes os requisitos, conforme preceitua o artigo 180 da Lei de Execução Penal (JESUS, 2009).

1.6.3 Não Cumulatividade

 As penas alternativas não podem ser aplicadas em conjunto com pena privativa de liberdade, essa é a regra, mas existem exceções. Nucci (2009, p. 295) traz oportuno exemplo:

Apesar do mencionado caráter essencialmente substitutivo da pena restritiva de direitos, atualmente já se pode encontrar exemplos de penas restritivas aplicáveis cumulativamente às penas privativas de liberdade, como ocorre com o Código de Trânsito Brasileiro: o artigo 292 dispõe que “a suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor pode ser imposta como penalidade principal, isolada ou cumulativamente com outras penalidades”.   

 A impossibilidade de cumulação se restringe às penas privativas de liberdade, sendo indicada a aplicação de mais de uma pena restritiva de direitos ou uma restritiva de direitos cumulada com multa no §2° do artigo 44 do Código Penal (BRASIL, 1940).

1.6.4 Condicionalidade

 São aplicadas em substituição à pena privativa de liberdade anteriormente fixada e, se não cumpridas, são convertidas em prisão, retornando à situação anterior. Portanto, a condição para sua manutenção é o efetivo cumprimento (JESUS, 2009).

1.6.5 Obrigatoriedade de Aplicação

Sobre esse aspecto paira divergência. Para alguns doutrinadores e aplicadores do direito se preenchidos os requisitos legais, teria o réu direito subjetivo à substituição da pena. Para outros, mesmo preenchidos os requisitos, deve haver uma análise pelo magistrado, que decidirá se a pena alternativa é suficiente para a reprimenda do crime no caso concreto.

Tratando da possibilidade do magistrado negar a substituição com base no artigo 44, inciso III, do Código Penal, Mirabete (1996, p. 604) afirma:

A substituição da pena não é um direito do sentenciado, podendo indicar-se o juiz, pela aferição dos elementos de que dispõe, a necessidade de aplicação da pena privativa de liberdade que, atentando para a exigência da prevenção, do mesmo modo possibilitará ao condenado o auxílio e assistência previstos para os presos e albergados. Além de “cabível”, o juiz deve atender, na fixação da pena, ao que é “necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime” (art. 59 do CP), indicando-se assim que a substituição é apenas uma faculdade de aplicação e não um direito subjetivo do condenado.

 Noutro sentido, acreditam alguns que a substituição de pena é direito público subjetivo do réu, e que, se preenchidos os requisitos legais, a decisão que nega a substituição deverá ser fundamentada. Segundo os defensores de tal tese, se presentes as condições, não existe faculdade na decisão judicial (JESUS, 2007).

1.7 REQUISITOS

Os requisitos do artigo 44 do Código Penal são divididos pela doutrina em objetivos e subjetivos. Essas exigências são cumulativas, ou seja, devem estar presentes simultaneamente para que o réu possa ter a sua pena substituída (BRASIL, 1940).

1.7.1 Requisitos Objetivos

Dois são os requisitos objetivos: O primeiro é a forma de execução da infração penal. O crime deve ter sido cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa para que a pena possa ser substituída, contudo essa restrição atinge somente os crimes dolosos, pois nos crimes culposos a substituição é admitida ainda que tenha havido violência ou grave ameaça à pessoa (GRECO, 2008).

 O segundo requisito objetivo diz respeito à quantidade da pena. Será necessário que a pena cominada na sentença não seja superior a quatro anos. Mais uma vez a regra é valida somente para os crimes dolosos, vez que nos crimes culposos poderá ser realizada a substituição qualquer que seja a pena imposta (CAMPO, 1999).

1.7.2 Requisitos Subjetivos

 Como o próprio nome sugere, os requisitos subjetivos dizem respeito à pessoa do condenado.

O primeiro deles é a reincidência. Somente será substituída a pena se o réu não for reincidente em crime doloso. Mais uma vez a lei faz diferença entre a natureza do crime, vedando o benefício somente se houver reincidência em infração dolosa, o que quer dizer que se o condenado já tiver uma condenação anterior por crime culposo e vier a cometer crime doloso e atender aos demais requisitos da substituição, poderá ter sua pena substituída (SZNICK, 1999).

 Da redação do inciso II, do artigo 44, do Código Penal, poderíamos extrair que a substituição de pena para reincidente em crime doloso não seria permitida em nenhum caso. Entretanto, o próprio artigo, traz em seu §3° uma exceção à essa regra, autorizando que o juiz substitua a pena do reincidente em crime doloso se a reincidência não for pela prática do mesmo crime, e que analisando o caso concreto conclua que a pena restritiva de direitos é a medida recomendável (GRECO, 2008). 

 O segundo requisito subjetivo, presente no inciso III, do art. 44, do Código Penal, traz um conjunto de aspectos a serem observados, e determina que o juiz analise a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias do crime, e que, através desses aspectos, decida, se no caso concreto, a pena restritiva de direitos é medida suficiente para punição e prevenção do crime (BRASIL, 1940).

1.8 ESPÉCIES

 Após o advento da Lei n° 9.714/98, existem no Código Penal (BRASIL, 1940) as seguintes penas alternativas:

1)                 Pena substitutiva de multa;

2)                 Prestação pecuniária;

3)                 Prestação pecuniária inominada;

4)                 Perda de bens e valores;

5)                 Prestação de serviços à comunidade;

6)                 Limitação de fim de semana;

7)                 Interdição temporária de direito consistente em proibição do exercício do cargo, função pública ou mandato eletivo;

8)                 Interdição temporária de direito consistente em proibição do exercício de profissão ou atividade;

9)                 Interdição temporária de direito consistente em suspensão da habilitação para dirigir veículo, que foi quase completamente revogada pelo Código de Trânsito Brasileiro;

10)             Interdição temporária de direito consistente em proibição de frequentar determinados lugares;

11)             Interdição temporária de direito consistente em proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exames públicos.

Entende a doutrina que o rol legal é taxativo, não havendo possibilidade de criação de novas modalidades de pena alternativa pelo magistrado (CAPEZ, 2008).

 Ao tratarmos das penas alternativas em espécie, nos limitaremos a comentar somente as previstas no Código Penal, já que existem outras modalidades em leis especiais.

1.8.1 Pena Substitutiva de Multa

A pena de multa é prevista no artigo 5°, XLVI, c, da Constituição Federal, e pode ser: a) Pena comum, abstratamente imposta no tipo penal (art. 58, caput, do Código Penal);

b) Pena substitutiva (artigo 44, §2° e artigo 58, parágrafo único, ambos do Código Penal (JESUS, 2007).

O artigo 44, § 2°, do Código Penal, que revogou tacitamente o artigo 60, §2°, do Código Penal, prevê que quando a pena cominada na sentença for igual ou inferior a um ano, esta será substituída por multa ou por uma pena restritiva de direitos, diferente do que dispunha o revogado artigo 60, que estabelecia o limite de seis meses para cabimento dessa espécie de substituição (JESUS, 2009).

1.8.2 Prestação Pecuniária

Nos termos do art. 45, §1°, do Código Penal (BRASIL, 1940):

A prestação pecuniária consiste no pagamento à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privativa com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários.

 Do final do §1°, do artigo 45, poderíamos entender que o valor da prestação pecuniária não poderia ultrapassar o montante do prejuízo causado pelo delito, todavia essa interpretação é errônea, isto porque existe a possibilidade do valor ser destinado à entidades públicas ou privadas, e neste caso o valor pago não deduzido do valor estipulado para reparação dos danos causados à vítima (GONÇALVES, 2003).

Não se deve confundir a pena de prestação pecuniária com a de multa reparatória. Enquanto esta somente é cabível quando houver dano material ao ofendido causado pelo ilícito, aquela é admissível ainda que não se tenha prejuízo individual (MIRABETE, 1996).

Também não devemos confundi-la com a pena de multa, originária ou substitutiva, porque nesta os valores são revertidos para o Fundo Penitenciário Nacional (MIRABETE, 1996).

 Outra distinção apontada entre as penas alternativas de natureza pecuniária e a pena de multa substitutiva é que, esta última, não pode ser convertida em pena privativa de liberdade, isto quer dizer que, se não for paga, o remédio é a execução dos valores, e neste caso a certidão da sentença condenatória com o trânsito em julgado servirá como título executório. Enquanto isso, as penas de prestação pecuniária e perda de bens valores podem ser convertidas em pena privativa de liberdade se não houver cumprimento por parte do condenado (CAPEZ, 2008).

