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Psicografia no processo penal: a admissibilidade de carta psicografada como prova judicial lícita no direito processual penal brasileiro

Psicografia no processo penal: a admissibilidade de carta psicografada como prova judicial lícita no direito processual penal brasileiro

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A psicografia não deve ser tachada em nosso sistema como uma prova ilegal. Deve ser analisada casuisticamente, seja em juízo comum, no qual o magistrado se utilizará da sua persuasão racional para a aceitação, seja nos tribunais do júri, pela íntima convicção do Conselho de Sentença, que não precisa de motivação para tanto.

Resumo: O presente trabalho tem por escopo demonstrar a admissibilidade de cartas psicografadas como prova judicial lícita no Direito Processual Penal Brasileiro, tendo como objetivos verificar se esse tipo de mensagem se enquadraria em algum meio de prova admitido na seara processual penal, compreendendo-se os princípios constitucionais aplicáveis à temática em voga, e analisando-se casos de grande relevância a despeito do assunto. No decorrer do trabalho, precisou-se expor alguns conceitos técnicos relativos à psicografia e ao Espiritismo, assim como definir, sob a óptica doutrinária, se seria religião ou ciência. A metodologia utilizada foi a qualitativa-descritiva, e também explicativa, já que, em princípio, seria uma continuação de outra descritiva. Conclui-se que a utilização desse mecanismo extraterreno deve ser enquadrado como meio de prova documental, em sentido amplo, devendo ser analisado, casuisticamente, pelo magistrado no momento de valorar a sua viabilidade, em consonância com as demais provas anexadas aos autos, em particular, o exame grafotécnico, para a concretização da justiça terrena.

Palavras-chave: Psicografia. Espiritismo. Ciência. Prova documental.

Sumário: Introdução. 1. Princípios constitucionais relacionados ao direito à prova. 1.1. Ampla defesa. 1.2 Contraditório. 1.3 Livre convencimento motivado. 1.4 Busca da verdade real. 1.5 “Favor rei”. 1.6 Vedação à obtenção de provas ilícitas. 2. Direito à prova no processo penal. 2.1. Conceito de prova. 2.2. Classificação das provas. 2.3. Meios de prova. 2.3.1 Da prova documental. 2.3.2. Das demais provas. 2.3.2.1 Da prova pericial. 3.2.2 Do interrogatório do acusado. 2.3.2.3 Da prova testemunhal. 2.4. Prova inominada. 2.5 Sistemas de avaliação da prova. 3. Abordagens acerca da psicografia. 3.1. Conceito e tipos de psicografia. 3.2. A mediunidade. 3.3 Natureza científica da psicografia. 3.3.1 Psicografia na história da sociedade. 3.3.2 Psicografia sob a óptica da doutrina espírita. 3.3.3 Psicografia e o exame grafotécnico. 4. Psicografia no processo penal. 4.1 Considerações iniciais. 4.2 Opiniões favoráveis e contrárias de juristas à aceitação de carta psicografada como prova judicial. 4.3. Análise crítica e jurisprudencial de casos nacionais. 4.3.1. Caso Maurício Garcez Henrique. 4.3.2 Caso Heitor Cavalcanti de Alencar Furtado. 4.3.3 Caso Iara Marques Barcelos. 4.4. Projetos de lei para a alteração do texto legal. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

Notadamente, um tema bastante polêmico e intrigante na atualidade será tratado nesta monografia, qual seja, a admissibilidade de carta psicografada como prova judicial lícita no Direito Processual Penal Brasileiro, visando esclarecer como se daria a sua utilização em nosso sistema jurídico.

Diante de alguns casos emblemáticos ocorridos no Brasil, buscou-se entender se a psicografia estaria incluída em algum meio de prova aceita em nosso ordenamento legal, pois sabe-se que são através dos meios probantes que o magistrado recebe os elementos ou motivos de prova, sendo, a partir de então, formada a sua convicção, devendo as partes demonstrar os fatos que alegaram. Assim, meios de prova são todos os recursos utilizados para alcançar a verdade no processo. De um modo geral, são inadmissíveis aqueles meios em que a lei proíba e que são incompatíveis com o sistema processual em vigor. A partir desse paradigma, enfatizou-se a seguinte problemática: é juridicamente admissível, como prova judicial lícita, a utilização de mensagens psicografadas que digam respeito à determinação da responsabilidade penal para a defesa do réu?

Preliminarmente, a essa indagação constatou-se como supostas hipóteses que as cartas psicografadas têm uma valoração importante para a defesa técnica do réu, sendo, juridicamente aceitáveis, e analisadas de forma isolada no processo, como meio de prova autônomo. Por outro viés, poderia enfatizar que cabe, exclusivamente, ao magistrado aceitar ou não, de plano, o documento psicografado e anexar aos autos, levando em consideração o seu livre convencimento em busca da verdade real, no que tange ao procedimento comum no Processo Penal. E, por fim, como última questão norteadora, para o reconhecimento da carta psicografada como prova lícita, tem de se verificar, por meio da perícia grafotécnica, a sua autenticidade, porém, não seria analisada de forma isolada no processo, mas, sim, em conjunto com outras provas anexadas aos autos, tendo um teor de subsidiariedade.

Partindo da perspectiva de que todo acadêmico do curso de Direito, no mínimo, deve estar sempre atualizado sobre os mais diversos assuntos, com o tema em deslinde não poderia ser diferente, tanto por sua importância moral – por se tratar de um ser humano que poderá permanecer enclausurado numa penitenciária, cumprindo pena por um crime não cometido – quanto por sua importância espiritual – visto tratar de um tema que vai além das expectativas terrenas –, buscando-se a ideia de que toda prova, exceto as ilícitas, deve ser aceita pelo juiz, realizando os devidos procedimentos para que o réu tenha o mínimo de expectativa em sua absolvição.

A prova é, indubitavelmente, um dos elementos mais importantes da persecução processual, pois se procura reconstruir, por meio delas, da maneira mais próxima possível o fato que envolve a lide para melhor fundamentar o processo. O atual CPP (Código de Processo Penal) Brasileiro leva-nos a um processo mais humanitário, pois prima pela ampla defesa, contraditório, devido processo legal, proibição de provas ilegais, busca da verdade real como um dos elementos mais aparentes, entre outros.

Tem de se levar em consideração a psicografia como um meio de prova constitucional, assim como qualquer outra existente no ordenamento vigente, isto é, possui a mesma importância de uma acareação, de uma prova testemunhal, de um reconhecimento de pessoa ou coisa, ou até mesmo de uma confissão. O que será levado em consideração é se o documento resultante da psicografia está em consonância com as demais provas do processo. A conveniência de utilizar mensagem psicografada dentro do sistema jurídico, quanto prova processual, ficou latente a partir do surgimento de alguns acontecimentos práticos, e os operadores do Direito têm de entender a importância da discussão e não fingir que essa realidade não existe.

A partir desse pressuposto, o trabalho visa ser um estudo sobre como aliar as cartas psicografadas aos meios de provas lícitas, no sentido de usar suas faces para melhor entendimento do segmento processual e seus diversos aspectos. Também pretende pesquisar de que forma a aceitação pode contribuir para a defesa do réu, associadas em conjunto com as demais provas anexadas e conteúdo dos fatos ocorridos, buscando embasamentos doutrinários e jurisprudenciais que favorecem a matéria. Indubitavelmente, a necessidade desse enfoque é importante, visto que o assunto em questão gera muita polêmica, desde a idoneidade das cartas, do convencimento do magistrado até as crenças de cada jurado, no que tange ao procedimento do júri, no qual vige o sistema da íntima convicção.

O trabalho em comento possui como objetivo macro analisar a viabilidade, buscando posições acerca da admissibilidade da utilização de cartas psicografadas como prova judicial lícita no Direito Processual Penal Brasileiro. E como objetivos específicos identificar os meios de provas admitidas na seara processual penal, relacionando com o documento psicografado; compreender os princípios atinentes ao Direito Processual Penal Brasileiro, tais como o contraditório, ampla defesa, livre convencimento motivado do juiz, busca da verdade real, favor rei e vedação à obtenção de provas ilícitas; estudar a legislação referente ao Direito Processual Penal; e verificar as análises doutrinárias e jurisprudenciais de decisões ocorridas em Tribunais do Júri, em que houve a aceitação de cartas psicografadas como meio probante.

Serão tratados, no primeiro capítulo, os princípios constitucionais relacionados ao direito à prova, ou seja, de que forma podemos vislumbrar na prática forense a adoção de tais princípios, tanto utilizados pelas partes, quanto pelo magistrado em sua fundamentação para a solução da lide. No segundo capítulo, tratar-se-á, especificamente, do direito à prova no Processo Penal, estabelecendo conceitos, os meios de provas existentes em nosso sistema jurídico, assim como os inominados, e os sistemas de avaliação da prova na história da processualística criminal. O terceiro capítulo terá como foco o estudo da psicografia sob o contexto da Doutrina Espírita, tratando do conceito, tipos de psicografia e de médiuns, como essa prática surgiu na história da sociedade, e como a Doutrina Espírita a visualiza, atualmente. Também, nesse mesmo capítulo, far-se-á uma abordagem acerca do exame grafotécnico ou grafológico, como também pode ser denominado, e sua efetividade na práxis jurídica. E por derradeiro, no último capítulo, será abordado a relação da psicografia especificamente no cotidiano do Judiciário brasileiro, destacando as opiniões favoráveis e contrárias de operadores do direito, cientistas e doutrinadores à sua aceitação, a análise de três casos emblemáticos que, de certa forma, se tornaram paradigmas para futuros enfoques. Ressalte-se, também nesse capítulo, a discussão que vinha ocorrendo no âmbito legislativo sobre a possível modificação do Código de Processo Penal, particularmente no artigo 232, que trata do meio de prova documental.

A metodologia utilizada será a bibliográfica, de abordagem qualitativa, e utilizando-se diversos materiais doutrinários, como livros, artigos científicos e artigos da internet, tendo em vista a carência de obras dedicadas ao tema em comento.


Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim.

Chico Xavier


1. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS AO DIREITO À PROVA

O nosso ordenamento jurídico constitui um sistema acobertado por princípios, cuja finalidade é assegurar a logicidade na aplicação das normas. São de conteúdo mais abrangente, juridicamente falando, do que as regras propriamente ditas, servindo, dessa forma, de instrumento para a interpretação e aplicação do direito.

Para que ocorra uma aplicação eficaz do direito, em geral, o intérprete imprescinde de uma visão principiológica, fundada no mais importante documento que regula a organização de um Estado e rege a vida de uma nação: a Constituição Federal (CF/88). Evidentemente, como norma fundamental do arcabouço jurídico, a Carta Política deve ser o ponto de partida do operador do Direito, seja nas demandas cíveis ou penais.

Os princípios são a base de qualquer matéria a ser discorrida no âmbito jurídico. São normas com elevado grau de generalidade, passível de envolver várias situações e resolver diversos problemas, no tocante à aplicação de normas de alcance limitado ou estreito.

Existem, em nosso mundo jurídico, princípios constitucionais, dispostos, obviamente, na Constituição Federal, tanto expressos quanto implícitos, bem como princípios infraconstitucionais, encontrados em Códigos e leis especiais. Indubitavelmente, aqueles são mais importantes, pelo fato de possuir uma “carga” de status constitucional, compondo, assim, o Texto Fundamental do Estado Democrático de Direito, ao passo que os segundos devem se adequar aos primeiros para uma compreensão satisfatória.

Cumpre, aqui, abordar os mais importantes princípios constitucionais relacionados ao direito à prova, tais como a ampla defesa, contraditório, livre convencimento motivado, busca da verdade real, favor rei e vedação à obtenção de provas ilícitas, tendo em vista a vastidão dessas normas tanto na CF/88 como nos códigos e legislações esparsas.

1.1. AMPLA DEFESA

Vislumbra-se do referido princípio que o Estado tem o dever de oferecer a todo acusado condições para o exercício pleno de seu direito de defesa, possibilitando-o conduzir ao processo em que figura os elementos que julgar necessários ao esclarecimento da verdade. Trata-se de um princípio de suma importância, principalmente pelo fato de constar expressamente no texto constitucional, assim como o princípio do contraditório – que será devidamente estudado na subseção subsequente –, ambos insculpidos no art. 5º, LV, CF/88, que dispõe: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

Logo, infere-se que a defesa constitui um direito inerente à pessoa humana, em qualquer processo instaurado em desfavor da pessoa ré na relação jurídica. Em se tratando de processo administrativo, instaurado, obviamente, pela Administração Pública e seus órgãos, não poderá ser tida como causa de supressão de defesa do réu, como aponta o dispositivo constitucional supracitado. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em construção jurisprudencial, editou a súmula 343, que dispõe: “É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”. Nota-se que a súmula em questão traz um preceito relevante no que tange o impedimento de que a Administração Pública penalize funcionário sem que esse tenha a oportunidade de se defender dos argumentos e provas apresentados no decorrer da instrução em juízo. Ocorre que parte da doutrina considerou a redação da súmula mal feita, posto que contribuiu para a dificuldade de penalização dos crimes cometidos contra a Administração Pública, além de possibilitar a anulação das mais diversas condenações. Baseado nesse fundamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) editou a súmula vinculante nº 5, aduzindo que não há ofensa à Lei Maior a falta de defesa técnica no processo administrativo. Insta salientar, contudo, no que concerne à administração da justiça, é indispensável o papel do advogado, posto que possui inviolabilidade em seus atos e manifestações relativos à profissão, nos limites da lei, conforme o disposto no art. 133 da CF/[88].

No tocante ao processo judicial, particularmente ao Processo Penal, a ampla defesa representa uma proteção, uma oposição ou uma justificação voltada à acusação da prática de um crime. Na definição do renomado professor Guilherme de Souza Nucci:

A autoproteção implica na negativa do fato imputado, seja pela sua inexistência, seja pela fuga da autoria; a oposição significa a concessão de versão diversa da que consta nos termos acusatórios; a justificação promove a legitimação da prática realizada. Essas três formas de instrumentar a defesa precisa compor o ideário de qualquer magistrado, pois há comando constitucional assegurando a amplitude da manifestação do acusado (2010, p. 264, grifo nosso).

Interpreta-se do referido preceito doutrinário que o princípio da ampla defesa representa a mais abundante e extensa possibilidade de preservar o estado de inocência, visto que tanto a autoproteção, quanto a oposição e a justificação têm o condão de resguardar a defesa do interesse indisponível do indivíduo.

Urge destacar que o princípio em epígrafe também possui fundamentação na seara internacional, através do Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992, por meio do Decreto nº 678, o qual dispõe em seu art. 8º, 1, in fine:

Artigo 8º - Garantias judiciais:

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

A doutrina, ainda, faz uma subdivisão do princípio da ampla defesa em dois tipos de grande importância, quais sejam, a autodefesa e a defesa técnica.

A autodefesa é aquela proposta pelo próprio acusado, valendo-se, sobretudo, de seu raciocínio lógico e argumentos, ainda que desprovidos de tecnicismos jurídicos. Por exemplo, durante a instrução processual, mormente no interrogatório, o sujeito poderá se valer da autodefesa através do seu direito ao silêncio constitucionalmente garantido, reafirmando, sobremaneira, o seu estado de inocência. Ressalte-se, todavia, que o princípio da ampla defesa, assim como o do contraditório, serão observados tão-somente a partir da fase de instrução judicial, visto a investigação policial possuir natureza inquisitiva, não cabendo, portanto, o aduzir dos referidos princípios, pelo simples motivo de se estar coletando, ali, provas para a convicção do Ministério Público (MP).

A defesa técnica consubstancia-se, por outro lado, na defesa intrínseca à pessoa habilitada ante órgão responsável, a saber, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e de elevado conhecimento técnico, sendo, portanto, sustentada pelo advogado. Assim, toma-se como exemplo, no momento do ajuizamento da ação penal, a citação do réu para que apresente a sua resposta à acusação – a primeira defesa, como regra –, por meio de seu advogado. De acordo com o procedimento, ocorrerá o interrogatório do réu, dando, a seguir, a sua versão dos fatos – caso não deseje manter direito ao silêncio. Oportunamente, chegando-se à fase de sentença, o juiz verificará, além do exposto pelo agente, as teses técnicas aduzidas pela defesa, para formar a sua convicção, tendo em vista que se menosprezá-las, estará, consequentemente, repudiando o princípio da ampla defesa.

É de registrar, por outro lado, conforme as lições do eminente professor Guilherme Nucci (2010, p. 269), que existe a possibilidade de autodefesa técnica, ou seja, a reunião das duas subdivisões da ampla defesa em um único sujeito, possuindo, então, tanto o poder de autodefesa como o de defesa técnica. Atribui-se tal qualidade ao defensor que comete algum ato reprovável e que, em função disso, é instaurado contra si uma ação penal. Nesse diapasão, está a jurisprudência do STJ, ipsis litteris:

O réu preso e que advoga em causa própria deve ser intimado pessoalmente, ou por carta com aviso de recebimento, da data da sessão de julgamento da apelação por ele interposta, para que possa exercer, amplamente, o seu direito constitucional à ampla defesa que, sabidamente, engloba o direito à autodefesa (HC 143.076-RJ, 6.ª T., rel. Celso Limongi, 06.04.2010).

1.2.CONTRADITÓRIO

O contraditório é um princípio concernente à relação processual, corolário do princípio do devido processo legal, no qual assegura a possibilidade de resposta e a utilização de todos os meios de defesa em Direito admitidos, assim como a ampla defesa, devidamente discutida anteriormente, ressaltando que ambos possuem fundamentação constitucional inserta no art. 5.º, LV, CF/[88].

Quando a Lei das leis dispõe no artigo supra: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa [...]”, quer nos mostrar que a expressão “processo administrativo” se aplica tão-somente ao processo instaurado pela Administração Pública para a apuração de ilícitos administrativos ou fiscais, e não para o inquérito policial, apesar desse ser um procedimento administrativo do tipo inquisitivo, vez que naquele existirá a possibilidade de uma sanção administrativa, e não seria justo que o indivíduo sujeito a tal penalidade não tivesse o direito à defesa. Nesse contexto, Tourinho Filho (2009, v.1, p. 51).