1.8.3 Prestação Inominada

 É quando, mediante a aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária se converte em prestação de outra natureza. A mais conhecida de todas é a entrega de cestas básicas a pessoas carentes ou entidades assistenciais (MARCÃO, 2011).

 A constitucionalidade dessa espécie de pena é controvertida. A maior parte da doutrina afirma que é inconstitucional por ser pena indeterminada, contrariando assim o princípio da reserva legal, contido no inciso XXXIX, do art. 5°, da Constituição Federal e também no artigo 1° do Código Penal (GRECCO, 2008).

1.8.4 Perda de Bens ou Valores

 Inicialmente prevista no artigo 5°, XLVI, b, da Constituição Federal e posteriormente regulada pela Lei n° 9714/98, a perda de bens e valores é o confisco em favor do Fundo Penitenciário Nacional (BRASIL, 1940; 1988).

Seu valor terá como teto o que for maior: o valor do prejuízo causado ou o provento obtido com a prática do crime (JESUS, 2009).

1.8.5 Prestação de Serviços à Comunidade ou a Entidades Públicas

De acordo com o artigo 46, §§ 1°, 2° e 3°, a pena alternativa de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado, que serão por ele levadas a efeito em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais, sendo que as tarefas serão atribuídas segundo as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas a razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho (BRASIL, 1940).

De acordo com o artigo 149 da Lei de Execução Penal, o juiz da execução penal é quem determinará o local da prestação dos serviços (BRASIL, 1984).

O limite semanal do trabalho é de oito horas e será realizado nos horários estabelecidos pelo juiz, que o fará de modo a não prejudicar a jornada de trabalho normal do indivíduo (BRASIL, 1984).

Considera-se o início da execução, para efeito de cômputo da pena, a data do primeiro comparecimento do condenado à entidade indicada para prestação de serviço (BRASIL, 1984).

Deverá ser enviado pela entidade beneficiada ao juiz da execução, relatório circunstanciado das atividades exercidas, cumprida a carga horária equivalente à pena imposta, ocorrerá a extinção da punibilidade (MARCÃO, 2011).

1.8.6 Limitação de Fim de Semana

 Conforme o artigo 48 do Código Penal, a pena alternativa de limitação de fim de semana consiste na obrigação do condenado de permanecer na casa do albergado aos sábados e domingos, por cinco horas diárias (BRASIL, 1940).

 O Juiz da execução determinará a intimação do condenado, em que será cientificado do local, dia e hora de cumprimento da pena (BRASIL, 1984).

O início da execução, para efeito de cômputo penal, será o primeiro dia de comparecimento do réu (BRASIL, 1984).

 O estabelecimento encaminhará relatórios ao Juízo da Execução, bem como terá o dever de comunicar ausência ou falta grave cometida pelo condenado. Devidamente cumprida a pena pelo período determinado, será extinta a punibilidade (GRECCO, 2008).

1.8.7 Interdição Temporária de Direitos

É gênero, no qual temos as seguintes espécies:

a)                  Proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo: Conforme dispõe o artigo 56, do Código Penal, somente poderá ser aplicada essa pena quando relacionado o fato delituoso com o exercício funcional (BRASIL, 1940);

b)                 Proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou de autorização do Poder Público: Da mesma forma acima destacada, somente poderá ser aplicada essa pena quando relacionado o fato delituoso com o exercício funcional (BRASIL, 1940);

c)                  Suspensão da autorização ou de habilitação para dirigir veículo: O Código de Trânsito Brasileiro regulou quase que completamente o assunto e pelo princípio da especialidade tal pena no Código Penal encontra-se parcialmente revogada, restando unicamente a possibilidade de o juiz determiná-la sobre autorização para dirigir ciclomotores, o que a torna praticamente inexistente nos dias de hoje (NUCCI, 2009);

d)                 Proibição de freqüentar determinados lugares: O Juiz deve determinar na própria sentença os locais que o condenado não deverá freqüentar. Essa espécie de pena alternativa recebe severas críticas pelos doutrinadores, principalmente pela impossibilidade de fiscalização de cumprimento (GRECO, 2008);

e)                  Proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exames públicos: Tal modalidade de interdição temporária de direitos foi incluída no rol do Código Penal pela Lei nº 12.550, de 15 de dezembro, de 2011. Trata-se de uma pena que impõem um dever negativo ao apenado: o de se abster de efetuar sua inscrição em concursos, avaliações ou exames de interesse público.

1.9 CONVERSÃO

 Descumprida injustificadamente a pena restritiva de direitos que substituiu a pena privativa de liberdade, esta será convertida em prisão. A conversão é, portanto, o retorno ao status quo, pela não observação das condições da pena alternativa por parte do condenado (SZNICK, 1999).

 Segundo Masson (2009), o mais apropriado seria chamar o instituto de reconversão, pois a pena privativa de liberdade foi convertida em restritiva de direitos, mas por descumprimento injustificado das condições impostas reconverte-se ao estado original, ou seja, volta a ser privativa de liberdade.

 Sobrevindo condenação por outro crime em que a pena imposta seja privativa de liberdade, o juiz da execução decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado o cumprimento da pena substitutiva (BRASIL, 1940).

 A Lei de Execução prevê outras hipóteses de conversão. A primeira diz respeito ao cometimento de falta grave pelo condenado a prestação de serviços à comunidade ou à limitação de fins de semana (art. 181, §§ 1° e 2°). A segunda hipótese é a do condenado à interdição de direitos, qualquer que seja a modalidade, encontrar-se em lugar incerto e não sabido (art. 181, §3°). As demais causas de conversão previstas na Lei de Execução Penal enquadram-se na causa de descumprimento injustificado das condições impostas (BRASIL, 1984).

 Por não ser considerada pena restritiva de direitos, mas sim dívida de valor, a multa substitutiva não poderá ser convertida em pena privativa de liberdade. Se eventualmente não for paga a multa, proceder-se-á à execução, conforme determina o artigo 51 do Código Penal, passando a execução a apresentar caráter extrapenal, e o valor da multa deverá ser inscrito como dívida ativa em favor da Fazenda Pública (JESUS, 2007).

 Quando convertida a pena substitutiva em privativa de liberdade, será computado o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão (BRASIL, 1940).


2 TRÁFICO DE DROGAS

Em razão dos inúmeros danos causados pelo uso de drogas, sua comercialização é, em regra, proibida em nosso país, sendo regulada pela Lei n° 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas. Esta Lei trata, dentre outros aspectos, dos crimes praticados em decorrência do uso, comércio, associação e outras condutas relacionadas, que encontramos a partir do artigo 33, sendo o tráfico de drogas, o mais recorrente, e, por tal motivo, a preocupação em reprimi-lo é cada vez maior, sendo cogitadas punições mais severas que as destinadas aos crimes comuns.

2.1 DEFINIÇÃO DE DROGA

 Segundo definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), droga é qualquer substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas produzindo alterações em seu funcionamento (OBID, 2011).

 É considerada droga psicotrópica qualquer substância utilizada para alterar o funcionamento cerebral. Mas as alterações causadas pelo uso dessas drogas variam de acordo com a espécie utilizada. As drogas psicotrópicas são divididas em três grupos, e cada um desses grupos age de maneira diferente no organismo (CEBRID, 2011).

O primeiro grupo é o das drogas depressoras do sistema nervoso central, essa espécie de substância faz com que o cérebro funcione lentamente, são exemplos: o álcool, barbitúricos e inalantes. A segunda classe é a das drogas estimulantes do sistema nervoso central. Ao contrário das primeiras, essas aceleram a atividade de determinados sistemas neurais, fazendo com que o indivíduo tenha insônia e aceleração dos processos psíquicos, são exemplos: anfetaminas, cocaína e tabaco. Por fim, temos as drogas perturbadoras do sistema nervoso central, que produzem delírios e alucinações, causando distorções no funcionamento do cérebro, são exemplos: maconha, alucinógenos, LSD e êxtase (CEBRID, 2011).

 A Lei n° 11.343/06, conhecida como de Lei de Drogas, é norma penal em branco. Isto porque não traz em seu texto quais são as substâncias consideradas “Drogas”, ficando a cargo do poder executivo tal especificação, conforme se verifica no parágrafo único, do artigo 1° (BRASIL, 2006):

Para fins desta lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

 O órgão encarregado de editar a relação das substâncias entorpecentes proibidas em nosso país é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). A lista de drogas ilícitas, de uso e comercialização proibidos, editada pela ANVISA, vigente nos dias de hoje, é a Portaria 344, de 1998, que é atualizada regularmente pelo órgão. Essa portaria traz uma relação das substâncias classificadas no Brasil como entorpecentes, psicotrópicas e de controle especial e conta hoje com 541 substâncias, a maior parte desse total formada por medicamentos (ANVISA, 2011).

2.2 TRÁFICO DE DROGAS E AUMENTO DA VIOLÊNCIA

 O aumento da violência tem afetado a sociedade como um todo, gerando sensação de insegurança e medo. Segundo recente estudo do IBGE sobre as causas de mortalidade no Brasil, observou-se que as causas de morte em nosso país não são as mesmas de antes. Segundo o instituto, nas últimas décadas reduziram drasticamente as mortes por causas evitáveis, como as relacionadas a doenças infecciosas, má nutrição e problemas relacionados à saúde reprodutiva, o que se deve notoriamente aos avanços da medicina e tecnologia. Por outro lado, se tornaram mais frequentes, e cada vez em maior número, as mortes causadas por doenças não transmissíveis e as violentas (IBGE, 2009).

 No decorrer de sua análise, os pesquisadores chamam atenção para algumas áreas onde a violência é generalizada, como por exemplo, os grandes centros urbanos e as favelas, onde acontece a maioria dessas mortes. Também chama atenção o fato das vítimas serem, em sua maioria, jovens entre 15 e 29 anos, do sexo masculino. Traçando um paralelo com a baixa nas taxas de mortalidade infantil, ocorrida principalmente nos últimos 20 anos, a pesquisa conclui que se tem preservado a vida dos recém-nascidos, mas que essas crianças sobreviventes têm grande risco de morrerem quando chegarem à juventude (IBGE, 2009).

 Sérgio de Oliveira Médici, ao tratar da proliferação do consumo de drogas, diz que essa foi uma das grandes dívidas deixadas pelos anos 60. Segundo o autor, foi a partir desse período que houve um aumento impressionante no consumo de entorpecentes, que até então era limitado a pequenos grupos marginais (1977).

 Além da degradação física que causa aos usuários e suas famílias, o consumo de drogas destrói a sociedade como um todo. O fato que mais contribui para a aniquilação da sociedade pelas substâncias entorpecentes é o quanto seu comércio aumenta a criminalidade.

 Um estudo realizado pela coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESEC/UCAM) e divulgado pelo Observatório de Segurança Pública (OBID), revela que, a partir de 1980, o tráfico de drogas se instalou nas favelas e bairros pobres de grandes cidades. Foi a partir dessa década que começaram as conhecidas guerras entre facções rivais que disputam o controle desse mercado altamente lucrativo e também os confrontos sangrentos entre estes e a polícia. Nessas regiões o tráfico alicia crianças e adolescentes oferecendo renda e expectativas de futuro, que por serem muito mais atrativas que a vida miserável que levam acaba ganhando esses jovens para a criminalidade (RAMOS, 2011).

 O estrago causado pelas drogas é incontroverso, prova disso são os processos criminais que tramitam em todo o país. São incontáveis os crimes cometidos em decorrência do uso ou tráfico de drogas. O vício destrói a entidade familiar, faz com que filhos matem seus pais, homens e mulheres vendam seus corpos em troca de porções de crack ou cocaína e pais abandonem seus filhos por não conseguirem nem sequer cuidar de si mesmos quando tomados pela dependência.

Os crimes praticados em decorrência das drogas não se limitam aos tipificados na Lei n° 11.343/06, indiretamente o uso ou o tráfico de entorpecentes são as causas da grande maioria dos ilícitos penais. Os furtos são preponderantemente motivados pela mantença do vício, assim como os roubos e os demais crimes contra o patrimônio. Homicídios e tráfico de armas são corriqueiros nas grandes redes de tráfico, como vemos todos os dias nos noticiários.

 Por conta da devastação causada pelo tráfico, não só as causas de mortalidade, mas também os motivos das condenações criminais mudaram muito a partir dos anos 60. Em 1907, 100% dos presos cumpriam pena por condenação por crimes contra a pessoa. Entre os 2.833 condenados na época, 2.422 tinham cometido homicídio; 53, tentativa de homicídio; 223, lesão corporal e 135, "violência carnal", há que se notar que a preponderância dos atentados contra a vida justifica-se pela forma como a justiça era vista na época, essa fase é marcada pela vingança privada, o que revela a causa do número elevado de homicídios e tentativas de homicídio. Em 1985, dos 39.609 presos, 57,8% foram condenados por crimes contra o patrimônio, que aparece a partir do anuário de 1943, e 26,5%, por crimes contra a pessoa. Já o tráfico e uso de entorpecentes (classificado como crime contra a Saúde Pública) é um fenômeno da década de 60 e, em vinte anos (entre 1965 e 1985), mais que triplicou o número de condenações (IBGE, 2003).

 Pelo exposto, podemos perceber o quanto é necessário que o Estado intervenha nesse caos originário do uso de drogas. Não por acaso, o sujeito passivo do crime de tráfico e dos demais crimes relacionados na Lei de Drogas é a Saúde Pública, pois não se pode mensurar o mal causado pela conduta de um indivíduo que trafica entorpecentes. Portanto, deve a reprimenda estatal ser justa e suficiente para atingir as funções retributiva e preventiva da pena.

2.3 ANÁLISE DO TIPO PENAL

 O tráfico de drogas, anteriormente regulado pelo artigo 12 da Lei 6.368/76, atualmente encontra sua previsão legal no artigo 33 da Lei 11.343/06. A compreensão da norma penal é pressuposto para a avaliação da suposta inconstitucionalidade da vedação abstrata à aplicação de penas alternativas e será realizada através do estudo do conceito do crime, seu objeto, sujeitos, conduta, elementos, momento da consumação e admissibilidade do delito na forma tentada.

2.3.1 Conceito do Crime de Tráfico de Drogas

 O conceito do crime de tráfico de drogas pode ser encontrado na própria Lei de Drogas (BRASIL, 2006), que o define da seguinte forma:

Art. 33 Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação regulamentar.

  §1° Nas mesmas penas incorre quem:

I – Importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

II – Semeia, cultiva ou faz colheita, sem autorização ou desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;

III – Utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente em que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

 As vedações abstratas à substituição de pena da Lei de Drogas vão além desse artigo, mas nos limitaremos a analisar o tema no que tange aos crimes acima especificados.

2.3.2 Objetividade Jurídica

 O bem protegido pela norma penal em comento é a Saúde Pública.

Para Rogério Sanches Cunha, a objetividade jurídica pode ser dividida em tutela imediata, saúde pública, e tutela mediata, saúde individual de pessoas que integram a sociedade (CUNHA, 2011).

 Nucci (2008, p. 315), tratando dos motivos que tornam legítima a proteção estatal, comenta:

Não se permite que determinados entorpecentes circulem em sociedade porque seus danos, ao longo do tempo, já foram comprovados, não somente por médicos, cientistas, especialistas da área da saúde pública em geral, como também por fatos concretos passados. A saúde pública, bem jurídico imaterial, mas  que significa a possibilidade de que várias pessoas, em número indefinido, adoecerem e, por fim, morrerem, é tangida quando há tráfico de drogas.

 Outra observação quanto à tutela pretendida pelo tipo penal é que, o crime de tráfico é de perigo abstrato, ou seja, não se exige lesão ao bem jurídico ou a colocação deste em risco real e concreto para a configuração do crime, bastando apenas a ocorrência da conduta descrita na lei, independente do resultado. A condenação independe de prova de lesão, pois esta é presumida pelo legislador (NUCCI, 2008).

2.3.3 Sujeitos do Delito

 Em regra, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de tráfico. As exceções são no caput, pois a conduta “prescrever”, é crime próprio, privativo de médico ou dentista e no inciso III, do §1°, pois as condutas descritas nele só poderão ter como sujeito ativo quem tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância do local que se utiliza para o tráfico ou consente que outrem dele de utilize (MARCÃO, 2011).