Em se tratando do âmbito processual penal, a garantia do contraditório tem de ser observada com todo rigor, principalmente pelo nosso processo ser tipo acusatório, visto que o réu tem o direito de conhecer a acusação que lhe é imputada, para poder promover a sua contrariedade, evitando, assim, ser condenado sem, ao menos, ser ouvido em juízo. Mas esse princípio não é aplicável apenas ao réu da ação penal, poderá também alcançar o órgão acusatório, decorrente da bilateralidade do processo, ou seja, quando uma das partes alega algo, há de ser ouvida também a outra, dando-lhe oportunidade de resposta.

É interessante notar que a garantia constitucional do contraditório é constituída de dois elementos: informação e reação. O primeiro é o direito constitucional que os sujeitos da ação têm de ser comunicados de todos os atos processuais, por meio da citação, intimação ou notificação. A partir de então, proporciona o exercício do segundo desdobramento, qual seja, de dar o cumprimento ao direito de reação através de audiência bilateral e o direito à prova.

Coerente com esse entendimento está a lição do insigne professor Julio Fabbrini Mirabete, ipsis verbis:

A lei processual regulamenta o princípio do contraditório em dispositivos pelos quais o acusado, ainda que ausente ou foragido, não pode ser julgado sem defensor; deve ser citado para o processo, notificado para os atos processuais e intimado das decisões; pode arrolar o mesmo número de testemunhas que o acusador etc. A preterição desses direitos constitui nulidade, conforme o disposto no artigo 564, III, c, e, f, g, h, l, o, do CPP (2008, p. 24, 25, grifo do autor).

Há um vultoso número de possibilidades da ocorrência do princípio em questão no processo penal, podendo haver contraditório de fatos, de direito, de provas, de alegações e requerimentos, entre outros.

Quando ocorrer com relação a fatos, que é a regra geral, a parte ré, p. ex., manifestar-se-á contrária aos argumentos da outra, cabendo àquela, no exercício do contraditório, oferecer uma versão divergente ou negá-la na sua integralidade ou parcialidade. No que tange ao contraditório do direito – regra excepcional –, poderá a parte prejudicada contestar ou, até mesmo, impugnar, ingressando, dessa forma, no domínio da inconstitucionalidade. A contrariedade de provas também poderá ser considerada uma das modalidades de ocorrência do princípio em foco, vez que a prova é o instrumento que o magistrado se vale para demonstrar a veracidade dos fatos. Há falar, por outro lado, do contraditório de alegações e requerimentos que não deverá imperar em absoluto no processo penal, posto que pode ser interpretado como ato protelatório ao andamento do processo. Nucci (2010, p. 289) exemplifica que existem requerimentos retratando o simples cumprimento da lei, não cabendo, dessa forma, a utilização de tal princípio, visto ser inútil ao normal prosseguimento da ação.

Saliente-se que todos esses exemplos são passíveis de nulidade se não for observado o princípio em deslinde. Por outro lado, assim como no princípio da ampla defesa, também não caberá o contraditório na fase inquisitiva, pelos mesmos motivos já explanados outrora. Nesses termos, estão as jurisprudências dos Tribunais Superiores:

Prova nova apresentada pelo Ministério Público em contrarrazões, sem vista a defesa. Consideração pelo acórdão. Inadmissibilidade. Ofensa ao princípio do contraditório (art. 5.º, LV, da CF). Ordem concedida. É nula a decisão que se remete, expressamente, a provas admitidas sem contraditório em contrarrazões de recurso

(STF, HC 87.114-SP, 2.ª T., rel. Cezar Peluzo, 04.12.2009, grifo nosso).

As provas produzidas na fase inquisitiva – cujo exame pericial, nesse momento iniciado, encerrou-se quando já deflagrado o processo penal – não impõem, para sua validez, o exercício da ampla defesa e do contraditório, que restam postergados para a fase de instrução e julgamento, dando à defesa oportunidade de formular quesitos e requerer a realização de laudos complementares

(STJ, HC 91.903-SP, 5.ª T., rel. Arnaldo Esteves Lima, 18.02.2010, grifo nosso).

Importante assinalar a existência, em nosso ordenamento jurídico, da Súmula 523 da Suprema Corte que certifica constituir nulidade absoluta, no processo penal, a falta de defesa, no entanto, a sua deficiência só o invalidará se houver fundada prova de prejuízo para o réu. Extrai-se, portanto, da redação do Excelso Pretório, que inexistindo defesa ocorrerá nulidade absoluta do processo, sendo presumida e não convalidável, todavia, a partir do momento em que restar comprovado que a insuficiência defensiva trouxe, de alguma forma, dano ao réu, ela não será anulada. Não há falar em nulidade relativa da segunda parte do enunciado sumular, apesar de constar no texto a exigência de prova de prejuízo para o réu. Trata-se, na verdade, de uma excepcionalidade à nulidade absoluta, vez que se refere à matéria de garantia constitucional, consubstanciado nos princípios da ampla defesa e contraditório.

1.3. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO

O princípio do livre convencimento motivado aduz que o juiz, ao valorar as provas existentes no processo para proferir a sua sentença, não ficará mais submetido ao formalismo da lei, ou seja, embasará sua decisão conforme a solução que lhe pareça mais adequada ao caso concreto, em consonância com todo o sistema probatório carreado aos autos, todavia, apesar de não estar sujeito “totalmente” a tais formalidades, sua decisão não deverá estar à margem da lei ou da Constituição da República.

De toda a sorte, em homenagem ao princípio consagrado, a Lei Maior, em seu art. 93, IX, reza que todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos e suas decisões deverão ser motivadas, sob pena de ser consideradas nulas, podendo, inclusive, a lei complementar de iniciativa do STF, limitar a presença às próprias partes e a seus advogados, ou somente a esses, nos casos em que o direito à intimidade e à preservação do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

O princípio em tela também é chamado, por parte da doutrina, como princípio da persuasão racional, configurado na Lei Adjetiva Penal sob o art. 155, que dispõe:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

O dispositivo supramencionado, portanto, veta a possibilidade de o magistrado julgar qualquer processo mediante eventuais conhecimentos de fatos fora dos autos, sendo esses considerados como se inexistentes fossem. Não obstante ao consagrado pelo CPP, a Lei Processual Civil, nos ditames do art. 131, preconiza que o juiz poderá apreciar livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias dispostas nos autos, mesmo que as partes não tenham alegado, devendo especificar, na sentença, os motivos que formaram o seu convencimento.

O professor Tourinho Filho ensina que:

[...] O Juiz, em face das provas existentes nos autos, tem inteira liberdade na sua apreciação. Pode desprezar o depoimento de quatro testemunhas, por exemplo, e respaldar sua decisão num único depoimento. Este é o princípio do livre convencimento. Confere-se ao juiz inteira liberdade na apreciação das provas, conquanto fundamente sua decisão. Ele só pode proferir uma decisão com fundamento em prova colhida sob o crivo do contraditório, nada o impedindo de reforçar seu entendimento respaldado em provas cautelares não repetíveis e antecipadas [...] (2009, v.1, p. 45).

Cumpre observar que a fundamentação das decisões judiciais – leia-se, sentença, acórdão ou decisão interlocutória – abrange tanto as de caráter jurisdicional, como administrativo, excluindo-se da exigência de motivação tão-somente os despachos de mero expediente, vez que ausentes o caráter decisório.

Nessa ordem, colaciona-se o entendimento do Tribunal Supremo acerca do princípio em questão:

RECURSO EM HABEAS CORPUS RECEBIDO COMO HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO JUIZ. VALORAÇÃO DE PROVAS. CONFISSÃO. [...] 3. Vige em nosso sistema o princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, segundo o qual compete ao Juiz da causa valorar com ampla liberdade os elementos de prova constantes dos autos, desde que o faça motivadamente, com o que se permite a aferição dos parâmetros de legalidade e de razoabilidade adotados nessa operação intelectual. Não vigora mais entre nós o sistema das provas tarifadas, segundo o qual o legislador estabelecia previamente o valor, a força probante de cada meio de prova. 4. Tem-se, assim, que a confissão do réu, quando desarmônica com as demais provas do processo, deve ser valorada com reservas. Inteligência do artigo 197 do Código de Processo Penal. 5. A sentença absolutória de 1º grau apontou motivos robustos para pôr em dúvida a autoria do delito. Malgrado a confissão havida, as demais provas dos autos sustentam, quando menos, a aplicação do princípio do favor rei. 6. Habeas corpus concedido.

(STF – RHC 91691 SP, 1.ª T., rel. Menezes Direito, 19.02.2008).

1.4. BUSCA DA VERDADE REAL

De acordo com a moderna concepção no que tange ao processo, não mais se admite que o órgão jurisdicional aja como se fosse um mero observador da demanda judicial. Cumpre ao Estado-juiz, reconhecida sua autonomia, em especial no processo criminal, exercer o jus puniendi estatal tão-somente contra aquele que efetivamente tenha cometido uma infração penal, nos limites de sua culpabilidade.

O Processo Penal, para tanto, não precisa encontrar limites na forma ou na iniciativa das partes, ao contrário, é imposto a esse ramo do direito público a busca e o descobrimento da verdade material, ou seja, cumpre ao Estado-juiz apurar muito além dos limites da verdade formal, com o fito determinado de efetivar a pretensão punitiva contra aquele que realmente tenha cometido um ilícito penal. Nesse diapasão, o juiz poderá “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (art. 156, II, CPP).

Importante assinalar as diferentes vertentes seguidas tanto pelo Direito Processual Civil como pelo Direito Processual Penal no que tange à liberalidade do princípio em voga. Quanto ao Processo Civil, é chamada verdade formal aquela decorrida por atos ou omissões das partes, presunções, ficções, transações e outros institutos jurídicos afins. Aqui, o órgão jurisdicional pode convencer-se com a verdade formal, ou seja, limita-se a acolher o que as partes levam ao processo. Desse modo, confiando no real interesse das partes em descobrir a verdade, o juiz pode limitar-se às provas trazidas aos autos, posto que se considera procedimento, de certa forma, aceitável, tendo em vista a disponibilidade dos direitos em questão.

De outra banda, na seara processual penal, os direitos são indisponíveis, numa evidente e notória preponderância do interesse público sobre o interesse particular, o que, per si, configura razão suficiente para o predomínio do sistema da livre avaliação das provas, o que será abordado em capítulo posterior.

Imperioso aferir o dever do julgador de dar andamento ao processo quando houver inércia da parte, em ação penal pública, determinando de ofício a produção de provas pelas partes que entender necessárias à instrução da ação, em atividade probatória supletiva, conhecendo de circunstâncias sem a ocorrência de provocação das partes, sempre com o escopo de buscar o ‘completo’ esclarecimento da verdade real. Nesse sentido, preciosos os ensinamentos do ilustre professor Tourinho Filho, in verbis:

De fato, enquanto o Juiz não penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por elas debatidos, no Processo Penal o Juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, quem realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça (2009, v.1, p. 38).

Inconteste a afirmação de que o princípio da busca da verdade real não se apresenta de forma plena em nosso Processo Penal. Variados exemplos de mitigação do princípio em deslinde podem ser constatados em algumas situações, tais como: o juiz absolve o réu e, após transitar em julgado a sentença absolutória, não será possível rescindi-la, mesmo quando surjam provas concludentes contra o mesmo réu pelo mesmo fato; a perempção provocada pela omissão ou desídia do querelante; e outras causas de extinção da punibilidade que, de alguma forma, possam impedir a descoberta da verdade real. Como indaga e, ao mesmo tempo, responde Tourinho Filho (p. 39, 2009), “Ficou sacrificada a verdade real? Em rigor sim”. Note-se que tal princípio, apesar de não vigorar em toda sua plenitude no âmbito processual penal, é bem mais intensivo que na seara civil, posto que, aqui, uma sentença equivocada em favor ou contra determinada pessoa não comportará reexame, após o trânsito em julgado, ressalvada a hipótese de ação rescisória.

1.5 .“FAVOR REI”

É um princípio constitucional também chamado pela doutrina como favor libertatis ou favor innocentiae. Pode ser considerado como um dos de mais destaque pela sua importância no Direito Processual Penal, visto consagrar que nas situações em que há a possibilidade de duas interpretações díspares de uma norma, cujo entendimento não puder ser feito de forma única, a solução será em escolher aquela em que for mais favorável ao réu, ou seja, no conflito entre o jus puniendi do Estado e o jus libertatis do acusado, conforme aponta Tourinho Filho (2009, v.1, p. 75), o peso maior firma-se para o lado desse, tendo em vista o preceito maior de que, na dúvida, sempre prevalece o interesse do sujeito passivo da relação processual.

O doutrinador Fernando Capez, no tocante ao princípio em foco, corrobora:

A dúvida sempre beneficia o acusado. Se houver duas interpretações, deve-se optar pela mais benéfica; na dúvida, absolve-se o réu, por insuficiência de provas; só a defesa possui certos recursos, como [...] os embargos infringentes; só cabe ação rescisória penal em favor do réu (revisão criminal) etc. (2008, p. 44).

O CPP consagra esse princípio em diversos dispositivos. Pode-se citar como exemplo, o art. 386, V, VI e VII que permite a absolvição do réu pelo juiz nos casos em que não há provas de concorrência para a prática da infração penal, de existência de circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena, e de inexistência de provas suficientes para a sua condenação, respectivamente. Também, toma-se como exemplo, o art. 617 que proíbe o aumento da pena pelo tribunal, quando somente o réu tiver apelado da sentença, aclamando a proibição do reformatio in pejus; a regra do art. 615, § 1.º, no qual dispõe que no julgamento de recursos, em caso de empate de votos, se o presidente do tribunal, câmara ou turma não proferir voto de desempate, prevalecerá a posição mais benéfica ao réu. Não se pode esquecer também, a título de exemplo, do princípio da presunção de inocência, elevado a status constitucional.

Nesse diapasão, posiciona-se o STJ, in verbis:

DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ARQUIVAMENTO DO FEITO. RECONHECIMENTO DE ATIPICIDADE DO FATO. DECISÃO PROFERIDA POR JUÍZO ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE. PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA MILITAR POR FATO ANALISADO NA JUSTIÇA COMUM. IMPOSSIBILIDADE: CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL PERANTE O JUÍZO COMPETENTE. IMPOSSIBILIDADE. COISA JULGADA. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. A teor do entendimento pacífico desta Corte, o trancamento da ação penal pela via de habeas corpus é medida de exceção, admissível quando emerge dos autos, de forma inequívoca, entre outras hipóteses, a atipicidade do fato. 2. A decisão de arquivamento do inquérito policial no âmbito da Justiça Comum, em virtude de promoção ministerial no sentido da atipicidade do fato e da incidência de causa excludente de ilicitude, impossibilita a instauração de ação penal perante a Justiça Especializada, uma vez que o Estado-Juiz já se manifestou sobre o fato, dando-o por atípico (precedentes). 3. Ainda que se trate de decisão proferida por juízo absolutamente incompetente, deve-se reconhecer a prevalência dos princípios do favor rei, favor libertatis e ne bis in idem, de modo a preservar a segurança jurídica que o ordenamento jurídico demanda. Precedentes. 4. Ordem concedida, acolhido o parecer ministerial, para trancar a Ação Penal n.º 484-00.2008.921.0004, em trâmite perante a Auditoria Militar de Passo Fundo/RS

(STJ – HC 173.397 RS 2010/0091949-3, 6.ª T., rel. Maria Thereza de Assis Moura, 17.03.2011, grifo nosso).

No mesmo sentido, está a jurisprudência uníssona do Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

PENAL E PROCESSUAL. CONDENAÇÃO POR TRÁFICO DE DROGA. PRETENSÃO A REGIME ABERTO. IMPROCEDÊNCIA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA. POSSIBILIDADE. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. 1. Réu condenado por infringir o artigo 33 da lei 11.343/06, eis que adquiriu de outro traficante pasta base de cocaína com o intuito de revendê-la, mas a carga foi apreendida com seu irmão, que viera a Brasília apenas para transportá-la para Porto Nacional, TO. 2. Se a sentença reconhece a presença dos pressupostos legais do art. 33, 4º, da lei de regência, não se justifica redução menor do que a fração máxima prevista na norma sem motivo justificado. Há sempre que prevalecer interpretação mais favorável ao réu, pelo princípio do favor rei, devendo a pena ser reduzida pela fração máxima de dois terços, salvo havendo fundamentação idônea que não a recomende. 3. a quantidade de droga apreendida e a nocividade da substância tóxica, em razão do poder viciante e das nefastas consequências sociais, desaconselham a substituição da pena por restritivas de direitos. 4. Recurso parcialmente provido

(TJDF - APR 1101445720098070001 DF 0010144-57.2009.807.0001, 1.ª T., rel. George Lopes Leite, 23.03.2011, grifo nosso).

1.6. VEDAÇÃO À OBTENÇÃO DE PROVAS ILÍCITAS

O princípio em voga gerou muita polêmica e embates entre os juristas antes de sua elevação a nível constitucional, pelo fato da sua imensurável importância na dosagem da formação do convencimento do magistrado acerca da lide. Em momento precedente ao advento da Carta Política de 1988, não havia uma regra que impedisse a produção de provas em juízo em descumprimento a normas de direito material, ou seja, seria aceitável que se apresentassem provas oriundas de transgressões a tais normas. Devido a isso, muitos doutrinadores e juristas buscavam solucionar o problema da ausência de norma a despeito do princípio em testilha, isto é, uma corrente defendia a total inadmissibilidade desse tipo de prova, e outra acreditava que deveria haver um equilíbrio de valores no caso concreto, haja vista que, em determinadas situações, a não aceitação poderia gerar gravíssima injustiça para a parte.

Com a nossa atual Constituição da República, hodiernamente, percebe-se que tal entrave parece estar consolidado, posto que o art. 5º, LVI, da CF/88, vaticina que, no processo, são inadmissíveis as provas obtidas ilicitamente, entretanto, não somente a afronta à CF/88 que implica no ensejo da proibição em epígrafe, como também o desrespeito ao direito material e processual. O CPP consagra o princípio em tela no art. 157, caput, alterado pela Lei n.º 11.690/2008, que disciplina: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Sendo esse o contexto, exemplifica o ilustríssimo doutrinador Tourinho Filho (2009, p. 59), que “[...] uma busca e apreensão ao arrepio da lei, uma audição de conversa privada por interferência mecânica de telefone, [...], enfim, toda e qualquer prova obtida ilicitamente [...], não será admitida em juízo.”