 O sujeito passivo dos dispositivos em análise é a coletividade. Secundariamente, em razão do disposto no art. 40, VI, podem concorrer no pólo passivo: crianças, adolescentes ou pessoas incapazes de discernimento ou autodeterminação (CUNHA, 2011).

2.3.4 Conduta Criminosa

Pratica o crime de tráfico previsto no caput do artigo 33 quem realiza um dos 18 (dezoito) verbos descritos na normal penal. Cunha (2011, p. 195), ao analisar o tipo penal traz as seguintes definições:

Os dezoito verbos contemplados no art. 12 da Lei 6.368/76 foram mantidos (sem acréscimo). São eles: importar (trazer de fora), exportar (enviar para fora), remeter (expedir, mandar), preparar (por em condições adequadas para uso), produzir (dar origem, gerar), fabricar (produzir a partir de matérias primas, manufaturar), adquirir (entrar na posse), vender (negociar em troca de valor), expor à venda (exibir para a venda), oferecer (tornar disponível), ter em depósito (posse protegida), transportar (levar, conduzir), trazer consigo (levar consigo, junto ao corpo), guardar (tomar conta, zelar para terceiro), prescrever (receitar), ministrar (aplicar), entregar (ceder) a consumo ou fornecer (abastecer) drogas, ainda que gratuitamente (amostra grátis).

O inciso I, do §1°, traz mais 14 condutas descritas, que são: 1) importa; 2) exporta; 3) remete; 4) produz; 5) fabrica; 6) adquire; 7) vende; 8) expõe à venda; 9) oferece; 10) fornece; 11) tem em depósito; 12) transporta; 13) traz consigo ou 14) guarda. Descreve o inciso condutas análogas às do caput, mas enquanto aquele faz referência às drogas, este trata da matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas. Trata-se portanto de cuidado do legislador em prescrever penas aos que colaboram em todas as fases da traficância, tomando precauções para que a punição estatal não recaia apenas sobre alguns indivíduos, mas a todos que de alguma forma contribuíram para o resultado final (BRASIL, 2006).

O inciso II do §1°, elenca mais três possibilidades do agente incorrer em tráfico. Neste também são descritas condutas primárias da rede de tráfico. Através desta previsão legal é possível punir quem 1) semeia; 2) cultiva ou 3) faz a colheita de plantas que constituam matéria-prima para a preparação de drogas (BRASIL, 2006).

Por fim, o inciso III é o amparo legal para punir os que utilizam ou permitem que o bem de quem têm a posse, propriedade, administração, guarda ou vigilância seja utilizado para o tráfico de entorpecentes (BRASIL, 2006).

Em qualquer dessas situações é exigido, além da prática dos atos descritos, mais um requisito: Que o agente esteja agindo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Se o agente está autorizado ou agiu conforme determinação, não há ilicitude. Apesar de parecer óbvio, o segundo requisito é essencial para a configuração do ilícito, pois excepcionalmente a exploração de drogas é permitida, desde que se enquadre em um dos casos dos artigos 2° a 31 da Lei n° 11.343/06 (MARCÃO, 2011).

 Embora a lei descreva diversas condutas, o sujeito que comete uma ou várias responderá por apenas um crime, por isso diz-se que o tipo penal em estudo é misto alternativo. Eventualmente poderá ocorrer concurso de crimes se o agente praticar os atos em tempo excessivamente distante um do outro (NUCCI, 2008).

2.3.5 Elemento Subjetivo

 Em todos os tipos penais aqui analisados, não há crime culposo. O dolo é sempre elemento necessário para a condenação, não podendo ser presumido (CUNHA, 2011).

2.3.6 Consumação e Tentativa

 Para que o crime de tráfico de drogas se consume, é suficiente a realização de qualquer das condutas previstas na lei (MARCÃO, 2011).

 Quanto à possibilidade de tentativa, a questão é controversa. Há os que defendem a possibilidade de existir tráfico na forma tentada. Nesse sentido:

Se a prisão do acusado se deu quando estava ingressando no território nacional com substância entorpecente, resta caracterizado o crime de tráfico na modalidade importar e na forma tentada e não na modalidade de trazer consigo, o que importaria na consumação do delito (BRASIL. TRF, 4ª R, Ap. 96.04.42481-5/PR, 2ª T., j. 17-10-1996, rel. Des. Fed. Jardim de Camargo, DJU de 20-11-1996).

E dos que entendem que inexiste a tentativa de tráfico. Nesse sentido:

O crime de tráfico de entorpecentes se exaure na modalidade de trazer consigo a substância entorpecente, não podendo se falar em tentativa. O tipo penal é de ação múltipla ou de conteúdo variado, pois apresenta várias formas de violação da mesma proibição, bastando para a consumação do crime a prática de uma das ações ali previstas. Para a configuração do crime de tráfico de entorpecentes imputado à recorrida, basta o dolo genérico de levar consigo a droga, o animus de traficar (BRASIL. STJ. REsp. 283.679-SP, 5ª t., j. 6-6-2002, rel Min° Gilson Dipp, DJU de 5-8-2002).

A posição majoritária, doutrinária e jurisprudencial, é de que é inadmissível a tentativa do crime descrito no caput do artigo 33, por tratar-se de crime de perigo de dano abstrato (MARCÂO, 2011).

 Em relação aos delitos do §1, é admitida a forma tentada dos incisos I e II. Quanto ao inciso III, é admitida a forma tentada apenas na primeira modalidade: utiliza, considerando que o consentimento é ato instantâneo, e não seria possível tentativa nesse ato (MARCÃO, 2011).


3 ANÁLISE EVOLUTIVA DO TRATAMENTO DA VEDAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR PENA RESTRITIVA DE DIREITOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Compreendidos os aspectos inerentes à apreciação da problemática que motivou este estudo, passaremos à análise evolutiva do tratamento da matéria no ordenamento jurídico brasileiro.

3.1 NOÇÃO HISTÓRICA

 A discussão acerca da possibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos ao condenado por tráfico de drogas tem longa data.

Quando da vigência da Lei n° 6.368/76, antecessora da Lei n° 11.343/06, não havia óbice legal para tal benefício, porém outros impedimentos eram apontados.

 Como já dito anteriormente, as penas privativas de liberdade surgiram no sistema pátrio em 1984, portanto após a Lei 6.368, que é de 21 de Outubro de 1976. Neste período a substituição não era possível porque a pena mínima prevista para o crime de tráfico era de três anos, enquanto uma das condições de substituição exigidas pela Lei 7.209/84 era de que a pena não fosse superior a um ano (BRASIL, 1976; 1984).

 Com a edição da Lei n° 9.714/98 o limite de pena para a substituição passou de um para quatro anos, o que tornaria possível, a princípio, a substituição, mas a maioria da doutrina e jurisprudência apontava como obstáculo o fato de que, no período, já vigorava a Lei. 8.072/90, chamada Lei dos Crimes Hediondos, e sendo o tráfico crime equiparado a hediondo, para ele também vigorava a regra do regime integralmente fechado, incompatível com a substituição por pena alternativa (BRASIL, 1940; 1990). Nesse sentido:

Os crimes descritos no art. 12 da Lei 6.368/76 são equiparados a hediondos por força da Lei 8.072/90. 2. Assim, tendo em vista o regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, não há como aplicar a substituição da reprimenda imposta por sanção restritiva de direito (CP, art. 44). 3. A Lei 9.714/98, mesmo sendo posterior à Lei 8.072/90, não a derrogou, em virtude do critério da especialidade (BRASIL, STF. HC 83627/SP. 1ª t. Rel. Min° Joaquim Barbosa. j. 25-11-2003, DJU. 27-02-2004).

Quando editada, em 23 de Agosto de 2006, a Nova Lei de Drogas operou inovações na seara criminal quanto ao tratamento dado aos que participam desse mercado ilícito. Dentre as alterações destacaremos duas que influenciaram diretamente no tema tratado.

Primeiramente, com o intuito de punir de maneira mais rigorosa os que praticassem as condutas descritas no artigo 33, houve considerável exasperação das penas, passando o mínimo de três para cinco anos, o que unicamente poderia impedir a aplicação do artigo 43 do Código Penal, não fosse a segunda novidade: o §4° (BRASIL, 2006).