Merece transcrição, também, os ensinamentos do doutrinador Guilherme de Souza Nucci, in fine:

O princípio significa a proibição de se valer de provas – elementos destinados à demonstração da verdade, persuadindo o julgador – maculadas pelo vício de origem, vez que extraídas por mecanismos ilícitos. De nada adiantaria a formação de um processo repleto de garantias constitucionais, focado no juiz e no promotor imparciais, com direito à ampla defesa e ao contraditório, realizado publicamente, para a segurança de todos, além de formalizado por inúmeras regras garantistas se o principal núcleo de avaliação, voltado à apuração da verdade dos fatos, estivesse manchado pela ilicitude.

..........

A vedação constitucional não diz respeito à formação da prova ilícita, quando por meios lícitos, mas, sim, à obtenção da prova ilícita, por mecanismos ilícitos (2010, p. 322, 323).

Cumpre destacar, contudo, que prova ilícita é uma espécie da qual o gênero é a “ilicitude” ou “prova ilegal”, como parte da doutrina também costuma denominar, e, além daquela, essa, ainda, possui a chamada prova ilegítima como uma segunda espécie. A primeira, prova ilícita, como já enfocado em parágrafos anteriores, constitui uma ofensa ao direito material, como, p. ex., a tortura, gerando, dessa forma, nulidade absoluta. Ao passo que a segunda, prova ilegítima, ofende o direito processual, como exemplo o despacho não fundamentado, possuindo, a contrario sensu, nulidade relativa, ou seja, até poderá ser reproduzida em juízo, contanto que a formalidade processual seja devidamente corrigida.

A produção de provas ilícitas, como se tem sustentado ao longo da subseção desse capítulo, como regra, tem por resultado a sua abolição do processo. Por outro lado, em se tratando de prova imprescindível para garantir a inocência do acusado, de forma alguma poderá ser ignorada, tendo em vista o antigo e eterno conflito entre a moral e o direito, ou seja, o dever do operador é lutar pelo direito, mas a partir do momento em que encontrar o direito em conflito com a justiça, opta-se pela última. Dessa forma, apesar do papel do Estado em garantir a aplicação plena da lei, vedando, assim, a produção de provas ilícitas, deve-se primar pela justiça, para que não resulte em erro judiciário, prevalecendo-se, pois, o interesse do réu.

Nesse contexto, assevera o professor Guilherme de Souza Nucci:

Se a prova se forma em torno da culpa do réu, objetivando alterar seu natural estado de inocência, obtida uma prova segura de sua não culpabilidade, embora advinda de meios ilícitos, deve-se utilizá-la, garantindo-se a harmonia maior dos princípios constitucionais. Apure-se e puna-se, se for o caso, o produtor da ilicitude, mas não se deve desprezar a prova da inocência, pois o fim maior do processo é a realização da justiça (2010, p. 324, grifo nosso).

Em sede jurisprudencial, assim como na doutrina, há um temperamento quanto à vedação das provas ilícitas, ou seja, é pacífico o entendimento de que prova ilícita é tida como inexistente, devendo ser desentranhada do processo, conforme o disposto no caput do art. 157, do CPP. Percebe-se, porém, uma mitigação da garantia constitucional estabelecida no art. 5º, LVI, da CF/88 pelo STF. Nesses passos, por exemplo, o órgão supremo já se pronunciou acerca de licitude na gravação de conversa telefônica, feita pela vítima, capturando diálogos entre os criminosos. Nesse aspecto, está a jurisprudência do Excelso Pretório:

AGRAVO REGIMENTAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ARTIGO 5º, XII, LIV e LVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO QUE AFIRMA A EXISTÊNCIA DE INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA ILÍCITA PORQUE EFETIVADA POR TERCEIROS. CONVERSA GRAVADA POR UM DOS INTERLOCUTORES. PRECEDENTES DO STF. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Alegação de existência de prova ilícita, porquanto a interceptação telefônica teria sido realizada sem autorização judicial. Não há interceptação telefônica quando a conversa é gravada por um dos interlocutores, ainda que com a ajuda de um repórter. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 2. Para desconstituir o que afirmado nas decisões impugnadas, seria necessário amplo exame do material probatório, o que é inviável na via recursal eleita. 3. Agravo regimental a que se nega provimento

(STF - RE-AgR 453562 SP, 2.ª T., rel. Joaquim Barbosa, 23.09.2008).

No tocante às provas ilegítimas, que são aquelas obtidas em divergência da lei processual penal, também são nulas, cabendo à parte interessada apontar a referida nulidade ou ao próprio juiz declará-la ex officio. Ocorre que a nulidade em questão é relativa, podendo ser convalidada, isto é, conforme o vício que carrega em seu bojo, pode ser sanado e aproveitado o ato processual, mas se for um defeito de gravidade exorbitante, não poderá ser utilizado, devendo-se, então, refazê-lo. Nesse sentido, as disposições constantes no art. 563: “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”; e no art. 566; “não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa”, todos do CPP.

Do mesmo modo que as provas ilícitas são inadmissíveis, não obstante as exceções já explanadas, as originadas por derivação dessas, consequentemente, também são, consoante o disposto no § 1º do art. 157, do CPP. Como assevera Nucci (2010, p. 327): “são igualmente inadmissíveis [...] as provas resultantes das originalmente ilícitas, formando uma corrente, cujos elos são interligados de modo invariável”. Os nossos tribunais vêm adotando esse entendimento de que essas provas resultam contaminadas – Teoria da árvore dos frutos envenenados ou fruits of the poisonous tree –, e, portanto, também ilícitas e inadmissíveis. Assim, está a decisão do TRF-4.ª Região acerca do tema:

A obtenção da prova, mesmo no âmbito do inquérito policial, deve observar certos princípios e regras, sob pena de ser considerada nula e não se prestar ao embasamento de eventual e futura ação penal. Não pode o juízo limitar-se a negar os pedidos formulados no curso do apuratório somente sob a alegação de que em tal fase não vige o direito de defesa e do contraditório. Com efeito, acolhida a doutrina da contaminação dos frutos da árvore envenenada – fruits of the poisonous tree –, necessariamente teremos de reconhecer que as provas ilícitas (inclusive por derivação) devem ser consideradas nulas, independentemente do momento em que foram produzidas (HC 2008.04.00.06100-1-PR, 8.ª T., rel. Paulo Afonso Brum Vaz, 02.04.2008).

Frisa-se, por oportuno, que o STF, recentemente, tem aceitado a utilização do princípio da proporcionalidade para a fundamentação das decisões de alguns de seus julgados, admitindo a prova ilícita por derivação, todavia, somente em prol da defesa, ou seja, pro reo, e jamais favorável ao Estado ou pro societate, visto considerar o princípio da inocência acima de outros valores, inclusive dos públicos, posto estar lidando com a privação da liberdade de um indivíduo.


2. DIREITO À PROVA NO PROCESSO PENAL

Um dos temas mais importantes e relevantes da processualística penal é o direito à prova, imprescindível para o recolhimento de elementos necessários à realização da justiça, alcançando-se, assim, a verdade real pelo magistrado. Na medida em que esse é provocado a exercer a sua função jurisdicional, deverá declarar o direito em questão e, no que tange em particular ao processo penal, identificar a responsabilidade criminal, fixando a respectiva sanção ou não – em se tratando de improcedência da pretensão punitiva do Estado – ao sujeito que praticou o delito, de acordo com o seu livre convencimento. O julgador deverá fundamentar a sua decisão de acordo com as provas produzidas ao longo da instrução, levando-se em consideração todo o arcabouço probatório apresentado pelas partes, posto ser um direito público subjetivo, com o fito de extrair os elementos que basearão a futura sentença, seja condenatória ou absolutória, devendo ser, acima de tudo, justa e coerente com o material probante realizado.

Importante assinalar que o direito à prova está introduzido na garantia constitucional do due process of law, ou seja, o órgão jurisdicional tem a obrigação de proporcionar aos sujeitos da lide, no caso concreto, a plena participação na produção das provas a que o juiz achar conveniente, posto que a afronta a esse pressuposto estaria prejudicando o contraditório e, consequentemente, o devido processo legal.

Nesse capítulo serão abordados e discutidos apenas alguns meios de provas que possuem correlação ao estudo da psicografia como prova jurídica lícita, a saber, a prova documental, a pericial, o interrogatório do réu e a testemunhal. Os demais meios expressos no CPP, apesar da grande importância no ordenamento jurídico, não serão objetos de estudos da presente monografia.

2.1 CONCEITO DE PROVA

O termo “prova”, etimologicamente, vem do latim probatio, emanado do verbo probare, significando reconhecer, verificar, formar juízo de, confirmar, examinar, aprovar, ensaiar etc. No sentido jurídico, entende-se ser a demonstração pelas partes da existência da veracidade de um ato jurídico ou de um fato material, com o escopo de convencer o julgador a respeito da verdade ocorrida sob a óptica de quem o alega, isto é, constituirá a prova a exposição dos fatos em que se fundamenta a pretensão do autor e daquilo que o réu atesta em contraposição ao arguido por aquele.

A reforma recente do CPP, em 2008, não retirou do juiz os poderes instrutórios para a produção de provas, apenas deixou-o em papel secundário, privilegiando a atuação das partes. Porém, o magistrado continua capaz de buscar livremente a verdade dos fatos que são levados ao seu conhecimento pelos protagonistas do processo, com o escopo de comprovar a veracidade de uma afirmação, desde que não ilícitos ou imorais, constituindo, dessa forma, prova para o seu julgamento, sem comprometer o princípio da imparcialidade do julgador ou o princípio da inércia, inalterando o sistema acusatório.

Registra-se que a prova não acarreta em uma obrigação, mas sim em um ônus, ou seja, a faculdade ou o encargo que a parte possui para demonstrar o que alegou em seu próprio benefício, durante a instrução processual – é o que dispõe o art. 156 do CPP, primeira parte, alterado pela Lei nº 11.690/2008. Nesses termos, colaciona-se o ensinamento do magnânimo professor Camargo Aranha (1996, p. 8): “Ônus probandi é, pois, o encargo que têm os litigantes de provar, pelos meios admissíveis, a verdade dos fatos, conforme for a distribuição de tal imposição.

Ocorre, entretanto, que no processo penal, após oferecida a denúncia, nas ações penais públicas, cabe exclusivamente ao Ministério Público provar o fato delituoso, ou à vítima, quando da propositura da queixa-crime, nas ações penais privadas, devendo a defesa se ater somente aos fatos extintivos, modificativos ou impeditivos da pretensão acusatória, tendo em vista que o não cumprimento do ônus por parte do réu não culmina, necessariamente, à procedência da imputação penal, pois, aqui, o ônus da prova é diminuído ou imperfeito, como denomina a doutrina pátria, de acordo com o princípio in dubio pro reo, que leva à absolvição em casos de imputação duvidosa. Cabe, ainda, ao autor – MP ou querelante – fazer prova do dolo e da culpa (negligência, imprudência ou imperícia) do acusado. Assim, leciona o professor Fernando Capez:

A prova da alegação (ônus probandi) incumbe a quem a fizer (CPP, art. 156, 1ª parte). Exemplo: cabe ao Ministério Público provar a existência de fato criminoso, da sua realização pelo acusado e também a prova dos elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa); em contrapartida, cabe ao acusado provar as causas excludentes da antijuricidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como circunstâncias atenuantes da pena ou concessão de benefícios legais. Caso o réu pretenda a absolvição com fulcro no art. 386, I, do Código de Processo Penal, incumbe-lhe ainda a prova da “inexistência do fato” (2008, p. 317).

No mesmo sentido, entende o doutrinador Julio Fabbrini Mirabete:

No processo penal condenatório, oferecida a denúncia ou queixa cabe ao acusador a prova do fato e da autoria, bem como das circunstancias que causam o aumento de pena (qualificadoras, agravantes etc.); ao acusado cabe a prova das causas excludentes da antijuricidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como das circunstâncias que impliquem diminuição de pena (atenuantes, causas privilegiadoras etc.) ou concessão de benefícios penais [...] (2008, p. 258).

Impende observar que o art. 156, segunda parte, e incisos I e II, do CPP, traz a possibilidade de atuação do magistrado no que concerne à produção de provas. Destaca-se, por oportuno, o termo “mesmo antes da ação penal”, constante no inciso “I” do artigo retro, deve ser analisado e interpretado conforme o sistema constitucional pátrio, ou seja, o magistrado só produzirá provas, na fase inquisitorial, de acordo com o pedido da parte interessada e não ex officio, só o podendo se houver processo instaurado, nesse último caso, sob o risco de incorrer em inconstitucionalidade.

Enfatiza-se, oportunamente, o momento para a produção da prova durante a instrução do processo. Na definição de Couture apud Aranha (1996, p. 39): “Produção da prova vem a ser o conjunto de atos processuais que é mister para trazer a juízo os diferentes elementos de convicção oferecido pelas partes.”

Para a acusação, seja em ação penal pública ou privada, no momento de oferecimento da denúncia ou queixa, há a exigência prévia de juntada de determinadas provas, e um dos principais requisitos, quiçá o mais importante, ao lado das condições da ação, é a existência da justa causa penal em face do sujeito passivo do processo, confirmando, assim, a sua autoria e materialidade do crime, embora grande parte da doutrina entenda que a justa causa está intrínseca ao interesse de agir, que é uma das condições da ação. O professor Camargo Aranha enumera alguns procedimentos especiais que exigem provas determinadas para a instauração da ação penal, bem como as peças especiais, ipsis verbis:

[...] b) nos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (documentação ou justificação) de natureza especial, fazendo presumir a existência de um crime (CPP, art. 513); c) nos crimes contra a propriedade imaterial e que deixam vestígios será necessário o exame pericial dos objetos que constituem o corpo de delito, a ser feito na forma prevista pelo processo específico (CPP, arts. 524 e 525); d) o exemplar do jornal ou periódico ou a notificação (art. 57) nos casos previstos pela Lei n. 5.250 (art. 43) (1996, p. 40).

Frisou-se, anteriormente, que a denúncia, como regra geral, virá instruída com as provas colhidas durante a investigação criminal, realizada pela polícia judiciária, sendo que serão obtidas mediante uma instrução preparatória, porém, servirá apenas para dar embasamento à denúncia ou queixa, demonstrando a justa causa penal do agente. A verdadeira instrução probatória se dará quando já proposta a ação penal – pública ou privada –, pois passará, nessa fase, pelo crivo do contraditório e ampla defesa, sendo bastante para embasar uma decisão condenatória ou absolutória, conforme o caso.

Urge destacar que apesar de determinadas provas colhidas na fase policial serem de grande importância, p. ex., exame pericial, devem, via de regra, ser repetidas em juízos, pelo mesmo motivo exposto alhures. Entretanto, quando se tornar impossível a sua realização na fase judicial, denominando-se “provas irrepetíveis”, servirão para embasar a decisão do julgador, tendo em vista ter tornado-se perecíveis, como é o caso de desaparecimento de vestígios do crime, o que impossibilitaria a realização de um novo exame de corpo de delito.

O momento principal para a produção de provas é durante a audiência de instrução e julgamento, tendo em vista o nosso Código Processual adotar o princípio da oralidade, devendo ser ouvido, nessa fase, o ofendido, as testemunhas arroladas, realizada as acareações devidas, entre outros. No tocante à prova documental, essa poderá ser apresentada em qualquer fase do processo, salvo os casos excepcionais. Ressalte-se que tais meios de provas serão devidamente analisados amiúde nas seções subsequentes desse capítulo.

2.2 CLASSIFICAÇÃO DAS PROVAS

Em nosso ordenamento jurídico surgiram diversas classificações concernentes às provas, porém, a que mais se destacou, por ser mais perfeita e prestigiada pela jurisprudência, foi a do doutrinador Nicola Framarino dei Malatesta, agraciado pelo professor Camargo Aranha, em sua obra “Da prova do processo penal” (1996), que leva em consideração a natureza e a produção das provas, assentando tal classificação em três critérios: o do conteúdo ou objeto, o do sujeito e o da forma com que se apresenta a prova.

Quando se fala em conteúdo ou objeto, refere-se ao fato o qual deseja ver reconhecido. Essa classificação desdobra-se em direta ou indireta. Será direta quando a prova produzida referir-se imediatamente ao fato probando, e indireta quando disser respeito a fato diverso, chegando-se à conclusão final através de um raciocínio. Exemplifica Camargo Aranha:

Quando uma pessoa é chamada em juízo e, depondo, afirma ter visto o réu, de arma em punho, ameaçando a vítima e retirando bens, temos uma prova direta sobre o roubo, pois se está falando sobre o próprio fato cuja existência é o fulcro da acusação. Entretanto, se a testemunha afirma apenas ter visto o réu ser preso e com ele encontrado relógio reclamado pela vítima, temos apenas uma prova indireta do roubo, pois para se chegar ao fato probando usaremos do raciocínio indutivo (1996, p. 23, grifo nosso).

Deve-se levar em consideração para o sujeito da prova, a pessoa ou coisa de que dela advém, podendo ser real ou pessoal. Considerar-se-á pessoal quando se tem a afirmação de um sujeito, através de sua consciência, de impressões mnemônicas, seja por conhecimento próprio, visual, seja por terceiros, por ouvir dizer, p. ex., a prova testemunhal. Figurar-se-á na modalidade real quando a prova puder se manifestada sem qualquer influência humana, mas de um real vestígio do fato que se deseja provar, como acontece com as perícias realizadas em objetos.

Por derradeiro, a última classificação é com relação à forma com que se apresenta a prova, subdividindo-se em testemunhal, documental e material. Apresenta-se como prova testemunhal a produção através de palavras, escritos ou outro processo, como as oitivas das testemunhas, informantes e vítimas, além da acareação. Será enquadrada como prova documental: os escritos particulares e públicos, as cartas, os livros etc., desde que não produzida oralmente. E material, o exame de corpo de delito, perícias técnicas, vistorias, etc., tratando-se da verificação de coisa em sua materialidade.

Repisa-se que, regra geral, a prova obtida em inquérito policial precisa ser repetida em juízo, submetida ao contraditório prévio sob a presença de um magistrado, representante do Ministério Público e de um defensor, seja dativo ou constituído.