Diversamente do caput do artigo, que conta com redação semelhante à que continha o artigo 12 da Lei n° 6.368/76, o §4° do artigo 33 foi uma das grandes mudanças trazidas pela nova lei. Este dispositivo penal trata de causa especial de diminuição de pena muito elogiada pela doutrina e jurisprudência, por trazer proporcionalidade e isonomia às penas, que no regramento anterior ficavam prejudicadas, na medida em que tratava os diferentes de maneira igual. Em comento ao tipo penal, Marcão (2011, p. 184) resume as mudanças benéficas que foram efetuadas em conseqüência da previsão normativa:

 A previsão é saudável na medida em que passa a permitir ao magistrado maior amplitude de apreciação do caso concreto, de maneira a poder melhor quantificar e, portanto, individualizar a pena, dando tratamento adequado àquele que apenas se inicia no mundo do crime.

Sob a égide da lei antiga, até por má aplicação do artigo 59 do Código Penal, na maioria das vezes o neófito recebia pena na mesma proporção que aquela aplicada ao agente que, conforme a prova dos autos, já se dedicava à traficância de longa data, mas que fora surpreendido com a ação policial pela primeira vez. Sendo ambos primários, de bons antecedentes, etc., recebiam pena mínima, não obstante o diferente grau de envolvimento de cada um com o tráfico.

Inegável que aquele que se inicia no crime está por merecer reprimenda menos grave, o que era impossível antes da vigência do novo §4°, e a minorante em questão tem por objetivo beneficiar somente o traficante eventual, e não aquele que faz o tráfico o seu meio de vida.

A previsão de redução da pena no montante de um sexto a dois terços não é facultativa, sendo considerada direito subjetivo do réu que preencher quatro requisitos (BRASIL, 2006):

1) Seja primário;

2) Tenha bons antecedentes;

3) Não se dedique a atividades criminosas; e

4) Não integre organização criminosa.

Com a redução de pena permitida pelo §4°, o agente preencheria também os requisitos exigidos para a substituição. Prevendo essa possibilidade, o legislador usa o próprio parágrafo para trazer, num primeiro momento, um obstáculo para que a concessão da beneficie e diz que é vedada a conversão em penas restritivas de direitos (BRASIL, 2006).

 A segunda mudança operada pela Lei de Drogas, no que tange ao tema deste estudo, foi quando, através do artigo 44, vedou expressamente a possibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, nos casos de condenação por condutas descritas nos artigos 33, caput e §1°, e 34 a 37, da mesma Lei (BRASIL, 2006).

 Assim, mesmo que a jurisprudência caminhasse no sentido da inconstitucionalidade do regime integralmente fechado e, portanto, admissibilidade da substituição de pena, por ser o único empecilho anterior à nova Lei, novamente o aplicador se viu impedido de fazê-lo, desta vez por regulamentação normativa expressa.

 Com o advento da Lei n° 11.464/07 (BRASIL, 2007), o regime integralmente fechado para os crimes hediondos e equiparados, dentre eles o tráfico de drogas, já tão criticado pela doutrina e jurisprudência, foi finalmente abolido do sistema penal brasileiro. Nesse momento, passaram a ser duas as interpretações quanto à admissibilidade de substituição de pena para o tráfico:

a) Os que haviam sido condenados na vigência da Lei 6.368/76 teriam direito à causa especial de diminuição de pena do §4°, do artigo 33, da Lei 11.343/06, pois beneficia o réu e deveria ser aplicada mesmo aos fatos anteriores. Consequentemente fariam jus à substituição de pena por não haver qualquer impedimento na lei anterior, e como o direito penal não pode retroagir para prejudicar o réu, sendo a nova lei mais rigorosa quando vedou a substituição de penas, não se aplicaria a estes a proibição nela contida.

b) Indeferimento do benefício com fundamentação exclusiva na literalidade do §4°, do artigo 33 e artigo 44, ambos da Nova Lei de Drogas, aos crimes praticados em sua vigência.

 Conforme se verifica através das decisões acima citadas, o tema sempre foi bastante controverso e reclama soluções permanentes.

3.2 O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

 Desde sua edição, a Lei 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, recebe críticas acirradas quanto a vários aspectos, dentre eles a previsão de impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos para alguns crimes (BRASIL, 2006).

Os argumentos que sustentam a inconstitucionalidade dos dispositivos que vedam abstratamente a aplicação de penas alternativas em alguns casos são diversos e serão adiante estudados, e, ganharam força quando o regime integralmente fechado foi abolido pela Lei n° 11.464/07, inundando o Poder Judiciário de recursos pleiteando substituição de pena ao condenado por tráfico (BRASIL, 2007).

 As decisões dos tribunais estaduais seguiam firmes pela impossibilidade com fulcro na Nova Lei de Drogas, o que levou os recorrentes aos tribunais superiores, vez que a Lei de Drogas é federal e, segundo os argumentos recursais, continha dispositivos inconstitucionais.

Esses julgamentos, inicialmente, também foram pelo indeferimento do pedido, com destaque para o HC 120.353/SP, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2009).

A decisão proferida no HC 97.256/RS, interposto em favor de Alexandre Mariano da Silva que, após ser condenado a 01 (um) ano e 08 (oito) meses de prisão, por ter sido encontrado 13,4 gramas de cocaína em seu poder, modificou totalmente a orientação jurisprudencial brasileira (BRASIL, 2010).

O writ pedindo que o réu pudesse recorrer em liberdade e ter sua pena de prisão substituída por uma das alternativas do artigo 43 do CP, foi inicialmente distribuído para a Primeira Turma do STF, que se reuniu em julgamento no dia 22 de setembro de 2009, quando foi verificado que, embora aquela Turma já tivesse se posicionado pela constitucionalidade do artigo 44 da Lei de Drogas, não havia jurisprudência do plenário sobre o assunto, ou seja, não havia posicionamento do STF. Então, por indicação do Ministro Marco Aurélio e por unanimidade, decidiu-se afetar o processo a julgamento do Tribunal Pleno (BRASIL, 2010).

A decisão final foi proferida em 01 de setembro de 2010, quando, por seis votos a quatro, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal de Justiça julgou inconstitucionais a parte final do artigo 44 e a expressão “vedada à conversão em penas restritivas de direitos”, constante no §4°, do artigo 33, ambos da Lei n° 11.343/06 (BRASIL, 2010).

3.2.1 Efeitos da Decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 97.256/RS

 A ordem concedida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2010, foi proferida em caráter incidental, o que, a princípio, não afeta as demais decisões, conforme lição de Moraes (2008, p. 715):

Declarada incider tantum a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, desfaz-se, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as consequências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados. Porém, tais efeitos ex-nunc (retroativos) somente tem aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração.

 Explica ainda Moraes (2008, p. 716), o que deverá ser feito para que a decisão tomada em controle difuso pelo Supremo Tribunal de Justiça tenha seus efeitos ampliados, vejamos:

A Constituição Federal, porém, previu um mecanismo de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (CF, art. 52, X).

Assim, ocorrendo essa declaração, conforme já visto, o Senado Federal poderá editar uma resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, da lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, que terá efeitos erga omnes, porém, ex nunc, ou seja, a partir da publicação da citada resolução senatorial.

No caso em tela, o Senado Federal até o momento não editou qualquer resolução, por conseqüência, não existe obrigatoriedade de observação da posição tomada, entretanto, o mais comum é que o Poder Judiciário observe as decisões proferidas naquela corte, sendo raros os casos que a contrariam, mas isso não significa segurança jurídica.

Não há garantia que as demais instâncias repitam tal entendimento, até porque, da mesma maneira que a decisão no Supremo foi apertada, seis votos a favor da inconstitucionalidade e quatro pela constitucionalidade, inúmeros juízes, em varas criminais por todo o país, podem também interpretar diversamente, e possuem liberdade de decidir de acordo com seu entendimento. 

 A aparente uniformização de jurisprudência neste sentido não resolve totalmente o problema, o que dá margem para decisões divergentes, vez que a lei vigente ainda é a 11.343/06 e seus artigos 33, §4° e 44 não foram revogados.