2.3 MEIOS DE PROVA

Considera-se meio de prova tudo que possa ser útil a demonstrar a verdade a que se busca no processo, seja direta ou indiretamente, como perícias, documentos, depoimentos, dentre outros. É notório que em nosso ordenamento processual penal vigora o princípio da busca da verdade real, perfeitamente abordado no capítulo 01, seção 1.4, em que não há a possibilidade de limitação ao direito à prova, sob o risco de malograr a justa aplicação da legislação pelo Estado-Juiz.

Apesar do referido entendimento adotado pela doutrina majoritária, o princípio da liberdade probatória não é absoluto, tendo em vista que o parágrafo único do art. 155, do CPP, incluído pela Lei nº 11.690/2008, assevera que no tocante ao estado das pessoas, as restrições estabelecidas na lei civil quanto à prova deverão ser observadas. Outros dispositivos processuais que também demonstram a limitação à prova são o art. 158, CPP – exige o exame de corpo de delito para as infrações que deixarem vestígios, não podendo ser suprido pela confissão do acusado –, art. 5º, LVI, da CF/88, que veda a obtenção de provas obtidas por meios ilícitos, entre outros.

O CPP aborda o tema das provas no Título VII, Capítulos I a XI, artigos 155 a 250. A presente seção dessa monografia abordará os principais meios de provas que estão intrinsecamente ligados à psicografia como prova jurídica lícita, a saber a prova documental, a pericial, o interrogatório do acusado e a testemunhal.

2.3.1 Da prova documental

O nosso Código de Processo Penal vem tratando do tema da prova documental nos arts. 231 a 238. A origem da palavra documento vem do latim doceo, doces, docui, doctum, docere, que tem como significado “ensinar, mostrar, indicar”. Importante assinalar que a definição de “documento” pode ser aferida tanto em sentido amplo quanto em sentido estrito. Naquele é qualquer coisa que representa um fato, como, p. ex., os monumentos históricos, ao passo que nesse insere-se um conteúdo bem mais intelectual, por intermédio de um escrito ou outros sinais, imagens, etc.

A nossa Lei Adjetiva Penal adotou o documento em sentido estrito, pelo que se infere do art. 232 do CPP, no qual “consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares.” Observa-se que o texto infralegal não mencionou como tipos de documentos, naquela definição, as fotografias, desenhos, pinturas, fitas e vídeos gravados. Entretanto, como bem acentua Tourinho Filho:

[...] embora o legislador processual penal conceituasse de maneira tão restrita os documentos, considerando, como tais, apenas os escritos, isto é, os documentos em que a idéia ou o fato é representado pelos sinais gráficos da escrita, o certo, contudo, é que em várias passagens faz alusão a documentos gráficos e diretos (2009, p. 365, v. 3, grifo do autor).

Assim, poder-se-á considerar como documentos os escritos, aqueles representados na forma escrita no papel; os gráficos, representados por outra forma diversa da escrita – desenhos, pinturas, esquemas... – e, ainda, os documentos diretos, quando o fato é representado de forma direta, como, p. ex., fotografias e gravações. Há de se destacar que no tocante ao novo procedimento do júri, o art. 479, parágrafo único, do CPP, com a devida reforma processual, reconheceu como documentos jornais ou qualquer outro escrito, bem como a exibição de gravações, fotografias, laudos, quadros, croqui ou qualquer outro meio assemelhado, devendo ser apresentados em no mínimo três dias úteis antes dos trabalhos do júri popular para dar ciência à outra parte, com o fundamento da aplicação do princípio do contraditório, sob pena de nulidade.

Analisando, ainda, o texto extraído do art. 232 do CPP, o legislador classificou os documentos, quanto ao sujeito que a expediu, em públicos ou particulares. Será público o documento expedido na forma prescrita em lei, quando lavrado por funcionário público no exercício de sua função ou fornecida pela repartição pública, como, p. ex., uma carteira de habilitação, uma escritura pública entre outros. Será particular ou privado quando feito ou assinado por particulares sem a interferência de um funcionário público no exercício de suas atribuições. A doutrina, ainda, traz muitas outras classificações relativas aos documentos, quais sejam, quanto ao fim, à função probatória, à relação existente entre o autor e o processo, quanto à sua formação e forma. Apesar da relevante importância de tais classificações doutrinárias, data venia, não serão enfocadas no presente trabalho.

O momento para a apresentação do documento, de acordo com o art. 231 do CPP, é em qualquer fase do processo, ressalvando os casos expressos em lei. Então, em regra, enquanto não findo o processo, os documentos podem ser juntados pelas partes; a exceção encontra-se prevista no novo rito do júri, disposto no art. 479, tratando da aceitação da juntada aos autos de documentos com a antecedência mínima de três dias durante o julgamento em plenário, como esposado outrora.

O CPP aceita a apresentação de quaisquer documentos durante a instrução processual, excetuadas as cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos (art. 233). Além do que o próprio magistrado poderá providenciar a juntada do documento, de ofício, caso tenha notícia de sua existência referente a ponto relevante da acusação ou da defesa (art. 234), tudo para a ‘perfeita’ busca da verdade real. Insta ressaltar que nas hipóteses dos art. 233 (documentos interceptados ou obtidos por meios criminosos), art. 243, § 2º (apreensão de documento em poder do defensor/advogado do acusado, se não for elemento do corpo de delito), e se o documento contiver segredo profissional, obstarão a atuação do magistrado para que determine a apreensão e juntada de tais provas.

O documento, obviamente, deve ser legítimo, demonstrando a certeza de sua procedência, assim como a sua autoria, sendo que, em alguns momentos o CPP exige sua autenticação (arts. 235 e 237), chegando, inclusive, a exigir exame pericial quando houver dúvida sobre a autenticidade, no caso específico de documentos particulares, tendo em vista que os públicos gozam, em princípio, de legitimidade, tendo em vista ser emanados por repartições e lavrados por funcionários públicos dotados de fé pública.

No que tange aos documentos escritos em língua estrangeira, o CPP assevera, com disposição no art. 236, que deverão ser traduzidos por tradutor público ou, na falta desse, por pessoa idônea a ser nomeada pelo magistrado, podendo ser, após, imediatamente juntada aos autos do processo. Quanto à desnecessidade de documento no processo, não tendo, dessa forma, mais utilidade, pode a parte requerer o seu desentranhamento dos autos, e o magistrado, após a oitiva do MP, determinar a entrega do documento ao requerente, conforme se estatui do art. 238, do novel diploma processual penal. Vale ressaltar que nem todo documento poderá ser desentranhado do processo, mesmo esse findado, pelo fato do advento de uma sentença penal condenatória, na qual garantirá, a qualquer tempo, a revisão criminal, já que os autos originais poderão ser requisitados para a juntada de uma futura ação revisional.

Há de se observar que a carta psicografada está intimamente ligada como um meio de prova documental e, acima de tudo, dotada de licitude, pois não afronta, evidentemente, o nosso ordenamento jurídico quanto a sua elaboração, seja constitucional seja infraconstitucional, isto é, não há qualquer lei no sentido de aceitar ou não o documento psicografado como prova processual, cabendo, exclusivamente, ao julgador aceitá-la ou não como prova a ser carreada aos autos. O mais interessante é que já houve, na história do Direito brasileiro, a utilização desse tipo de mensagem espiritual como prova jurídica na prática forense, principalmente nas sessões do Tribunal do Júri popular. Adiante, em capítulo próprio, tratar-se-á da sua admissibilidade como prova lícita.

2.3.2 Das demais provas
2.3.2.1 Da prova pericial

A prova pericial está estatuída nos arts. 158 a 184 do CPP. Perícia é o exame realizado por profissionais com conhecimentos técnicos e específicos para aquele determinado fato, com o objetivo de servir como prova para dar embasamento à decisão do magistrado. O Processo Penal Brasileiro destaca que o referido exame deverá ser realizado por perito oficial, portador de diploma de curso superior, e, na sua falta, por duas pessoas idôneas e diplomadas em um curso superior, preferencialmente na área específica, conforme giza o art. 159 do CPP.

É importante destacar que as perícias técnicas estão, a cada dia da prática forense, tomando caminhos mais precisos e fundamentais para a certeza do fato ocorrido. Análises químicas, exames de DNA, laudos diversos, entre outros, são exemplos rotineiros de que a perícia serve de suporte à constatação e elucidação dos fatos, posto quanto maior o grau de precisão das análises, maior o convencimento permitido ao juiz na intensa busca da verdade real.

Ora, é certo que o juiz não está vinculado à valoração e opinião do perito, podendo se valer de seu livre convencimento motivado para aceitar ou rejeitar o laudo no todo ou em parte, posto que a perícia, em si, não caracteriza verdade absoluta, de acordo com o entendimento subjetivo de cada magistrado.

Um fator é evidente no processo penal: quando o fato perpetrado pelo agente deixar vestígios, indispensável se faz o exame de corpo de delito, seja direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado – art. 158, CPP –, ou seja, caso não se efetue a referida perícia, como, p. ex., nos crimes de homicídio, roubo, estupro, lesão corporal etc., acarretará nulidade do processo. Então, infere-se que o legislador procurou dar um valor maior à prova pericial, especialmente no que tange ao exame de corpo de delito.

Observa-se, por derradeiro, que o artigo em voga trata de exame de corpo de delito direto e indireto. O primeiro é aquele realizado pelo perito técnico diretamente no corpo de delito, ao passo que o último será quando não for possível o exame direto nos vestígios do crime por ter desaparecido; assim, outros meios – tidos como indiretos – servirão como exame de corpo de delito, podendo ser a prova testemunhal, a prova documental e outros.

No tocante à carta psicografada, o exame pericial é fundamental para constatar a autenticidade do documento escrito. Trata-se de exames grafotécnicos ou grafológicos, no qual serão confrontados documentos padrões com coletas gráficas do acusado, nos termos do art. 174 do CPP. O assunto referente à grafoscopia será tratada com mais propriedade no capítulo seguinte, seção 3.3, subseção 3.3.3, deste trabalho.

2.3.2.2 Do interrogatório do acusado

O interrogatório do acusado está disposto nos art. 185 a 196 da Lei Adjetiva Penal. É um ato indispensável na fase processual, desde que presente o autor do fato criminoso, tendo em vista que esse será o primeiro contato pessoal que o magistrado terá com o réu, devendo dar uma credibilidade para a sua versão do ocorrido. O que mudou drasticamente no procedimento comum, com a reforma operada em 2008, foi que o interrogatório passou a ser o último ato a ser efetuado após todos os demais meios de prova, nos moldes do art. 400 do CPP, como forma de dar maior força ao princípio do contraditório no processo, vez que o réu saberá como as testemunhas, p. ex., se portaram a seu respeito, rebatendo todas as acusações que eventualmente tenham sido dirigidas a sua pessoa.

A doutrina, comumente, discute sobre a natureza jurídica do interrogatório do acusado, se seria meio de prova ou meio de defesa. Tourinho Filho (2009, v. 3, p. 278) entende que apesar da sua posição topográfica no CPP, constante no capítulo referente às provas, o interrogatório seria meio de defesa, argumentando que, mesmo em sendo fonte de prova, a Carta da República assegura ao acusado o direito ao silêncio, o que demonstra ser um meio de defesa.

Entretanto, a doutrina majoritária não comunga da posição do magnânimo jurista, posto que o legislador, mesmo após a reforma de 2008, optou por inserir o referido assunto no capítulo referente aos meios de provas, sendo suficiente para atribuí-la tal natureza jurídica. E mesmo a Constituição ter reconhecido o direito ao silêncio, no art. 5º, LXVIII, não retira do interrogatório do acusado o caráter substancial de ser um meio de prova, posto que apenas faculta a não autoincriminação do réu.

Nesse sentido, como bem acentua o professor Camargo Aranha:

[...] inegavelmente, diante da lei processual em vigor, é um meio de prova, tanto que serve como alicerce condenatório, funcionando, acidentalmente, como meio de defesa.

........

Em primeiro lugar, porque colocado no Código entre as provas e como tal considerado pelo julgador ao formar sua livre convicção; depois porque as perguntas podem ser feitas livremente, apenas obedecendo-se às diretrizes do art. 188; em terceiro porque pode atuar contra o acusado, no caso de confissão, como em seu favor [...] (2006, p. 80).

Entende-se, por oportuno, que o interrogatório pode ser caracterizado tanto como um meio de prova quanto um meio de defesa, tendo em vista que o legislador buscou assegurar ao réu a presença de defensor para dar maior credibilidade ao processo e garantir o contraditório em juízo. Assim, embora, tecnicamente, possua natureza de meio de defesa, não perderá, certamente, seu caráter de meio de prova.

Como disposto anteriormente, a presença do acusado é importantíssima para que ocorra o interrogatório, constituindo a regra geral, no entanto, se este não comparecer, encontrando-se em local incerto ou não sabido ou exista outra causa que justifique sobremaneira a citação via edital, por exceção, o interrogatório não será realizado, todavia, poderá ocorrer uma vez comparecendo o acusado em qualquer fase do processo, conforme se extrai dos termos do art. 185 do CPP.

Observa-se que o interrogatório é ato oral, e só admite exceção no caso de o réu ser surdo e mudo, quando serão admitidas, excepcionalmente, perguntas e respostas por escrito ou pessoa habilitada a entendê-lo quando o interrogando não souber nem ler ou escrever, na forma do art. 192 do CPP.

2.3.2.3 Da prova testemunhal

Encontra-se amoldada nos arts. 202 a 225 do CPP, a prova testemunhal. É considerada pela doutrina como uma das mais importantes para o processo, visto que atesta a existência concreta de um fato. Contudo, devido a pessoa humana ser falha, principalmente no momento em que vai dar o testemunho, é muito comum que no depoimento em juízo seu emocional esteja exaltado e, consequentemente, os fatos acabam sendo distorcidos, tendo em vista que percepções da testemunha serão dadas sobre fatos pretéritos, por isso que os doutrinadores, vulgarmente, chamam-na de “a prostituta das provas”.

Guilherme de Souza Nucci define:

Testemunhas são pessoas que depõem sobre fatos, sejam eles quais forem. Se viram ou ouviram dizer, não deixam de ser testemunhas, dando declarações sobre a ocorrência de alguma coisa. A pessoa que presencia um acidente automobilístico, por exemplo, narra ao juiz os fatos, tais como se deram na sua visão. Lembremos, sempre, que qualquer depoimento implica uma dose de interpretação indissociável da avaliação de quem o faz, significando, pois, que, apesar de ter visto, não significa que irá contar, exatamente, o que e como tudo ocorreu (2010, p. 457, grifo do autor).

Levando em consideração a falibilidade humana, o juiz, no momento de sopesar as provas dos autos, deve levar em consideração tal percepção, sempre equilibrando os fatos com o seu livre convencimento.

Assim como o interrogatório do acusado, a prova testemunhal deve primar pela oralidade, devendo a testemunha dizer ao juiz, no momento de sua inquirição, quando não se recordar de determinado fato. A exceção, todavia, como o meio de prova anterior, está no tocante à testemunha surda, muda ou surda-muda, momento em que as perguntas e respostas poderão ser feitas por escrito, nos termos do art. 192 c/c art. 223 do CPP, assim como no caso de a testemunha ser algumas das autoridades dispostas no art. 221, §1º, do CPP, caso em que receberão as perguntas por escrito e poderão também responder pela mesma via.

A doutrina classifica a testemunha em própria e imprópria. Será própria a testemunha que presenciou o fato ou ouviu dizer sobre ele, ou seja, referir-se-á sempre com relação ao thema probandum, ao passo que a imprópria dará seu depoimento não sobre o fato propriamente dito cometido pelo agente criminoso, mas sim sobre os atos procedimentais ocorridos, p. ex., durante a prisão em flagrante, se esta aconteceu de forma regular, se a autoridade policial estava presente no momento da condução e autuação.

Há de destacar outra classificação agraciada pela doutrina pátria, no que tange o meio de prova em comento, a divisão em testemunhas numerárias, informantes e referidas. Serão numerárias as testemunhas computadas em número legal para ser ouvida em juízo, como, p. ex., no procedimento comum ordinário o número legal são oito testemunhas, no procedimento comum sumário, cinco testemunhas, e assim por diante. Importante frisar, oportunamente, que tais testemunhas devem prestar o compromisso legal perante a autoridade judiciária. As testemunhas informantes, ao contrário das primeiras, são aquelas em que não há a obrigação legal de falar a verdade em juízo, isto é, não prestam o compromisso e não se computam em um certo número legal. Notadamente, essas não possuem o mesmo peso probante que àquelas, posto se verificar que há algum vínculo afetivo ou social entre elas e as partes. Tem-se, por fim, as testemunhas referidas que são as citadas no decorrer da oitiva de outra testemunha ou mesmo da própria parte, e que podem ser ouvidas em juízo e fora do número legal, indiscutivelmente.

Nessa esteira, um fator importante a ser observado são as pessoas que estão proibidas de depor, embora, via de regra, consoante disposição do art. 206 do CPP, a testemunha não poderá eximir-se de tal obrigação. São aquelas dispostas na segunda parte do art. 206 e 207, ambos do CPP, ou seja, ascendente, descendente, afim em linha reta, cônjuge, irmão, e aquelas que em razão do ofício ou profissão, razão de função ou ministério devam guardar sigilo. Assim, por disposição legal, tais pessoas não têm o dever de estar em juízo para prestar depoimento, tanto que o legislador as escusou de tal arte, especificamente aquelas dispostas no art. 206 do CPP, tendo em vista a ligação afetiva e familiar com a pessoa acusada pelo delito.

2.4 PROVA INOMINADA

Em nosso ordenamento jurídico existem duas categorias de provas aceitas: as nominadas e as inominadas. As provas nominadas são aquelas com nomes e formas predeterminadas nas leis penais e processuais penais, como as observadas nas seções anteriores: documentos, perícias, interrogatório, testemunhos etc. Cumpre, aqui, tratar da segunda categoria aceita pelo ordenamento jurídico vigente, qual seja, a relativa às provas inominadas, aquelas produzidas e anexadas aos autos do processo sem a devida expressa previsão legal para a sua existência, desde que sua produção seja dada por meios lícitos, em regra, e suscetíveis de obter a certeza no caso concreto.

Portanto, as provas inominadas são, indubitavelmente, meios de prova idôneos, tudo para a comprovação da verdade que se procura no processo, ressalvado o disposto no artigo 5º, inciso LVI, da CF/88 e do art. 157, do CPP, que tratam da prova ilícita, pois que para serem válidas, tais provas devem ser apresentadas no devido processo legal sob o crivo do contraditório.

Ocorre que antigamente não havia qualquer previsão no CPP da aceitação de tais provas ditas inominadas – p. ex., filmagens, gravações, croqui, interceptações telefônicas, fotografias... –, no entanto, com a evolução da tecnologia, o legislador precisou se adequar a determinados avanços da humanidade, e as provas em deslinde passaram a ser bastante comuns nos autos processuais, ganhando, hodiernamente, após a reforma em 2008 do CPP, referência no aludido artigo 479, conforme redação dada pela Lei nº 11.689.

2.5 SISTEMAS DE AVALIAÇÃO DA PROVA

Ao término da fase de produção das provas, passa-se, então, à apreciação do magistrado, que incumbirá a valoração e fundamentação de todo o arcabouço probatório. Consoante Camargo Aranha (1996, p. 62): “A avaliação da prova é um ato eminentemente pessoal do juiz, somente seu, mediante o qual [...] chega a uma conclusão sobre o alegado”. Inquestionável o entendimento da doutrina e jurisprudência no que tange às partes fornecer elementos para a apreciação do magistrado, por meio de razões, debates, alegações etc., todavia, a avaliação do julgador é a preponderante no processo, seja certa ou errada de acordo com o caso concreto.

No desdobramento da história do direito, merecem reconhecimento três sistemas avaliatórios das provas, a saber, o sistema legal, o sistema da íntima convicção e o sistema da persuasão racional.

No sistema legal, denominado também de certeza moral do legislador, verdade formal ou tarifado, o juiz deveria ser submetido, estritamente, às regras de avaliação preconizadas na lei processual, pois cada prova tinha seu peso e seu valor, ficando o julgador vinculado às provas trazidas aos autos, atribuindo-lhe um valor conforme tabelado em lei. Era o sistema vigente nas antigas ordálias – tipo de julgamento praticado na Antiguidade até a Idade Média, quando havia deficiência de provas –, na qual se acreditava que as divindades orientariam e favoreciam quem estivesse com a razão, e o juiz somente apreciava o confronto e declarava o resultado.

Esse sistema foi bastante criticado pela doutrina, pois, apesar de se admitir a prova testemunhal, essa era avaliada pela lei em relação à quantidade, sexo, condição social, entre outras, atribuindo a uma prova uma determinada valoração em detrimento de outra. Vigorava o brocardo jurídico testis unus, testis nullus, levando-se ao entendimento de que a verdade dita por apenas uma testemunha não teria valor algum, pois, pela legislação, não se dava validade a um único depoimento, porém, ao contrário, a fraude poderia imperar, desde que dita por, pelo menos, duas testemunhas. Segundo o magistério de Fernando Capez:

[...] a lei impõe ao juiz o rigoroso acatamento a regras preestabelecidas, as quais atribuem, de antemão, o valor de cada prova, não deixando para o julgador qualquer margem de discricionariedade para emprestar-lhe maior ou menor importância. Não existe convicção pessoal do magistrado na valoração do contexto probatório, mas obediência estrita ao sistema de pesos e valores imposto pela lei [...] (2008, p. 319).

O segundo sistema é o da íntima convicção, também denominado pela doutrina e jurisprudência como sistema da livre apreciação ou certeza moral do juiz, surgido no antigo Império Romano, no qual atribuiu ao magistrado a ampla liberdade de julgar segundo critérios de valoração íntima, sem vínculo algum a qualquer limitação da lei e sem a obrigação de motivar o seu convencimento, ou seja, julga secundum conscientiam, podendo, inclusive, contrariar as provas existentes. Por esse sistema, poderia o magistrado se utilizar de conhecimento particular que tenha sobre o caso, sem a necessidade das partes ter trazido ao processo. Segundo os preceitos da doutrina de Tourinho Filho (2009, p. 253, v. 3): “[...] O juiz atribui às provas o valor que quiser e bem entender, podendo, inclusive, decidir valendo-se de conhecimento particular a respeito do caso, mesmo não havendo provas nos autos [...].”

Apesar de não ser o sistema vigente na atualidade, a doutrina ainda faz inúmeras críticas quanto a sua aplicação, hoje, pelo Tribunal do Júri, porquanto a decisão do Conselho de Sentença não precisar ser fundamentada, tampouco demonstrar como formou o seu entendimento, além do mais, sequer as partes conhecem o conteúdo do voto de cada jurado, visto a prevalência do princípio do sigilo das votações.

E por último, e não menos importante, o sistema da persuasão racional, também denominado de livre convencimento motivado, convicção condicionada, verdade real ou livre persuasão. É um sistema misto, baseado nos anteriores, mesclando os pontos positivos de ambos. De acordo com o professor Camargo Aranha (1996), o sistema em epígrafe teria surgido na cidade de Roma, como forma de resistência ao arbítrio judicial do sistema da livre convicção, tornando-se conhecido com os códigos napoleônicos. Aqui, o magistrado aprecia e valora as provas livremente, mas seu convencimento é vinculado ao material probatório produzido e acostado aos autos, obrigando-o a fundamentar a sua decisão, ou seja, apesar de agir conforme sua livre convicção, a sua avaliação deverá ser submetida às regras científicas predeterminadas.

Resumidamente, o sistema em epígrafe aceita todos os meios de prova, isto é, o magistrado pode formar seu convencimento baseado na declaração de apenas uma testemunha e desprezar os depoimentos das demais, contudo, sempre estará adstrito ao que consta dos autos. Apesar de estar livre de prévios julgamentos legais na aferição do arcabouço probante, o órgão julgador não pode abstrair-se ao seu conteúdo, ou seja, não está dispensado de motivar a sua decisão final, consoante o disposto no art. 93, IX, da Lei Maior, e art. 155 do CPP. Principiologicamente, o sistema da persuasão racional está intrinsecamente ligado ao princípio do livre convencimento motivado, abordado com muita propriedade no capítulo 01, seção 1.3, deste trabalho.

É importante sublinhar o equívoco, data venia, existente na redação dada pelo legislador ao art. 155 da Lei Adjetiva Penal, alterado pela recente reforma de 2008, pois, pelo exame superficial do dispositivo supra, entende-se que tenha adotado o sistema da livre convicção, tendo em vista a seguinte expressão: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova [...].” Há certeza de que o sistema adotado, atualmente, no Brasil é o do livre convencimento motivado ou persuasão racional, por ser mais completo que os anteriores, e o legislador seria mais feliz se tivesse utilizado o termo “motivado” no texto legal, apesar de estar expresso no mesmo dispositivo que a convicção do magistrado passará pelo contraditório.

Nesse sentido, as lições de Camargo Aranha, in fine:

Embora a atual legislação fale em livre convicção, não há dúvida no sentido de termos adotado o sistema da convicção condicionada ou da persuasão racional. Em primeiro lugar porque há a obrigatoriedade de motivar e fundamentar a decisão, exteriorizando os motivos de convicção, o que não é exigido pelo sistema da convicção íntima (CPP, art. 381, III).

........

Em segundo lugar porque, em casos especiais, também são exigidas provas especiais, como no caso da perícia nos delitos que deixam vestígios (CPP, art. 158). [...] terceiro, porque certas provas somente têm validade se cumpridos certos requisitos legais exigíveis, como ocorre no reconhecimento (art. 226 e seus itens), na perícia (arts. 159 e 179), na apreensão (art. 245, § 7º) etc., todos do Código de Processo Penal. Por fim, porque somente poderá decidir pelo contido nos autos e legalmente válido, sendo vedados os fatos extra-autos, de seu conhecimento ou impressão pessoal (1996, p. 66, 67).

Indubitavelmente é o melhor dos sistemas apresentados, posto que não interfere na consciência do juiz, deixando-o decidir conforme seu convencimento, mas fundamentando a decisão. Cessando quaisquer dúvidas, dispõe a exposição de motivos do Código de Processo Penal:

[...] Nunca é demais, porém, advertir que livre convencimento não quer dizer puro capricho de opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não estará ele dispensado de motivar a sua sentença. E precisamente nisto reside a suficiente garantia do direito das partes e do interesse social (grifo do autor).

Os nossos Tribunais Superiores vêm entendendo da mesma forma, como o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal, que dispõe:

Vige em nosso sistema o princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, segundo o qual compete ao juiz da causa valorar com ampla liberdade os elementos de prova constantes dos autos, desde que o faça motivadamente, com o que se permite a aferição dos parâmetros de legalidade e de razoabilidade adotados nessa operação intelectual. Não vigora mais entre nós o sistema das provas tarifadas, segundo o qual o legislador estabelecia previamente o valor, a força probante de cada meio de prova

(STF, RH 91691/SP, relator Ministro Menezes Direito, 1ª Turma, julgamento em 19/2/2008).

Portanto, vige, como regra, o sistema da persuasão racional, devendo ressaltar que somente em um único procedimento estará presente o sistema da íntima convicção em nosso processo penal, qual seja, no julgamento do júri popular, no qual cada um dos sete jurados que formam o Conselho de Sentença julga conforme seu entendimento, sem precisar justificar, tampouco motivar. Trata-se de uma exceção constitucional, insculpida no art. 5º, XXXVIII, com a competência para julgar crimes dolosos contra a vida, exaltando a garantia do sigilo das votações, soberania dos veredictos e plenitude de defesa.


3. ABORDAGENS ACERCA DA PSICOGRAFIA

Como introduzido em tópico anterior, não há no Direito Brasileiro legislação específica que descarte a utilização de carta psicografada como prova jurídica, tendo em vista que o legislador processual penal ao tratar da prova documental, em capítulo próprio, considerou quaisquer escritos, papéis ou instrumentos, sejam públicos ou particulares, desde que obtidos de forma lícita. Assim, a mensagem psicografada estaria incluída no conceito de documento particular, em sentido amplo, do art. 232 do CPP. Não há falar em prova inominada nesse caso, vez que para se enquadrar nessa classificação, precisaria não estar inserida no texto legal, bastando que tenha sido obtida de forma lícita, no entanto, entende-se que se enquadra perfeitamente como prova documental, conforme o artigo supracitado, devendo o magistrado, ao analisar o arcabouço probatório, levar em conta o documento psicografado associado com os demais instrumentos probantes acostados aos autos.

Indubitavelmente, é um dos temas mais polêmicos da atualidade, principalmente por tratar de questões científicas, espirituais e jurídicas no mesmo contexto, mas, repisa-se, não se trata de uma questão religiosa, até porque o Brasil, como Estado democrático de Direito, não possui uma religião oficial, e os cidadãos podem adotar qualquer doutrina religiosa. Nesse sentido, a própria Constituição Federal pugna pela laicidade do Estado, conforme se extrai do preâmbulo e do art. 5º, VI.

No decorrer do presente capítulo, serão abordadas questões ligadas ao espiritismo, como essa ciência veio tomando enormes proporções no cenário brasileiro, a sua materialização mediante a atividade de um médium ao psicografar o documento, e sua importante constatação pelo exame grafotécnico.

3.1 CONCEITO E TIPOS DE PSICOGRAFIA

A palavra psicografia é originária do grego psyché, que significa “alma”, e graphô, “escrita”, tendo por significado “escrita da alma ou escrita da mente”. Dessa forma, conceitua-se como o ato de escrever exercido por um indivíduo dotado de uma capacidade específica, denominado médium, que exercita tal arte por intermédio de um espírito que profere a mensagem a ser escrita.

Para o doutrinador e espírita Allan Kardec (1996, v. 2, p. 36), psicografia é “[...] a transmissão do pensamento dos Espíritos por meio da escrita pela mão do médium. No médium escrevente, a mão é o instrumento, porém, a sua alma ou espírito nele encarnado é intermediário do espírito estranho que se comunica.”

A ciência espírita costuma dividir a psicografia de duas formas, quais sejam, a direta e a indireta. Na primeira, chamada também de psicografia manual, para que ocorra a comunicação e se finda na escrita do documento, os Espíritos se utilizam de determinadas pessoas que possuem um dom especial, como intermediários, para que consigam alcançar o objetivo final, tendo em vista que essas pessoas, ao serem controladas por forças ocultas, obedecem o que determina a alma desencarnada, vez que não podem prosseguir autonomamente uma vez influenciadas por tais Espíritos. As mãos do intermediário são agitadas por um movimento involuntário, com o auxílio de um lápis, e passa, nesse momento, a escrever os dizeres do espírito, e nem mesmo a vontade do médium em parar de psicografar tem o condão de interromper tal ato.

Na psicografia indireta, a escrita não é obtida necessariamente por um médium, mas sim com auxílio de um instrumento específico para tal fim. Os mais comuns são as pranchetas ou as cestas que são dispostas convenientemente para produzir o efeito a que o espírito desencarnado realizará.

Allan Kardec, em sua obra “O Livro dos Médiuns”, explica:

Chamamos de psicografia indireta a escrita assim obtida e de psicografia direta ou manual a obtida pelo próprio médium. Para compreender este último processo, é preciso se dar conta do que se passa nessa operação. O Espírito que se comunica age sobre o médium; este, sob essa influência, dirige maquinalmente seu braço e sua mão para escrever, sem ter (é pelo menos o caso mais comum) a menor consciência do que escreve. No outro processo [a indireta], a mão age sobre a cesta, e a cesta, sobre o lápis. Desse modo, não é que a cesta que se torna inteligente; ela é um instrumento dirigido por uma inteligência; na realidade não passa de um porta-lápis, de um apêndice da mão, um intermediário entre a mão e o lápis; se eliminarmos esse intermediário e colocarmos o lápis na mão do médium, teremos o mesmo resultado, muito mais simples, uma vez que o médium escreve como o faz em condições normais; assim, toda pessoa que escreve com a ajuda de uma cesta, prancheta ou outro objeto pode escrever diretamente. De todos os meios de comunicação, a escrita manual, ou escrita involuntária, é, sem dúvida, a mais simples, a mais fácil e a mais cômoda, porque não exige nenhuma preparação e se presta, como a escrita corrente, a expor e desenvolver as mais amplas idéias [sic] (2004, p. 145, 146, grifo nosso).

Convém, enfatizar, que o presente trabalho enfocará especificamente a psicografia direta ou manual, cuja manifestação dar-se-á por intermédio de um médium em conjunto com um espírito desencarnado.

3.2 A MEDIUNIDADE

De acordo com os preceitos da Doutrina Espírita, a mediunidade é a característica designada a uma capacidade humana de comunicação entre homens e almas desencarnadas, manifestando-se independentemente de o indivíduo com esse dom ter ou não religião. Essas pessoas são denominadas médiuns.

Allan Kardec, o codificador da Doutrina Espírita no mundo, em sua obra “O Livro dos Médiuns”, traz variados tipos de médiuns. Colaciona-se a definição de alguns, conforme o modo de execução, como forma de entendimento do tema:

Médiuns escreventes ou psicógrafos: possuem a faculdade de escrever por si mesmos sob a influência dos Espíritos.

Médiuns escreventes mecânicos: aqueles cuja mão recebe um impulso involuntário e que não têm nenhuma consciência do que escrevem. Muito raros [...].

Médiuns semimecânicos: aqueles cuja mão se move involuntariamente, mas que têm consciência instantânea das palavras ou das frases, à medida que escrevem. Os mais comuns [...].

Médiuns intuitivos: aqueles com quem os Espíritos se comunicam pelo pensamento, mas que escrevem por sua vontade. Diferem dos médiuns inspirados, porque estes últimos não precisam escrever, enquanto os médiuns intuitivos escrevem o pensamento que lhes é sugerido instantaneamente sobre um assunto determinado e provocado [...].

...........

Médiuns polígrafos: aqueles cuja escrita muda conforme o Espírito que se comunica ou que são aptos a reproduzir a escrita que o Espírito tinha quando vivo. O primeiro caso é bastante comum; o segundo, o da identidade da escrita, é mais raro [...].

Médiuns poliglotas: aqueles que têm a faculdade de falar ou escrever em línguas que lhes são desconhecidas. Muito raros.

Médiuns iletrados: aqueles que escrevem, como médiuns, sem saber ler nem escrever no estado normal (2004, p. 169, 170, grifo do autor).

No tocante à psicografia, de todas as espécies de médiuns elencadas anteriormente, interessa o estudo do médium psicógrafo ou escrevente, sendo esse a pessoa dotada de dons paranormais que fará o elo de ligação entre o mundo terreno e o mundo espiritual. A doutrina espírita ainda subdivide essa espécie de médium em mecânico, intuitivo, semimecânico, inspirado e de pressentimento.

Os mecânicos são aqueles que se caracterizam pela dependência direta e total dos Espíritos, no qual influenciam os médiuns a reproduzir a mensagem do invisível para o concreto, agindo como verdadeiras máquinas. Allan Kardec (2004, p. 161), acerca do tema, assevera “o que caracteriza o fenômeno nessa circunstância é que o médium não tem a menor consciência do que escreve; essa inconsciência absoluta constitui o que chamamos de médiuns passivos ou mecânicos”.

O médium intuitivo, ao contrário do mecânico que faz o papel de uma máquina, tem o dom de interpretar, tendo de assimilar a mensagem da alma desencarnada, compreendê-la e transmiti-la da forma mais fiel possível. Aqui, o movimento é voluntário e facultativo.

O semimecânico é o médium que sente a mão ser movimentada, mas têm total consciência do que está escrevendo, ao contrário do “mecânico”, ou seja, o movimento das mãos é involuntário, mas a pessoa-instrumento tem consciência do que está psicografando.

O médium inspirado, de acordo com a Doutrina Espírita, seria uma variação do intuitivo, sendo que naquele é muito mais difícil perceber a diferença entre o pensamento da alma desencarnada e o do médium. É caracterizado pela espontaneidade. Kardec (2004, p. 162) explica que a inspiração em questão advém das circunstâncias do cotidiano, dos problemas diários, e, portanto, todas as pessoas podem ser consideradas médiuns, vez que têm seus espíritos protetores, de familiares que já partiram, mas que protegem seus entes queridos.