3.3 INCONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO CONTIDA NA LEI DE DROGAS

 A corrente que será analisada neste título opta pela inconstitucionalidade do óbice à substituição de penas contida na Lei de Drogas. Através dos argumentos que serão adiante demonstrados, procuram seus defensores demonstrar que a proibição contida na Lei 11.343/06 não encontra suporte no sistema de comandos da Constituição Federal.

3.3.1 Mitigação do Princípio Constitucional da Individualização das Penas

A primeira das violações constitucionais verificada com a vedação abstrata do legislador da Lei 11.343/06, segundo os defensores da inconstitucionalidade dos dispositivos que não permitem a substituição de pena aos condenados por tráfico, é a violação ao princípio constitucional da individualização das penas (PEREIRA, não datado).

Esse princípio se encontra no rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5°, no inciso XLVI, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que conta com a seguinte redação:

XLVI - A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição de liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos

  Nucci (2009, p. 34), em estudo que tem como tema central tal princípio, explica-o da seguinte forma:

A individualização da pena tem o significado de eleger a justa e adequada sanção penal, quanto ao montante, ao perfil e aos efeitos pendentes sobre o sentenciado, tornando-o único e distinto dos demais infratores, ainda que co-autores ou mesmo co-réus. Sua finalidade e importância é a fuga da padronização da pena, da “mecanizada” ou “computadorizada” aplicação da sanção penal, prescindindo da figura do juiz, como ser pensante, adotando-se em seu lugar qualquer programa ou método que leve à pena pré-estabelecida, segundo um modelo unificado, empobrecido e, sem dúvida, injusto.

 A individualização da reprimenda conferida ao sujeito que desafia as normas impostas pelo Estado significa um grande avanço para o Direito Penal. Isto porque vem a atender aos anseios de justiça e isonomia reclamado pela sociedade, na medida em que confere penas correspondentes à lesão do bem jurídico tutelado.

 Escrito em um período em que a dignidade da pessoa humana era constantemente desrespeitada pelos soberanos, Dos Delitos e Das Penas, de Beccaria (1764, p. 68-9), traz um ideal revolucionário para os moldes de seu tempo, baseada na proporcionalidade, quando diz que:

O interesse geral não é apenas que se cometam poucos crimes, mas ainda que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios que se utiliza a legislação para impedir os crimes que devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente. Deve, portanto, haver uma proporção entre os crimes e as penas.  

Hodiernamente os ideais de justiça são os mesmos, por isso, caminham juntos os princípios da proporcionalidade e da individualização das penas, sendo um o complemento do outro, pois não há proporcionalidade se forem aplicadas penas idênticas a indivíduos que prejudicaram o bem comum em intensidades diferentes.

Sendo fundamental o princípio da individualização das penas, aprouve ao legislador constituinte que esse princípio fosse tratado de maneira explícita na Carta Magna e, não por acaso, que fizesse parte do rol de direitos e garantias fundamentais (art. 5°, da Constituição Federal), historicamente oponíveis ao Estado, justamente com a finalidade de estabelecer limites ao poder público na aplicação de sanções (MORAES, 2008).

Como o argumento da inconstitucionalidade pela violação ao princípio da individualização das penas a essência do pensamento defendido pelo relator do histórico Habeas Corpus n° 97.256/RS, melhor análise temática não há que a transcrição de trecho do próprio voto do Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2010), que expõe seu entendimento dizendo:

A lei comum não tem a força de subtrair do juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinquente a sanção criminal que a ele, juiz, se afigurar como expressão de um concreto balanceamento ou de uma empírica ponderação de circunstâncias objetivas com protagonizações subjetivas do fato-tipo.

[...] Noutro modo de falar sobre a mesma coisa, o momento sentencial da dosimetria da pena não significa senão a imperiosa tarefa individualizadora de transportar para as singularidades objetivas e subjetivas do caso concreto – a cena empírico-penal, orteguiana por definição – os comandos genéricos, impessoais e abstratos da lei. Vale, dizer, nessa primeira etapa da concretude individualizadora da reprimenda (a segunda etapa concreta já se dá intramuros penitenciários), a juiz sentenciante se movimenta com ineliminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação ou restrição da liberdade do condenado e uma outra que já não tenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física do sentenciado.Uma coisa é a lei estabelecer condições mais severas para a concreta incidência da alternatividade; severidade jurisdicionalmente sindicável tão-só pelos vetores da razoabilidade e da proporcionalidade. Outra coisa, porém, é proibir ao julgador, pura e simplesmente, a convolação da pena supressora da liberdade em pena restritiva de direitos.

Ainda tratando da individualização das penas, o mesmo ministro chama atenção para a localização topográfica desse princípio (art. 5°, inciso XLVI, da CF), que vem antes do rol de penas admitidas no Direito brasileiro e depois do inciso que trata dos crimes hediondos (inciso XLIII do mesmo artigo constitucional), o que, segundo seu nobre entendimento, significa que o princípio da individualização das penas tudo recobre (BRASIL, 2010).

3.3.2 Isonomia de Tratamento entre o Tráfico de Drogas e os Crimes Hediondos

O segundo argumento dos que protestam pela inconstitucionalidade dos dispositivos legais aqui estudados é o de que o tráfico de drogas deve receber tratamento isonômico ao destinado aos crimes hediondos (CUNHA, 2011).

Consubstancia-se este entendimento por conta do crime previsto no artigo 33, da Lei 11.343/06, ser equiparado aos crimes hediondos pela própria Constituição Federal, também no artigo 5°, desta vez no inciso XLIII, que determina (BRASIL, 1988):

XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia à prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Sendo o tráfico equiparado a crime hediondo pela carta magna, resta saber quais são esses delitos. A definição é legal e está no artigo 1°, da Lei n° 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos, onde lemos (BRASIL, 1990):

Art. 1° São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:

I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V);

II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine);

III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o);

IV - extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ l°, 2° e 3º);

V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

V - estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o);

VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o);

VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o).

VII-A – (VETADO)

VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B)

Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, tentado ou consumado.

Para esses crimes não existe vedação legal abstrata à substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, obviamente não são passíveis de substituição os que não se amoldarem aos requisitos do artigo 44 do Código Penal, como, por exemplo, o crime de latrocínio, cujo benefício seria negado com espeque no inciso I, do artigo 44, do Código Penal, vez que a configuração do crime pressupõe necessariamente a existência de “violência ou grave ameaça” (BRASIL, 1940).

O único impedimento abstrato à substituição que existia para essa espécie de crime era o mesmo apontado pela doutrina para o tráfico no período de vigência da Lei 6.368/76, ou seja, o regime integralmente fechado. Entretanto, a partir da edição da Lei 11.467/07, que aboliu o regime de encarceramento absoluto, o obstáculo não mais existe. Sendo permitida a substituição de pena do condenado por crime hediondo (FREITAS, 2007).

Cunha (2011, p. 253), defensor da inconstitucionalidade do §4° do artigo 33 e artigo 44 da Lei 11.343/06 exatamente por esse argumento, comenta:

Antes da Lei 11.464/2007, muito se discutia a possibilidade (ou não) da concessão de penas restritivas de direitos para crime hediondo ou equiparado. Para considerável parcela da doutrina, apesar de não haver proibição expressa, o regime integralmente fechado tornava inviável a concessão do benefício (proibição implícita). Essa discussão perdeu importância, vez que, hoje, com o advento da Lei 11.464/2007, o regime integral fechado foi abolido, desaparecendo com ele o ventilado óbice. Contudo, havendo na Lei 11.343/2006 a proibição expressa de restritiva de direitos em relação ao tráfico, nova discussão começa a ganhar força: é legítimo impedir o benefício somente para o tráfico, delito também equiparado a hediondo? O art. 44 da Lei 11.343/2006 não estaria tratando situações iguais de maneira desigual? Ainda que sedutora a tese da especialidade (lei especial derroga lei geral), parece-nos que restringir a vedação das penas alternativas apenas ao crime de tráfico é ferir de morte o princípio da isonomia.

 Ante ao exposto, argumenta-se que não poderá o legislador comum dispensar tratamento diferenciado a crimes que a própria Constituição tratou de equiparar.

3.3.3 Impossibilidade de Ampliação do Rol de Restrições Constitucionais Destinadas ao Tráfico de Drogas

 Também baseado no direito fundamental anunciado no inciso XLIII, do artigo 5°, da Constituição Federal, temos o terceiro argumento que sustenta a inconstitucionalidade das normas atacadas. Tal inciso traz um rol de restrições aos crimes hediondos e a eles equiparados, qual seja, a não concessão de fiança, graça ou anistia para os que incidirem em delitos dessa natureza, não incluindo dentre os limites constitucionais a vedação à concessão de penas alternativas. Tratando-se de dispositivo constitucional que está entre as garantias fundamentais, deve ser interpretado de forma contida, não cabendo ampliação desse rol por parte do legislador ordinário (STF, 2010).

3.4 CONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO CONTIDA NA LEI DE DROGAS

 Após a verificação dos motivos que levam alguns juristas a acreditarem que os dispositivos penais que vedam a substituição de pena do condenado por tráfico são inconstitucionais, analisaremos os argumentos da corrente contrária.

 Embora esse posicionamento tenha sido minoritário no julgamento do HC 97.256/RS, o resultado foi de seis votos a favor da inconstitucionalidade contra quatro pela constitucionalidade, placar apertado, apoiado ainda pelas divergências doutrinárias, o que demonstra ser igualmente válido o estudo dos motivos que levaram os ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Ellen Gracie e Marco Aurélio a votarem pela denegação da ordem e consequente constitucionalidade dos dispositivos atacados (BRASIL, 2010).

3.4.1 Existência de Outras Limitações à Substituição de Pena na Legislação Infraconstitucional

 O primeiro motivo apontado é a incidência limitada das penas restritivas de direitos. Conforme estudado no primeiro capítulo, essa espécie de pena não é cabível em qualquer crime. De acordo com as diretrizes estabelecidas pelo artigo 44 do Código Penal, só caberá a substituição quando a pena aplicada não for superior a quatro anos, o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, o réu não for reincidente em crime doloso e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (BRASIL, 1940).

 Pelo rol de vedações do artigo 44, em inúmeros crimes menos graves que o de tráfico de drogas não é cabível a substituição de pena, como por exemplo: crime de lesão corporal grave, crime de aborto e crime de roubo simples, mesmo que nenhum deles seja considerado hediondo (BRASIL, 1940).

Na mesma ordem, encontramos ainda aqueles crimes que, mesmo impossíveis de serem punidos com pena diversa da prisão, por motivo de reincidência específica do agente, ainda sim são de menor gravidade que o tráfico, por exemplo, o furto (BRASIL, 1940).

Ora, se considerarmos inconstitucional o §4°, do artigo 33 e o artigo 44 da Lei de Drogas, por possuírem impedimento legal à que o juiz aprecie no caso concreto o cabimento de pena alternativa como forma suficiente de reprimenda estatal, obrigatoriamente temos que considerar inconstitucional o artigo 44 do Código Penal, que, apesar de ser norma infraconstitucional, também traz restrições à aplicação das penas alternativas. Conclui-se portanto, que nosso ordenamento não outorga ao juiz uma liberdade ampla de analisar o caso concreto e optar pela pena que considerar suficiente (BRASIL, 2010).

Dentre outros motivos, utiliza-se Marcão (2011, pag. 188) da comparação com o artigo 44 do Código Penal como justificativa para a constitucionalidade da negativa às penas alternativas da Lei 11.343/06, e diz que:

Não vislumbramos qualquer inconstitucionalidade na vedação à conversão da privativa de liberdade em restritiva de direitos. A não conversibilidade não constitui ofensa aos princípios da dignidade da pessoa humana ou da individualização da pena (art. 5°, XLVI, da CF), e bem assim a qualquer outro, como de resto também não configura desrespeito à Constituição Federal a literalidade do artigo 44 do CP, que também restringe a incidência das restritivas de direitos, nos moldes ali expressados.

Examinando atentamente o conteúdo do artigo 44 do Código Penal, chega-se à conclusão de que a substituição da pena não deriva, diretamente, do direito constitucional à individualização da pena, sendo a aplicação das penas alternativas regulada pela lei, que estabelece em quais casos será permitida a substituição. Sendo assim, nada impede que a Lei de Drogas também estabeleça os casos em que caberá a aplicação de penas alternativas, dentre os crimes por ela regulados.

3.4.2 Outorga Constitucional ao Legislador Ordinário para Regular a Individualização da Pena

Considerando a disparidade em se reputar inconstitucional a vedação incluída na Lei de Drogas quando se considera legítima semelhante regra verificada no artigo 44 do Código Penal, podemos chegar à seguinte conclusão: a Constituição Federal permite que o legislador ordinário estabeleça regras para a individualização da pena, incluindo dentre as possibilidades da lei infraconstitucional a de limitar a incidência de uma das penas elencadas no inciso XLVI, do Artigo 5º, da Constituição Federal, já que permite até mesmo a criação de penas diversas das que ali se encontram (BRASIL, 2010).

 A Constituição Federal de 1988 traz, no inciso XLVII do art. 5º, as únicas restrições de sanções à lei, proibindo a adoção de penas de morte (salvo em caso de guerra declarada), de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis. No mais, o legislador, observando as regras do ordenamento jurídico, poderá estabelecer quaisquer penas que julgar adequadas ao tipo incriminador, observando sempre a proporcionalidade entre a conduta criminosa e a sanção determinada (BRASIL, 1988).

 Acerca dos cuidados que deverá tomar o legislador na elaboração das leis penais, ensina Nucci (2009, p. 42):

Ao elaborar os tipos penais incriminadores, deve o legislador inspirar-se na proporcionalidade, sob pena de incidir em deslize grave, com arranhões inevitáveis a preceitos constitucionais. Não teria sentido, a título de exemplo, prever pena de multa a um homicídio doloso, como também não se vê como razoável a aplicação de pena privativa de liberdade elevada a quem, com a utilização de aparelho sonoro em elevado volume, perturba o sossego do seu vizinho.

A tarefa do criador da normal penal é, baseando-se na proporcionalidade das sanções penais destinadas aos crimes praticados, estipular as penas. Outro não é o desejo expressado na Constituição Federal, quando elaborou uma escala de penas, no mesmo cenário em que previu a individualização da pena, sinalizando para a sua harmonização às infrações praticadas.

 Ao determinar sanções às condutas consideradas prejudiciais à vida em comunidade, o legislador poderá inclusive criar outras penas além das previstas no rol do inciso XLVI, do artigo 5º, da Constituição Federal, conforme permissão do próprio dispositivo, e assim o faz.

Existem no ordenamento jurídico brasileiro, penas não previstas constitucionalmente, como por exemplo, as penas de perda do pátrio poder e perda de cargo ou função pública (BRASIL, 1940; 1988).

  Assim como lhe é permitido criar novas espécies de sanções, também é opção do legislador a incidência das penas existentes nos tipos penais. Ao criar uma lei, deverá ser feita a análise da gravidade e necessidade de repressão daquela conduta e a adequação da pena ao delito, estabelecendo a espécie, quantidade mínima e máxima e o regime de cumprimento, sempre tendo como parâmetros o princípio da proporcionalidade e as normas constitucionalmente estabelecidas, limitando assim a atuação judicial na aplicação da pena em concreto. Essa é a individualização da pena na fase legislativa.

A individualização da pena é instituto amplo, não ocorre somente no momento de sua aplicação. Conforme ensinamento de Mirabete (1996, p. 46), a individualização da pena pode acontecer:

[...] No plano legislativo, quando se estabelecem e disciplinam-se as sanções cabíveis nas várias espécies delituosas (individualização in abstracto), no plano judicial, consagrada no emprego do prudente arbítrio e discrição do juiz, e no momento executório, processada no período de cumprimento da pena e que abrange medidas judiciais e administrativas, ligadas ao regime penitenciário, à suspensão da pena, ao livramento condicional, etc.

Ao cominar as penas, a liberdade do legislador é ampla, não havendo qualquer norma constitucional que retire seu poder de vedar as penas restritivas de direitos nos casos em que considere necessário pela gravidade do crime.

Conforme Nucci (2008, p. 351):

Não é possível a substituição da pena privativa de liberdade, nos casos apontados no artigo 44, caput, desta Lei, por restritivas de direitos. Nenhuma inconstitucionalidade existe, pois não se fere a individualização da pena. Cuida-se de política criminal do Estado, buscando dar tratamento mais rigoroso ao traficante, mas sem padronização de penas.