Por último, e não menos importante, tem-se o médium de pressentimento, que é considerado uma variação do médium inspirado. Determinadas pessoas possuem essa faculdade de pressentir pré-desenvolvida, que lhes permite ter uma espécie de dupla visão, permitindo visualizar o desencadear dos acontecimentos.

3.3 NATUREZA CIENTÍFICA DA PSICOGRAFIA

3.3.1 Psicografia na história da sociedade

A psicografia teve surgimento há muito tempo na história da humanidade, na qual muitos pesquisadores dedicaram-se a estudar esse fenômeno mediúnico, o que reforça, ainda mais, a sua natureza científica e não religiosa.

As primeiras formas de escritas mediúnicas surgiram por volta do ano de 1850, bem antes do surgimento do Espiritismo, que se deu em 18 de abril de 1857, sendo, a partir de então, denominada de psicografia. Isso prova, então, que o fenômeno da escrita mediúnica não é uma criação da Doutrina Espírita, que por muitos é considerada como religião.

O precursor e codificador do estudo do Espiritismo no mundo foi Allan Kardec (1804 – 1869), sendo, na verdade, um pseudônimo do escritor, educador e tradutor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail. Adotou tal codinome para diferenciar suas obras relacionadas ao Espiritismo de seus trabalhos pedagógicos elaborados anteriormente.

Foi uma figura muito importante na história dessa doutrina, vez que além de ser o codificador do “Espiritismo” no mundo, neologismo esse criado por ele, escreveu várias obras, algumas psicografadas, sendo as mais importantes “O Livro dos Espíritos” (1857) e “O Livro dos Médiuns” (1861). Mesmo após seu falecimento, foi publicado “Obras Póstumas” (1890), importante trabalho complementar da Doutrina Espírita.

Jeferson Betarello e Cícero Souza, no texto “Quem foi Kardec?”, da Fundação Espírita André Luiz, define esse doutrinador:

Kardec é a linha de chegada de grandes pensadores que deflagraram importantes revoluções, dentre eles podemos citar: Lutero, Descartes, Kant, Voltaire e Rousseau. Ele não criou os fenômenos espirituais. Estudou, catalogou, explicou e nomeou cientifica e metodicamente as causas, meios e efeitos destes fenômenos que sempre ocorreram desde os primórdios da humanidade. Resgatou para o cristianismo a comunicação com o mundo espiritual que havia sido erradicada pelo catolicismo. Abriu um mundo novo para ser estudado e mostrou a conseqüência de tudo isto para a nossa jornada evolutiva (Acesso em: 10 set 2011).

Em nosso país, o Espiritismo surgiu por volta de 1865, sendo, hodiernamente, o país que reúne o maior número de adeptos. A personalidade que mais se destacou no mundo do Espiritismo e um dos mais importantes divulgadores foi Francisco Cândido Xavier (1910 – 2002), também chamado de Chico Xavier. Foi considerado um médium do tipo mecânico, pois psicografava mensagens mediúnicas de forma inconsciente, sob o domínio absoluto da alma desencarnada.

Desde criança, aos quatro anos de idade, já manifestava sinais mediúnicos, quando dizia ouvir e conversar com espíritos, conforme afirma biógrafos. Durante sua juventude, aos dezessete anos, manteve seu primeiro contato com o estudo do Espiritismo, cujo dom, a cada dia, mais se apurava.

Importante salientar que Chico Xavier foi autor de diversas obras psicografadas, sendo num total de 451 (quatrocentos e cinquenta e um) livros, dos quais 39 (trinta e nove) foram publicados após a sua morte. O mais incrível foi que não reconheceu a autoria de nenhuma dessas obras, atribuindo-a aos Espíritos, razão pela qual não aceitava os valores arrecadados com a venda de tais obras. As principais obras psicografadas foram “Parnaso de Além-Túmulo” (1932), sua primeira obra publicada, “Crônicas de Além-Túmulo” (1937), “Emmanuel” (1938), “Nosso Lar” (1944), “Pão Nosso” (1950), “Religião dos Espíritos” (1960), “Escada de Luz” (1999), entre muitos outros.

No tocante ao tema da presente monografia, Chico Xavier teve importante papel em alguns casos jurídicos de relevância nacional, nos quais psicografou mensagens de determinadas pessoas já falecidas para serem utilizadas como provas de inocência dos réus. Repisa-se que tais instrumentos probatórios foram utilizados em conjunto com outros meios probantes, e não isoladamente. Alguns casos emblemáticos serão abordados, minuciosamente, no último capítulo desse trabalho.

3.3.2 Psicografia sob a óptica da doutrina espírita

A psicografia, conforme exposto alhures, surgiu bem antes do Espiritismo, reafirmando, assim, seu valor científico. Ela pode ser vista sobre dois viés: um lato sensu e um stricto sensu. No primeiro, ela é tida como um fenômeno psíquico, ao passo que na segunda, defendida pela religião espírita, como a transmissão de um pensamento de uma determinada entidade desencarnada por intermédio de um médium. Nesse contexto, conceitua o dicionário Aurélio (2001, p. 566): “sf. 1. Descrição dos fatos da mente. 2. No espiritismo, escrita ditada por um espírito e transmitida pela mão do médium.”

Então, é dessa forma que a Doutrina Espírita enxerga a psicografia, não muito diferente do conceito trazido pela ciência, apesar de ambos os segmentos não se confundirem – ciência e religião.

Cumpre definir que o Espiritismo, sob o olhar da humanidade, tem de ser considerado como ciência, e não, tão-somente, como religião, posto que se assim fosse não existiria razão para discussão no mundo jurídico, e mesmo se existisse ficaria adstrito aos princípios religiosos e fé do magistrado, o que, de certa forma, traria insegurança jurídica para o caso concreto, tendo em vista que o Estado é laico. Sob a óptica científica, o Espiritismo estaria hábil a gerar debates interdisciplinares, como é o foco do presente trabalho, mas não esquecendo que mesmo em reconhecendo o seu caráter eminentemente de ciência, não se afastaria, por completo, sua essência filosófica e religiosa.

Dessa forma, longe de esgotar os pontos importantes e interessantes sobre o tema, se fez um estudo sobre alguns julgados relevantes, temática tratada no último capítulo, com a finalidade de tentar comprovar a cientificidade das cartas psicografadas, bem como suas autenticidades perante o Processo Penal, em especial nos Tribunais do Júri.

Portanto, tendo em vista os pontos abordados até aqui, a psicografia pode ser utilizada como meio de prova, da espécie “documental”, vez que desvinculada de seu caráter religioso e provida de cientificidade. Em sendo o material mediúnico dotado de tal preceito, serve, com certeza, para comprovar a verdade dos fatos, convencer o julgador, estando em consonância com as demais provas carreadas aos autos e não obtidas de modo ilícitas.

3.3.3 Psicografia e o exame grafotécnico

Como esposado em capítulo anterior, o exame grafotécnico é uma forma de perícia técnica na qual se faz o reconhecimento de escritos das pessoas envolvidas no litígio para a comparação de letras.

Indubitavelmente, a escrita é personalíssima, pois identifica cada indivíduo, sendo de difícil, mas não impossível fraude. O doutrinador Marcelo Mendroni explica que:

A escrita decorre de manifestação e exteriorização de um pensamento através de uma linguagem consistente em representação de símbolos (letras), que, reunidas, assumem determinado significado. Com o desenvolvimento intelectual do individuo, ele vai moldando determinada forma de escrita, que se lhe afigura pessoal, personalíssima, identificando-o (2010, p. 127).

Carlos Augusto Perandréa, autor do livro “A psicografia à luz da grafoscopia” (1991), perito judiciário em documentoscopia, ex-perito grafotécnico do Banco do Brasil e professor da Universidade Estadual de Londrina, na disciplina Identificação Datiloscópica e Grafotécnica, é um grande estudioso da matéria discutida no presente trabalho de pesquisa. Esse autor (1991, p. 23) conceitua a grafoscopia como “[...] um conjunto de conhecimentos norteadores dos exames gráficos, que verifica as causas geradoras e modificadoras da escrita, através de metodologia apropriada, para a determinação da autenticidade gráfica e da autoria gráfica.”

Nessa mesma obra, fundamenta com bastante sapiência a análise grafoscópica de mensagens psicografadas pelo médium brasileiro Chico Xavier, desprovido de vinculação com qualquer religião. Confrontou a grafia original da pessoa quando ainda em vida e a grafia do médium, e verificou, após inúmeras análises e testes, que se tratavam da mesma fonte, sendo que a letra do médium, quando está consciente, é totalmente diferente da alma desencarnada.

Imperioso salientar que os laudos emitidos por Perandréa, em um número vultoso, foram reavaliados e confirmados por outros peritos, demonstrando a confiabilidade, autenticidade e certeza quase que absoluta desse tipo de perícia técnica. Denota-se, por oportuno, que o peso do exame grafotécnico em analisar a mensagem psicografada é extremamente eficaz, sendo utilizado como meio de prova subsidiária de diversas decisões dos Tribunais do Júri em nosso país.

Nesse diapasão, conclui Marcelo Mendroni, ipsis litteris:

Então, se cada indivíduo tem um grafismo próprio, peculiar, que o identifica, deve-se concluir que o exame grafotécnico é exato, ou seja, uma vez identificada a grafia de uma pessoa em um escrito, através de método comparativo, pode-se afirmar que foi ele quem o escreveu? Sim. Quando o escrito é afirmado por peritos, que o analisam através de métodos comparativos, desde que existam elementos para tanto, a afirmação é certa.

.......

Significa concluir que, em condições ideais de elaboração de exames e laudos, o exame grafotécnico assume importante valor probatório em relação à identificação da pessoa que realizou o escrito (2010, p. 127, 128).

Sendo esse o contexto, portanto, no exame grafológico deve ser confrontada a grafia da pessoa quando estava em vida e a da mensagem psicografada pelo médium, não se tratando de uma mera suposição por parte do perito e sim de uma análise puramente técnico-científica, tendo em vista que serão verificados diversos pontos, tais como o tracejado, a velocidade, a direção, as ligações, o alinhamento, o espaçamento, angulação, entre outros, tudo para o perfeito e inconteste laudo a ser emitido pelos peritos.

De tantos casos analisados pelo renomado perito, o que despertou mais interesse foram as mensagens psicografas por Chico Xavier, no ano de 1978, e atribuídas a Ilda Mascaro Saulo, italiana, falecida em Roma em 1977. Os escritos do médium foram grafados, em língua italiana, mesmo não tendo o espírita brasileiro nenhuma noção desse idioma, por tratar-se de pessoa de pouco estudo. Atestou o laudo grafológico o seguinte, in fine:

A mensagem psicografada por Francisco Cândido Xavier, em 22 de julho de 1978, atribuída a Ilda Mascaro Saullo, contém, em “número” e em “qualidade”, consideráveis e irrefutáveis características de gênese gráfica suficientes para a revelação e identificação de Ilda Mascaro Saullo como autora da mensagem questionada (1991, p. 56).

Então, após minucioso e eficaz trabalho da perícia técnica, com base em estudos científicos de grafoscopia, comprovou-se, sem dúvida alguma, que se tratava da letra da senhora Ilda Mascaro Saullo.

Não há dúvidas de que essa forma de perícia tem de se levar em consideração o estado atual do agente: se estava embriagado, ou com algum outro tipo de problema, vez que, de certa forma, influencia diretamente na grafia do indivíduo, alterando, significativamente, sua forma. Foi justamente pensando nessas prováveis situações, que o exame grafotécnico faz as devidas apreciações no momento da análise da grafia, justamente para não ocorrer nenhuma dúvida quanto à autenticidade da perícia.


4. PSICOGRAFIA NO PROCESSO PENAL

4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como abordado em tópicos anteriores, a psicografia estaria disposta no capítulo referente aos documentos no Código de Processo Penal, no que tange ao direito à prova, que está inserido na garantia do contraditório. É uma questão bastante polêmica na atualidade e suscetível de variados debates em nossos tribunais, vez que implica em reflexões acerca da validade ou não de material resultante de psicografia como prova a ser valorada no processo.

Muito se discutiu sobre a quem atribuir a autoria da carta psicografada: se seria ao espírito ou ao médium. Ora, é evidente que não há a possibilidade de atribuir a autoria desse documento a uma alma desencarnada, tendo em vista que o nosso sistema jurídico não se porta diante de questões extraterrenas, até porque a lei estabelece que a morte extingue a personalidade humana, mesmo em sendo uma ficção jurídica e não propriamente fática. Assim, pode-se conferir a condição de autor ao médium psicógrafo, com a devida utilização de seu inconsciente para a produção do material probando. É fato que o magistrado não se interessaria a discutir como se dá essa percepção extrassensorial, mas sim a confirmação de que o fato probante seja verossímil.

A maior problemática que envolve o tema em comento é a relação da psicografia com a Religião versus Ciência jurídica. Alguns doutrinadores tentam correlacionar o material resultante dessa prática com o Espiritismo, quanto uma religião, o que não pode ser associado tão-somente sob esse enfoque; tem de se abordar, também, o ponto de vista jurídico. O jurista Ismar Estulano Garcia, em seu artigo publicado na Revista Jurídica Consulex, aborda o seguinte:

Do lado religioso, a polêmica é mais nítida, acontecendo com “mensagens psicografadas” o mesmo que ocorre com “curas espirituais”: há os que acreditam, os que não acreditam e os que duvidam da possibilidade de comunicação entre o mundo espiritual e o mundo material. Vale registrar que, admitindo-se a sobrevivência da alma após deixar a roupagem física, existem incursões no campo científico e jurídico.

.......

Ao abordar a “Psicografia como Prova Judicial”, o assunto não pode, nem deve, ser enfocado sob o aspecto religioso, mas apenas juridicamente. Analisando unicamente sob o aspecto jurídico é que concluímos ser perfeitamente possível a psicografia como prova no direito processual penal brasileiro (Ano X, n. 229, jul. 2006, p. 25).

Denota-se do entendimento do notável jurista que é imprescindível analisar a aceitação de carta psicografada pelo aspecto científico e não exclusivamente religioso, caso contrário não assistiria razão para o questionamento a que esse trabalho de pesquisa direciona, qual seja, da admissibilidade como prova judicial. Obviamente, tem de ser analisada a aceitação desse tipo de prova com certa cautela, considerando-se que, hoje, no Brasil, existem muitas fraudes, principalmente no que tange à confiabilidade do médium, se são reais as suas práticas espíritas ou se passa de um “charlatão”. Alguns casos de repercussão nacional, que serão tratados adiante, tiveram documentos carreados aos autos psicografados por Chico Xavier; é indiscutível tecer considerações acerca da credibilidade mediúnica do espírita brasileiro, mas existem outros que não possuem a mesma “boa imagem”, o que tem de ser constatada, criteriosamente, no momento do magistrado aceitar a prova a ser inserta no processo.

Uma vez psicografado o documento, tem de se determinar, sob o viés científico, se a grafia em questão é da entidade desencarnada, conforme será atestado pelo exame grafotécnico. Conforme explanado outrora, verificar-se-á nesse laudo o confronto do grafismo da pessoa quando viva e da psicografia realizada pela pessoa dotada desse dom extrassensorial, ou seja, contraditar-se-á o documento questionado e o documento padrão, tudo respaldado cientificamente. Não há negar que também, aqui, tem de se levar em conta a aptidão profissional do perito, mesmo o julgador não estando adstrito ao laudo pericial a ser emitido.

Assim, juridicamente, é possível admitir a carta psicografada como lícita no âmbito processual penal, configurada como prova documental em sentido amplo, já que o legislador deixou “em aberto” esse conceito. O que não pode, de fato, é aceitá-la unicamente como prova isolada, vez que, se assim o fosse, poderia ser discutida sua ilicitude, mas quando em conjunto com os demais meios probantes é plenamente lícita e segura para o juiz dar a valoração a que merece.

4.2 OPINIÕES FAVORÁVEIS E CONTRÁRIAS DE JURISTAS À ACEITAÇÃO DE CARTA PSICOGRAFADA COMO PROVA JUDICIAL

Por ser um tema bastante polêmico, importante abordar as posições de juristas, doutrinadores, cientistas e espíritas sobre a aceitabilidade da mensagem psicografada como prova jurídica na seara processual penal. Assim como existem aqueles que afirmam a admissibilidade desse meio de prova, há aqueles que discordam de tal posicionamento, sob o “arcaico” fundamento de que fere, substancialmente, a Constituição da República Federativa do Brasil. Senão vejamos.

O promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Renato Marcão, entende que não há como positivar o uso de carta psicografada em nosso ordenamento jurídico, em virtude da laicidade do Estado, mas também não a considera como ilícita. Não há discutir a falta de contraditório quanto a sua produção, tendo em vista que a partir do momento em que é posta em juízo, automaticamente passará a ser contraditado. Assim, concluiu:

No sistema jurídico brasileiro não há como normatizar o uso do documento psicografado como meio de prova; seja para permitir ou proibir. O Estado é laico.

De prova ilícita não se trata. Se não está submetido ao contraditório quando de sua produção, entenda-se, quando da psicografia, a ele estará exposto a partir da apresentação em juízo (2009, p. 153, 154, grifo nosso).

O professor da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, especialista e ex-perito em exame grafotécnico do Banco do Brasil e, atualmente, do Poder Judiciário, doutor Carlos Augusto Perandréa, foi um dos grandes responsáveis pelo estudo da psicografia de Chico Xavier por cerca de 14 (quatorze) anos. Nesses estudos, ele pode verificar, minuciosamente, um grande número de cartas psicografadas por esse médium brasileiro, na qual fez comparações com a grafia da pessoa quando estava em vida e a do próprio psicógrafo, quando não está em transe mediúnico. Durante todo esse tempo, analisou cerca de 400 (quatrocentas) cartas, sendo que 398 (trezentas e noventa e oito) foram confirmadas por outros peritos, justamente para demonstrar a autenticidade desse tipo de perícia, obtendo, assim, uma margem de 99,5% (noventa e nove vírgula cinco por cento) de acerto, ou seja, uma certeza praticamente incontestável.