Portanto, se ao legislador, que é representante da sociedade, parece ser necessário conferir tratamento mais severo a determinadas condutas que demonstram ser perniciosas, poderá fazê-lo desde que respeite os limites constitucionais, dentre os quais, para a corrente que defende a constitucionalidade do art. 33, §4° e art. 44 da Lei 11.343/06, não está proibida a vedação à substituição de pena.

3.4.3 A amplitude do Princípio Constitucional da Individualização das Penas

Não há dúvida sobre a importância do princípio da individualização das penas para a correta interpretação e aplicação do Direito Penal, já que assegura a dignidade da pessoa do condenado, sendo a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, segundo lição de Moraes (2008, p. 21):

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

[...] A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual.

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Devidamente reconhecida a importância da individualização das penas, resta mais um desafio: determinar o alcance desse princípio, para que se verifique se está sendo descumprido através da vedação da Lei de Drogas.

 Dada a extensão de tal princípio, alegam os juristas que entendem constitucionais os dispositivos da Lei de Drogas que não permitem a aplicação de pena alternativa em condenações por tráfico, que somente a vedação contida na referida Lei não impede a individualização da pena, diante de seu teor extremamente amplo. Segundo o Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto proferido na sessão de julgamento do HC 97.256 (BRASIL, 2010), entender dessa forma é considerar que o juiz poderia substituir a pena em qualquer caso concreto, se entendesse que uma pena restritiva de direitos seria suficiente para punir e prevenir o crime cometido, o que não é a realidade. Continuando o raciocínio, argumenta o Ministro em seu voto:

Se abstrairmos excessivamente o princípio da individualização da pena estabelecido no art. 5º, XLVI, chegaremos a uma situação em que o legislador não poderá estabelecer pena alguma: apenas o juiz poderia individualizar, de acordo com seu julgamento do caso concreto, a sanção penal cabível, dentre aquelas estabelecidas exclusivamente na Constituição da República.

Não é isso, contudo, que nossa Lei Maior pretende, especialmente se considerarmos a necessidade de observância do princípio da reserva legal: não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal. Noutras palavras: somente é possível aplicar as penas estabelecidas, em abstrato, pelo legislador.

 Nesta linha de pensamento chega-se à conclusão que a individualização da pena é instituto amplo, que é alcançada através de diversas medidas previstas na legislação constitucional e infraconstitucional, não podendo ser considerado inconstitucional o impedimento que trouxe a Lei de Drogas, por ser apenas uma das inúmeras formas de tornar única e justa a punição conferida ao indivíduo.

3.4.4 A Substituição de Pena para os Crimes Hediondos e o Tratamento Constitucional Conferido ao Tráfico de Drogas

Contrariando os que dizem ser o direito à substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos decorrente do tratamento constitucional isonômico verificado entre o tráfico de drogas e os crimes hediondos, vez que a estes não existe óbice à aplicação de penas alternativas, Freitas (2007, pag. 6), em artigo que trata dos crimes hediondos, desmistifica essa ideia ao esclarecer que, na verdade, em decorrência da natureza desses crimes e das regras do artigo 44 do Código Penal, não há qualquer crime hediondo em que a pena alternativa pode ser aplicada:

A maior parte dos crimes hediondos e assemelhados traz em sua gênese a elementar da violência, de modo que fica vedada a pena substitutiva, conforme impedimento expresso do art. 44, I, do CP. A exceção ficaria para crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e §§ 1.º, 1.º-A e 1.º-B), contudo ainda que não perpetrado com violência, a pena mínima de 10 anos supera em muito o máximo de 4 anos que autoriza a pena substitutiva.

A única possibilidade ficava por conta do crime de tráfico de drogas. A novel disciplina, entretanto, dada pelo art. 44 da Lei Antidrogas (Lei n° 11.343/2006), igualmente impede o benefício da pena substitutiva.

Consigne-se que a pena restritiva de direitos tem sua disciplina estatuída no CP e sua aplicabilidade se restringe às infrações leves e médias, jamais a crimes hediondos e assemelhados.

De se concluir que, atualmente, as penas restritivas são inaplicáveis, in totum, aos crimes hediondos e assemelhados.

 Além do crime do artigo 273, caput e §§ 1°, 1° - A e 1° - B, ainda se encontra outro delito dentre os hediondos em que não estão presentes grave ameaça ou violência, é o crime de epidemia com resultado morte, prevista no art. 267, §1°, do Código Penal, mas, assim como verificado quanto ao outro delito, também neste não poderá ser substituída a pena pela quantidade não amoldar-se ao mínimo previsto no inciso I, do art. 44, do Código Penal (BRASIL, 1940; 1990).

  Do exposto, conclui-se que o impedimento abstrato trazido pela Lei de Drogas, ao contrário do que se pensa em uma primeira análise, trouxe, justamente, a igualdade de tratamento entre o crime de tráfico de drogas e os crimes hediondos.

 Aliás, mesmo que coubesse pena diversa de prisão a algum dos crimes hediondos, considerar as restrições do inciso XLIII, artigo 5°, da Constituição Federal, como sendo as únicas admitidas para essa espécie de delito, levaria a considerar também inconstitucionais outros institutos, como por exemplo, a progressão de regime que acontece apenas com dois quintos de cumprimento de pena e três quintos quando há reincidência (art. 2°, §2°, da Lei 8.072/90) (BRASIL, 1990).

Por fim, quanto ao rol de restrições aos crimes hediondos e equiparados trazido no inciso XLIII, artigo 5°, da Constituição Federal, argumenta-se que devem ser considerados como sendo as restrições mínimas que deverão ser aplicadas a esses crimes, podendo ainda ser acrescentadas outras através de leis infraconstitucionais, pois, do contrário, significaria que nossa Carta Magna limitou quais as penalidades destinadas aos crimes hediondos e equiparados, mas não o fez quanto aos demais delitos, o que seria absurdo. Ademais, é frisado o fato de que a Constituição Federal trata o tráfico de drogas como crime gravíssimo e não exige que o tratamento seja equiparado ao dos crimes hediondos, prevendo, inclusive, a extradição do brasileiro naturalizado quando comprovado o seu envolvimento com essa espécie de delito, demonstrando a possibilidade de tratamento mais rigoroso aos que praticam tais condutas, estando a vedação ora debatida de acordo com a Constituição e com a realidade social brasileira (BRASIL, 2010; CAMPO, 1999). 

3.5 A RESOLUÇÃO Nº 5 DO SENADO FEDERAL

A Resolução n° 5 do Senado Federal, de 15 de fevereiro de 2012, suspendeu a eficácia da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, contida no §4° do artigo 33 da Lei 11.343/06. Tal medida é amparada pelo artigo 52, X, da Constituição Federal, que dá ao Senado legitimidade para suspender, no todo ou em parte, lei declarada inconstitucional em decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

 A competência outorgada ao Senado é uma importante ferramenta do sistema de “freios e contrapesos” prevista na Carta Magna. Essa separação de poderes, que é um princípio constitucional brasileiro, garante a limitação do poder em benefício da liberdade individual. No caso em tela, a resolução veio confirmar a decisão do STF, que havia sido tomada em sede de controle difuso, e conferiu efeito erga omnes a um posicionamento que vinha se fortalecendo na jurisprudência nacional.

  Embora o estudo do tema não tenha concluído pela inconstitucionalidade da vedação à substituição de pena para o tráfico, a suspensão em parte dos dispositivos pelo Senado demonstra que os representantes da Federação se convenceram de que a prisão é punição dura demais para aqueles indivíduos que preenchem os requisitos do artigo 44 do Código Penal. Como o sistema adotado no Brasil é o de democracia representativa, a Resolução traduz o pensamento de nossa sociedade e legitima a decisão.

 Esta medida representa um avanço na seara criminal, pois quando um tema de tamanha relevância é interpretado de maneira controvertida a desvantagem é da sociedade, que padece pela insegurança jurídica. A unificação na aplicação de penas vem restabelecer a confiança no sistema, que se apresentava injusto aos que não tinham condições de recorrer de decisões divergentes daquela emanada do Prétorio Excelso, homenageando assim o princípio da isonomia.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Natália Cristina Cunha; NIKITENKO, Viviani Gianine. Tráfico de drogas e substituição de pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. Uma análise evolutiva do tratamento da matéria no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3387, 9 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22772. Acesso em: 20 abr. 2024.