O perito fez a seguinte observação a uma entrevista realizada pelo Curso de Comunicação Social e Jornalismo da Fundação Edson de Queiroz, da Universidade de Fortaleza, em 2007, quando perguntado até em que situação a psicografia semimecânica – aquela conceituada e classificada por Allan Kardec, na qual a mão do médium age involuntariamente, mas continua tendo plena consciência das palavras e frases na medida em que escreve – pode influenciar na imparcialidade do documento resultante de psicografia, e como ela pode ser utilizada para solucionar casos jurídicos, considerando que o médium pode estar sendo parcial, influenciando, de alguma forma, as informações resultantes da psicografia, in verbis:

Os exames grafotécnicos para a comprovação de autenticidade ou da autoria gráfica são efetuados em grafismos, vocábulos, textos e assinaturas, que devem ser comparados tecnicamente com as escritas autênticas (padrões). Dessa forma, qualquer mensagem psicografada, não sendo uma psicografia mecânica, não terá como conter os elementos grafocinéticos de identificação. Por outro lado, a questão de resolver casos jurídicos com a psicografia é uma questão bastante polêmica do ponto de vista jurídico, envolvendo os mais diversos trabalhos, entre eles os desenvolvidos pelos conceituados professores e mestres em Direito Civil e Penal, com destaque para os trabalhos de Ismar Estulano Garcia, Renato Marcão, Roberto Serra da Silva Maia, Jacobson Sant’Ana Trovão e Flávio Tartuce (2009, p. 144).

Para a Associação Jurídico-Espírita do Estado de São Paulo, o documento oriundo de psicografia é lícito, posto o sistema jurídico vigente não vedá-lo, vez que o Código Processual Penal refere-se a qualquer documento, em sentido amplo, imperando, no ato da aceitação da prova, o livre convencimento do juiz.

Importante aclamar o posicionamento do jurista Pedro Paulo Filho, entendendo a extensão e a importância do tema:

[...] Alguns acham que a psicografia pode ser levada em juízo quando ela está em harmonia com as demais provas; outros entendem o contrário, considerando que as mensagens psicografadas confundem a segurança e as razões jurídicas com a crença religiosa. Modestamente, achamos que estão confundindo alhos com bugalhos, porque o Espiritismo não é uma religião, mas sim uma doutrina de cunho filosófico-religioso de aperfeiçoamento moral do homem por meio de ensinamentos transmitidos por espíritos mais aprimorados de pessoas mortas que se comunicam com os vivos, através de médiuns.

Como católico apostólico romano, achamos que a proibição constitui um preconceito à Doutrina Espírita e aos adeptos de Espiritismo. Se assim for, por que então manter nas salas de julgamento dos fóruns e tribunais a imagem de Jesus Cristo crucificado, se o Poder Judiciário não tem nada a ver com a Religião? (2009, p. 160).

Subentende-se do entendimento afirmativo-interrogativo do jurista em voga que a prova oriunda de psicografia tem de ser admitida como lícita, pois não se deve considerar pelo aspecto da religião, questão já vencida quando se tratou da psicografia sob a óptica da doutrina espírita.

O espírita e médium brasileiro Francisco Cândido Xavier posicionou-se acerca da psicografia como interferência em processos judiciais. Para ele, não há como recusar a comunicação daqueles que querem transmitir alguma notícia, vez que as entidades manifestam-se naturalmente. Afirma (2009, p. 148) que nunca teve a intenção de que mensagens recebidas por ele pudessem atuar em qualquer setor Judiciário, muito menos sendo utilizado como peça de defesa de alguém a seu pedido. Recebe tais entidades com a única finalidade de consolar e reconfortar a família, mas nunca para influenciar no julgamento de um processo. Todavia, acredita que mesmo em sendo utilizada como prova, não pode ser tida como ilegal, posto que a Constituição Federal proíbe apenas as provas ilícitas, e não classifica a psicografia como tal.

Para o juiz de Direito aposentado, doutor Orimar de Bastos (2006, p. 29), que foi um dos magistrados que proferiu uma decisão com base em prova psicografada, analisada no item 4.3.1, desse capítulo, reconhece que a utilização desse meio de prova pode ser levada em conta para a determinação da responsabilidade penal do réu, desde que se trate de prova subsidiária e esteja em consonância com outras provas não ilícitas no sistema geral do direito positivado.

Outro doutrinador, advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processual Penal que atua a favor da utilização desse mecanismo é Ismar Estulano Garcia, que, inclusive, é autor de uma obra a respeito do tema. Transcreve-se parte de seu artigo publicado na Revista Jurídica Consulex, abaixo:

Juridicamente, é perfeitamente possível, hoje, admitir a “psicografia como prova judicial”. É por demais sabido que existem crimes cujo julgamento é da competência do juiz singular (Juiz de Direito) e crimes em que a competência para julgar é do Tribunal do Júri (jurados). [...] Os jurados são soberanos em seus veredictos, o que significa que poderão aceitar “mensagem psicografada como prova”, pois decidem por convicção íntima. Já nos crimes cujo julgamento for da competência do juiz singular, deve ele decidir de acordo com o seu livre convencimento [...] (Ano X, n. 229, jul. 2006, p. 25, 26, grifo nosso).

Por derradeiro, há também posições contrárias acerca da admissibilidade, alegando a ilicitude da prova, como já frisado anteriormente, levando em conta a origem dos argumentos virem de pessoa falecida, que não possui mais personalidade jurídica para tanto. Comunga desse entendimento o professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, Dalmo de Abreu Dallari, que acredita que o uso da psicografia é claramente ilegal, não sendo reconhecido pelo sistema jurídico brasileiro, e, caso seja, o julgamento seria nulo. Em seu entendimento, o juiz tem plena liberdade de escolha de sua religião, inclusive adotar o próprio espiritismo como filosofia de vida, mas se isso interferir de alguma forma em seu desempenho da função judicante, tornar-se-ia ilegal, ofendendo a tão discutida laicidade do Estado Democrático de Direito.

Outro teórico que sustenta pela ilegalidade da prova psicográfica é o professor de Teoria do Estado e de Teoria do Direito, da Universidade de São Paulo (USP), Marcelo Neves, que diz haver uma descaracterização dos princípios da ordem constitucional moderna com a aplicação de valores relativos ao espiritismo no cotidiano do Poder Judiciário. Afirma o referido professor:

Não podem se definir posições sobre casos jurídicos a partir de uma percepção religiosa do mundo. A partir do momento que esses magistrados não conseguem se desvincular é um problema gravíssimo para o Estado de Direito, que parte do princípio de ser um Estado laico e que posições religiosas diversas não podem ser determinantes no processo de decisão jurisdicional (2009, p. 157).

Acredita, Marcelo Neves, que a utilização da psicografia nos tribunais seria um grande perigo, visto ter significado apenas nos campos pessoal e religioso, e, jamais, na seara jurídica, posto que seria uma forma destrutiva da consistência do Estado Democrático. É o mesmo entendimento adotado pelo Presidente da AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil, Walter Nunes da Silva Júnior.

Verifica-se, dessa forma, que as disparidades quanto ao assunto são bem discutidas entre os profissionais da área jurídica. Não há uma verdade absoluta a ser seguida, até porque o Direito é debate, discussão, posições antagônicas, o que sempre ocorrerá em nosso ordenamento jurídico. O que pode ser considerado um fato certo é que o legislador permitiu uma interpretação extensiva do artigo 232, do Código de Processo Penal, ao admitir documento como qualquer escrito, o que faz associar a mensagem psicografada como tal, não sendo caracterizada como prova ilícita, tendo em vista não afrontar nem a Constituição Federal, nem a legislação infraconstitucional. A seguir serão abordados três casos de relevância nacional, na qual a psicografia foi um dos principais elementos para a decisão dos julgados.

4.3 ANÁLISE CRÍTICA E JURISPRUDENCIAL DE CASOS NACIONAIS

4.3.1 Caso Maurício Garcez Henrique

O primeiro caso a ser analisado trata-se de um episódio ocorrido na cidade de Goiânia – GO, em 08 de maio de 1976, envolvendo dois amigos, José Divino Nunes, dezoito anos, na qualidade de réu, e Maurício Garcez Henrique, vítima. Esse tinha apenas quinze anos, estudante do colegial em sua cidade natal, Goiânia, quando houve a tragédia. Consta nos autos que ambos se encontravam na casa dos pais do autor do fato, em uma despensa anexa à cozinha, quando Maurício abriu uma pasta que pertencia ao pai do amigo, retirando cigarros e uma arma de fogo. Como acreditava ter retirado todos os cartuchos do revólver, iniciou uma brincadeira com o objeto, passando-a ao amigo que, acidentalmente, acabou por acionar o gatilho, efetuando um disparo que atingiu o peito de Maurício, sendo, posteriormente socorrido pelos pais de José Divino, que providenciaram o encaminhamento da vítima ao hospital, não chegando sequer a ser socorrido.

O autor do fato, abalado por ter ceifado, por acidente, a vida de seu melhor amigo, além de perder seus pais numa fatalidade automobilística posteriormente ao fato, acabou por ser preso. Após uma semana do ocorrido, os pais da vítima, José e Dejanira, foram conhecedores da possibilidade de comunicação com seu filho por intermédio da psicografia, sendo apresentados ao médium Chico Xavier, que, inicialmente, apenas transmitia mensagens de consolo para a família. Após dois anos da ocorrência do fato trágico, o médium recebeu a primeira mensagem assinada por Maurício, que trazia peculiaridades do acidente, como, por exemplo, que ninguém teve culpa do ocorrido, dado que estavam apenas brincando a respeito da possibilidade de ferir alguém pela imagem do espelho, mas por um descuido, o inevitável aconteceu. Após essa mensagem extraterrena, a família ainda foi destinatária de outra, corroborando o teor da antecedente, o que fez enaltecer a hipótese de acidente.

Devidamente denunciado pelo Ministério Público do Estado de Goiás, e após todo o ato instrutório, o Juiz Orimar de Bastos, proferiu a sentença de acordo com as provas anexadas aos autos, pela primeira fase do rito do júri popular – judicium acusationes –, já que se tratava, em princípio, de crime doloso contra a vida, cuja pequena passagem segue adiante, extraída da obra “Psicografia no Tribunal”, de Vladimir Polízio:

No desenrolar da instrução, foram juntados aos autos recortes de jornal e uma mensagem espírita enviada pela vítima, através de Chico Xavier, em que na mensagem enviada do Além relata também o fato que originou sua morte. [...] o feito teve andamento a passos de tartaruga, quando foi realizada a instrução, com as oitivas das testemunhas indicadas pela acusação e defesa e, finalmente, a apresentação de razões finais.

.......

Lemos e relemos depoimentos das testemunhas, bem como analisamos as perícias efetivadas pela especializada, e, ainda mais, atentamos para a mensagem espiritualista enviada pela vítima aos pais.

Fizemos análise total de culpabilidade, para podermos entrar com a cautela devida no presente feito sub judice, em que não nos parece haver o elemento dolo, em que foi enquadrado o denunciado, pela explanação longa que apresentamos. O jovem José Divino Nunes, em pleno vigor de seus 18 anos, vê-se envolvido no presente processo, acusado de delito doloso, em que perdeu a vida seu amigo inseparável Maurício Garcez Henrique.

Na mensagem psicografada retro, a vítima relata o fato isentando-o. Coaduna este relato com as declarações prestadas pelo acusado, quando do seu depoimento, às fls. 100/vs.

.......

Julgamos improcedente a denúncia, para absolver, como absolvido temos, a pessoa de José Divino Nunes, pois o delito por ele praticado não se enquadra em nenhuma das sanções do Código Penal Brasileiro, porque o ato cometido, pelas análises apresentadas, não se caracterizou de nenhuma previsibilidade. Fica, portanto, absolvido o acusado da imputação que lhe foi feita (2009, p. 90, 91, grifos nossos).

Com essa decisão inédita do MM. Juiz Orimar de Bastos na história do Judiciário brasileiro houve inúmeros debates acerca da admissibilidade da carta psicografada como prova lícita, tomando novos rumos o presente processo, vez que, não conformado com a sentença prolatada, o Ministério Público Estadual recorreu, pleiteando a reforma da sentença ou o seu respectivo encaminhamento ao Tribunal de Justiça. Como o juiz a quo não reformou, com plena consciência de sua decisão, o processo seguiu seu trâmite na instância superior. Alguns meses depois, mesmo com o peso da psicografia juntada, o Tribunal, por acórdão registrado, resolveu reformar a decisão de primeiro grau, in verbis:

Temos que dar credibilidade à mensagem de fls. 170, embora na esfera jurídica ainda não mereceu nada igual, em que a própria vítima, após sua morte, vem relatar e fornecer dados ao julgador para sentenciar.

.......

As provas admissíveis são: oral, colhida através de depoimentos em juízo, a documental e a pericial. São espécies desses gêneros tradicionais as provas gravadas, filmadas, fotografadas e já se pode incluir a prova eletrônica, colhida em computador.

A psicografia é a escrita de um espírito pela mão do médium, segundo o espiritismo, o intermediário entre os vivos e a alma dos mortos ou desencarnados.

Ora, os juízes apreciam a eficácia das provas a eles submetidas, mas não podem estabelecer uma convicção que não lhes tenha sido dada por meio de vias e modos que a lei consagra expressamente. Assim, não pode decidir diante de informações recolhidas pessoalmente, fora das audiências e na ausência das partes [...].

.......

Pelo exposto, nos termos do parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, conheceram do recurso e lhe deram provimento para, reformando a decisão recorrida, pronunciar o acusado José Divino Nunes como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal (2009, p. 91, 92).

Assim, o réu foi submetido a júri popular, instalada pela 1ª Vara Criminal da cidade de Goiânia, ocorrido no dia 02 de junho de 1980. Ocorre que, mesmo o Ministério Público tendo pedido a condenação na segunda fase do rito – judicium causae –, os jurados decidiram, em votação secreta, por seis votos a um, que José Divino é inocente, reconhecendo a mensagem psicografada como da vítima. O promotor até poderia apelar da decisão do Conselho de Sentença, mas reconheceu a soberania dos veredictos, acatando a decisão com humildade. Ocorre que o Procurador-Geral de Justiça do Estado de Goiás, Manoel Nascimento, não aceitando a decisão do Tribunal do Júri, nomeou outro promotor da própria capital para interpor o recurso de apelação. No entanto, o Egrégio Tribunal de Justiça, por unanimidade, negou ao apelo do novo promotor, confirmando a decisão dos jurados, absolvendo, assim, em definitivo, José Divino Nunes, finalizando o processo.

Verifica-se, in casu, que, no primeiro momento da fase inicial do rito, o juiz a quo reconheceu de plano o valor da psicografia como prova jurídica, mas não de forma isolada, e sim com auxílio das demais que corroboraram no entendimento da não culpabilidade do réu. Em grau de recurso, em função da apelação da decisão do Conselho de Sentença, o Tribunal do Estado também reconheceu pela licitude da prova, sob o mesmo contexto, qual seja, a carta psicografada estava em consonância com os demais meios acostados aos autos, tudo para a verdadeira e correta aplicação da justiça.

Há de se destacar que não foi preciso submeter a carta psicografada ao exame grafotécnico, posto que as outras provas foram suficientes para a comprovação do real animus que o agente possuía no momento. E mesmo que fosse submetido, provavelmente, com um grau de certeza quase absoluto, a perícia identificaria que a fonte era da vítima, considerando que os próprios pais reconheceram e confirmaram a assinatura como de Maurício Garcez Henrique, além do que o psicógrafo foi o célebre Chico Xavier, que possui o dom da mediunidade mecânica, na qual sofre influência direta e dependência total dos Espíritos durante a sessão.

4.3.2 Caso Heitor Cavalcanti de Alencar Furtado

O segundo caso abordado no presente trabalho trata-se de um homicídio ocorrido na cidade de Mandaguari, Estado do Paraná, em 22 de outubro de 1982, de grande repercussão, envolvendo o então Deputado Federal Heitor Cavalcante de Alencar Furtado, com 26 anos de idade, ora vítima, e o policial civil, Aparecido Andrade Branco, conhecido por “Branquinho”, autor do fato.

A vítima era filha do Deputado Federal cassado Alencar Furtado, que, em virtude desse episódio político, lançou a candidatura do filho, eleito o mais novo deputado daquela legislatura. Com o fim do mandato eletivo se aproximando, Heitor estava em viagem pelo interior do Estado, na companhia de dois amigos e colaboradores eleitorais, de nomes Dirceu e Fábio, para tentar a reeleição no ano seguinte. Com o decorrer da viagem, por ser muito longa, estavam bastante exaustos e, em função do adiantar da hora, resolveram dormir no interior do veículo a que estavam, estacionado no pátio de um posto de gasolina, localizado às margens da rodovia que liga as cidades de Maringá a Londrina.

Em virtude desse posto de combustível ser alvo de inúmeros assaltos recentes, o policial Aparecido Branco, juntamente com dois companheiros de ofício, faziam a ronda e promoviam a segurança do local, e ao se aproximar do automóvel estacionado por três ocupantes, disparou um único e certeiro tiro, que atingiu o deputado no peito, direto no coração, provocando-lhe morte instantânea, pois acreditava tratar-se de assaltantes. O enterro do parlamentar transformou-se numa das maiores manifestações políticas vistas naquele Estado.

Devidamente denunciado pelo Ministério Público, foi realizada a instrução processual. O Deputado Federal Freitas Nobre, atualmente falecido, líder do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) a época, fora ouvido na cidade de Brasília, via carta precatória. Foi conhecedor de uma mensagem recebida e psicografada por Chico Xavier, procedente da vítima, Heitor Cavalcante de Alencar Furtado. Nesse documento, ele reconheceu o disparo da arma que o atingiu como um acidente, uma triste fatalidade. Essa carta foi admitida como autêntica, tanto pela testemunha como pelo pai da vítima, Alencar Furtado, que, inclusive, disse em juízo que esteve pessoalmente com o médium em Uberaba, cidade onde Chico Xavier residia, no Estado de Minas Gerais.

Nessa oportunidade, o juiz responsável pelo processo achou-se sem condições de conduzir o julgamento, por inúmeros fatores, havendo, portanto, a necessidade da presença de outro magistrado de Maringá, doutor Miguel Thomaz Pessoa Filho. O juiz, analisando o caso, pronunciou o réu a júri popular. No dia marcado para a segunda fase do rito, o salão do fórum ficou pequeno para a quantidade de pessoas que ali se encontrava para assistir ao julgamento. O embate na tribuna entre o Ministério Público, os assistentes da acusação e os defensores do acusado foi bastante exaustivo, prolongando-se o rito por cerca de trinta e três horas, após inúmeros tumultos e interferências médicas.

Com a devida autorização judicial, o advogado de defesa, doutor Cylleneo Pessoa Pereira, distribui fotocópias da carta psicografada por Chico Xavier, que muito contribuiu para que o magistrado, no momento da pronúncia, retirasse a qualificadora imputada na denúncia do Ministério Público para homicídio simples. Eis um pequeno trecho da mensagem psicográfica, retirada da obra “Psicografia no Tribunal”:

O que se seguiu sabem todos: os homes armados chegaram com vozes altas. Acordei surpreendido e notei, mais com a intuição do que com a lógica, que os recém-chegados eram pessoas inofensivas, tão inofensivas que um deles tocou a arma sem saber manejá-la. O projétil me alcançou sem meios-termos e, embora o tumulto que se estabeleceu, guardei a convicção de que o tiro não foi intencional. O olhar ansioso daquele companheiro a desejar socorrer-me sem qualquer possibilidade para isso não me enganava.

.......

Formulo votos aos poderes divinos para que o acontecimento seja assinalado sem qualquer conotação política, de vez que o Fábio e eu repousávamos por alguns momentos ao lado de gente pacífica, mas naturalmente receosa de contato com aventureiros que enxameiam por aí.

Espero que o seu ânimo, pai amigo, prossiga com firmeza para adiante. Vejo-o em companhia de nosso amigo Freitas. Caminhem para a frente contornando as pedras da marcha sem dinamitá-las, enquanto prossigo aqui na direção da frente, rodeando os obstáculos sem a ideia de eliminá-los de vez. O tempo não falha, e o espírito de serviço nunca se engana. Avancemos agora nessas bases de lealdade a nós mesmos, sem desconhecer o espírito de sequência que rege todas as realizações (2009, p. 112, 113, grifo nosso).

No fim dos debates, o Conselho de Sentença reuniu-se na sala secreta, e por cinco votos a dois, decidiu que o tiro disparado contra o Deputado Federal que ceifou a sua vida, feito com a arma portada pelo policial civil, foi acidental, o que possibilitou ao juiz aplicar ao réu, em função da dosimetria, a pena de oito anos e vinte dias de reclusão. O promotor de justiça não se conformando com a sentença, recorreu do veredicto, aduzindo que a decisão contrariava os autos, ao ter como base uma mensagem psicografada, que não tem um sequer valor legal. A defesa, no entanto, em nada se manifestou, e o pedido foi submetido ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que votou pela manutenção da decisão do Conselho de Sentença, confirmando a pena imposta.

Percebe-se, mais uma vez, que em grau recursal, admitiu-se a mensagem psicografada como meio de prova lícita, o que faz sustentar e enaltecer o argumento que esse tipo de documento tem de ser visto de outra forma, não como uma afronta à Constituição, a qual inadmite apenas aquelas provas obtidas por meios ilícitos, o que não é o caso da matéria analisada no presente trabalho de pesquisa.

4.3.3 Caso Iara Marques Barcelos

O último caso tratado no presente trabalho, e por sinal mais recente na história do Judiciário brasileiro, ocorreu na cidade de Viamão, no Estado do Rio Grande do Sul, no dia 01 de julho de 2003, e julgamento ocorrido em 2006, tendo como sujeitos principais o cartorário Ercy da Silva Cardoso, vítima do ocorrido, Iara Marques Barcelos e Leandro Rocha de Almeida, autores do fato.

Consta nos autos que a corré, 63 anos de idade a época, foi acusada de ser a mandante do homicídio de Ercy Cardoso, 71 anos de idade, com dois tiros na cabeça, com quem conviveu até o ano de 1996, ordenando que o caseiro, o correu Leandro Almeida, executasse o plano ardiloso por ciúmes do cartorário, mediante promessa de recompensa estimada em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), dado que mantinha um relacionamento extraconjugal com a vítima, mesmo estando casada. Ambos foram denunciados por homicídio qualificado, insculpido no artigo 121, §2º, incisos I e IV, do Código Penal, processados, e, ao final da primeira fase do rito, pronunciados. Ocorre que a corré interpôs Recurso em Sentido Estrito, pleiteando a separação dos processos, o que foi concedido pelo Tribunal.

No julgamento do caseiro, disse ter sido contratado pela corré para dar um susto no patrão, mas resultou na fatalidade ora descrita. Foi condenado pelo júri popular a 15 anos e 6 meses de reclusão, mesmo tendo voltado atrás em seu depoimento e negado a execução do crime e a autoria de Iara Marques.

Antes da sessão plenária do júri da corré, que se deu em 2006, foram apresentadas duas cartas, assinadas pela vítima, psicografada pelo médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, sem constar nesse documento a suposta real autoria do crime. Uma tinha como destinatário o marido da corré, amigo da vítima, e a outra a própria acusada. Segue um pequeno trecho de uma das cartas, lida pelo advogado, doutor Lúcio de Constantino, na sessão do Tribunal do Júri, sob os ouvidos atentos da Juíza-Presidente, das partes, do Conselho de Sentença e da plateia que ali se encontrava:

O que mais me pesa é ver a Iara acusada desse feito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes. Por isso tenho estado triste e oro diariamente em favor de nossa amiga para que a verdade prevaleça e a paz retorne em nossos corações (2009, p. 122).

A acusação até tentou impugnar o documento, sustentando a tese de prova ilícita, o que de fato é abolido pelo nosso sistema constitucional, e de que a assinatura de Ercy estava com a letra “i”, e não com “y”, mas não foi deferida pelo magistrado essa sustentação do representante do Ministério Público, pois o juiz não verificou por essa óptica, até porque, no documento, a vítima não chegou a atribuir a autoria do delito. E com relação à assinatura, foi explicado que o psicógrafo em questão possuía o dom da mediunidade intuitiva, isto é, tem a função de interpretar a mensagem espiritual, transmitindo-a ao papel de forma mais fiel possível, ao contrário do médium mecânico.

Os jurados, após toda a instrução e debates, tomando conhecimento do conteúdo da carta que inocentava a acusada, e de outras provas juntadas ao processo, absolveram-na por cinco votos a dois. Como de praxe, em decisões dessa natureza, o Ministério Público recorreu da sentença, alegando nulidade após a pronúncia por suspeição de um dos jurados, o mesmo fez o assistente da acusação, sustentando a mesma imparcialidade de um membro do Conselho de Sentença, assim como a ilicitude da prova psicografada.

No julgamento da Apelação sob o nº 70016184012, em 11 de novembro de 2009, sendo relator o Desembargador Manuel José Martinez Lucas, manifestou-se sob o fundamento de que a decisão da Juíza-Presidente do Tribunal do Júri não foi contrária ao texto legal expresso nem à decisão dos jurados, desprovendo, dessa forma, o apelo da acusação. A seguir, parte da decisão do Desembargador-Relator quanto ao recurso interposto pelo assistente da acusação:

[...] fazem-se necessárias algumas considerações em torno da questão da carta psicografada [...] e que foi utilizada pela defesa em plenário de julgamento [...]. A matéria, naturalmente, é interessante, pitoresca e polêmica, mesmo porque refoge ao usual no quotidiano forense, ainda que não seja inédita, e envolve uma provável comunicação com o mundo dos mortos, com reflexos numa decisão judicial.

Desde logo, consigno que não vejo ilicitude no documento psicografado e, consequentemente, em sua utilização como meio de prova, não obstante o entendimento contrário do sempre respeitado Prof. Guilherme de Souza Nucci [...].

Na realidade, o art. 5º, VI, da Constituição Federal dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” [...]

Só por isso, tenho que a elaboração de uma carta supostamente ditada por um espírito e grafada por um médium não fere qualquer preceito legal. Pelo contrário, encontra plena guarida na própria Carta Magna, não se podendo incluí-la entre as provas obtidas por meios ilícitos de que trata o art. 5º, LVI, da mesma Lei Maior.

É evidente que a verdade da origem e do conteúdo de uma carta psicografada será apreciada de acordo com a convicção religiosa ou mesmo científica de cada um. Mas jamais tal documento, com a vênia dos que pensam diferentemente, poderá ser tachado de ilegal ou de ilegítimo. [...]

Em outras palavras, não se sabe se, na ausência do documento em questão, o veredicto não teria sido o mesmo, com base nas outras provas produzidas nos autos e nos debates realizados em plenário.

[...] In casu, a participação da apelada na morte da vítima, como mandante e patrocinadora dessa empreitada criminosa, é relatada pelo co-réu Leandro da Rocha Almeida, [...] narrando que a ré Iara lhe teria prometido a importância de R$ 20.000,00 para dar um corretivo na vítima [...]. Posteriormente, em juízo, Leandro mantém a acusação contra Iara, mas nega a prática do crime [...]. Por fim, em plenário de julgamento, Leandro nega tudo, inclusive qualquer participação da ré Iara no fato descrito na denúncia. [...] a verdade é que não se pode considerar tão inconstantes declarações como prova cabal de que a acusada encomendou a morte da vítima. [...]

Em resumo, ainda que existam nos autos elementos que embasam a acusação contra a apelada e que podem constituir uma versão contra ela, não há como deixar de reconhecer que tais elementos são frágeis e se contrapõem a outros tantos elementos que consubstanciam uma outra versão, esta inteiramente favorável à acusada.

Em face do exposto, NÃO CONHEÇO do apelo do assistente da acusação [...] e NEGO PROVIMENTO ao mesmo apelo baseado nas alíneas “b? e “d? daquele dispositivo

(TJRS, Apelação crime n. 70016184012. 1.ª Câmara Criminal, rel. Des. Manuel José Martinez Lucas, 11.11.2009, grifos nossos).

Portanto, com o não conhecimento e não provimento do recurso interposto pela apelação, voltou a valer a decisão do júri popular, que absolveu Iara Marques por cinco votos a dois. O Ministério Público ainda chegou a interpor Recurso Especial e Recurso Extraordinário, em 10 de março de 2010, que foram negados, e, em virtude disso, interpôs Recurso de Agravo de Instrumento em Recurso Especial, sob o nº 70036780591, e Agravo de Instrumento em Recurso Extraordinário, de nº 70036780575, que, atualmente, pendem de julgamento pelos Tribunais Superiores. Foi o processo que teve envolvimento de carta psicografada que está a mais tempo tramitando no Poder Judiciário a espera de uma decisão final, devido a quantidade de recursos que já foram interpostos.

Imperioso ressaltar com relação à mensagem que resultou no documento psicografado pelo médium e acostado aos autos pelo advogado da acusada, o defensor, assim, se posicionou, in fine:

Para quem desconhece, a carta psicografada consiste na escrita feita, em estado de inconsciência ou semiconsciência, por alguém dotado de determinada capacidade espiritual e que recebe mensagem enviada por outro já falecido. Tal poder, exercido pelo médium, revela-se em uma escrita automática e que não se confunde com telepatia (comunicação entre duas mentes vivas), nem com a clarividência (percepção extrassensorial).

De qualquer modo, como o tema é apaixonante, a controvérsia tomou lugar sobre a aceitabilidade em si, da carta, em um processo criminal. Os que não a admitem se firmam, entre outros, no aspecto de que a lei estabelece que a morte extingue a personalidade humana; a psicografia é Religião, e o Judiciário não é religioso; e não haveria forma de se usufruir de ampla defesa e do contraditório (2009, p.124, 125).

Mesmo sob o peso de tais questionamentos desfavoráveis sobre a admissibilidade desse documento como prova lícita, o eminente defensor as rebateu:

[...] a lei sequer traz previsão legal contra a carta. [...] muito embora o artigo 6º do Código Civil estabeleça que a morte é causa extintiva da personalidade humana (quando o sujeito não pode mais ser titular de direitos e obrigações), é indiscutível que esta disposição se revela como uma ficção jurídica e não realidade fática. Já com relação à religiosidade, frise-se que a carta psicografada não se confunde com Religião. Trata-se, sim, de uma consequência da espiritualidade que qualquer humano carrega consigo. Ora, o nosso Estado se funda na laicidade, não pertence a uma ordem religiosa, mas admite a espiritualidade, como se vê do preâmbulo da Constituição Federal.

.......

E mais: a psicografia não viola as garantias constitucionais do contraditório ou da ampla defesa. Veja-se que a carta pode até ser refutada, já que é passível de exames grafotécnicos ou de confrontação de conteúdo (2009, p. 125, 126).

Analisando-se o caso em comento, verifica-se que em plenário, houve, positivamente, a aceitabilidade do documento mediúnico como prova lícita, mas não se pode inferir desse raciocínio que os jurados se valeram dessa questão para absolver a ré, tendo em vista que agem por íntima convicção, o que afasta a motivação de suas decisões. E mesmo que tenham decidido com base na mensagem psicográfica, as demais provas carreadas aos autos levariam à absolvição, o que demonstra que não foi analisada per si, mas em conjunto com as demais.

Em suma, com a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, formou-se uma forte jurisprudência acerca da admissibilidade da psicografia em Tribunais do Júri, pugnando-se pela licitude e legitimidade desse tipo de prova, embora, como frisado anteriormente, a decisão do Conselho de Sentença não precise de motivação. Todavia, há de se perceber que a temática ainda será objeto de bastante discussão nos tribunais, pelo menos até o julgamento dos Agravos de Instrumentos em Recursos Especial e Extraordinário, para que se possa consolidar um entendimento adequado a que o tema faz jus.

4.4 PROJETOS DE LEI PARA A ALTERAÇÃO DO TEXTO LEGAL

Havia em trâmite em nosso sistema legislativo, alguns projetos de lei que tratavam do tema abordado no presente trabalho de pesquisa. Sabe-se que o Código de Processo Penal, diploma legal instituído pelo Decreto-Lei nº 3.869 de 03 de outubro de 1941, estabelece os procedimentos formais aos assuntos pertinentes ao crime. Está insculpido, precisamente, no Capítulo IX do referido diploma, o acervo referente à modalidade de documentação, como foi tratado no capítulo 02, seção 2.3, subseção 2.3.1. Destacou-se, naquele momento, o teor do artigo 232 da Lei Adjetiva Penal, objeto da alteração proposta que estava em tramitação na Câmara dos Deputados Federais.

Se aprovada tal proposta, sob a numeração PL nº 1.705/2007, apresentada pelo professor de teologia, bispo evangélico e deputado federal pelo Distrito Federal, Robson Lemos Rodovalho, passaria o caput do referido dispositivo legal a ter a seguinte redação: “Art. 232 – Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares, exceto os resultantes de psicografia” (grifo nosso).

O ilustríssimo deputado justificou seu projeto de lei aduzindo que todo objeto que tenha um certo valor probante deve estar intrínseca e concretamente relacionado aos fatos controversos, tendo em vista que alguns julgamentos a época adquiriram tamanha notoriedade pelo fato dos réus serem absolvidos ou condenados com fundamento em teor de documento psicografado, provocando grande inquietação em função de sua validade ou não pela comunidade jurídica. Assim, extrai-se parte da justificativa do respectivo projeto de lei, ipsis litteris:

Pergunta-se então: pode-se afirmar que os espíritos desencarnados têm os atributos divinos da onipresença, onisciência e onipotência? Não existindo tais tributos, pode-se acreditar nos relatos de um espírito? Há como se garantir que a pessoa que afirma receber um espírito estará dizendo a verdade? Não havendo a possibilidade de responder às variadas perguntas, o juiz poderá absolver o réu em razão do princípio in dubio pro reo, decidindo, pois, na dúvida, a favor do réu? A respeito de tudo isso, sobressai, no campo científico, a majoritária opinião no sentido de não ser possível contato com quem não participa do mundo físico (PL nº 1.705/2007, grifo do autor).

Argumentou, ainda, que não se deve admitir que os litigantes fiquem sujeitos a provas que não tem como ser contraditadas, ou seja, não passaram pelo crivo do contraditório de forma concreta, ficando o magistrado adstrito em sua fé religiosa.

Nessa mesma esteira de alteração legislativa, o deputado federal Costa Ferreira, entendendo que a proposta deveria ser melhorada, decidiu oferecer, também, um projeto de lei sob a numeração PL nº 3.314/2008, cujo trâmite estaria em conjunto com a proposta inicial do PL nº 1.705/2007, no entanto, mantendo o caput do art. 232 do CPP na sua originalidade, acrescentando um segundo parágrafo, com o seguinte teor: “§ 2º - Não se considera documento o texto psicografado” (grifo nosso).

O deputado justificou seu projeto, utilizando-se dos mesmos argumentos outrora esposados pelo parlamentar Robson Lemos Rodovalho, demonstrando que o texto advindo da psicografia não teria o condão de ser submetido ao contraditório, não tendo, dessa forma, como ver obedecido o due process of law.

Foi indicado como relator do Projeto de Lei do deputado Robson Rodovalho na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania o deputado federal do Espírito Santo, Neucimar Ferreira Fraga, que sintetizou sua posição e deu seu voto, in fine:

Com relação à técnica legislativa, a proposição está perfeita, pois atende os preceitos da Lei Complementar nº 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis. O pressuposto da juridicidade também está alcançado pela proposição. Quanto ao mérito, entendemos que a presente reforma legislativa deve prosperar. Recentemente ocorreu um caso em que um material psicografado foi levado à discussão e apreciação no plenário do júri, no Estado do Rio Grande do Sul. Tal fato macula os princípios constitucionais que norteiam o ordenamento jurídico pátrio [...] (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania).

Expôs, ainda, em seu voto que, primeiramente, o Estado brasileiro é laico, devendo, portanto, os Poderes da República serem exercidos separadamente dos preceitos religiosos. Outro argumento é que a prova processual oriunda de psicografia afronta, cabalmente, o dispositivo insculpido no art. 5º, inciso IV, da Carta Magna, que permite a manifestação do pensamento, vedando-se o anonimato. E, por fim, que o material resultante de psicografia não admite contraditório, sendo uma prova adquirida arbitrariamente, não se adequando ao princípio do devido processo legal, concluindo, assim, seu voto pela constitucionalidade, juridicidade, e boa técnica legislativa, e, no mérito, pela aprovação do Projeto de Lei nº 1.705/2007.

Não obstante ao entendimento e voto do ilustre relator, imperioso destacar a posição do deputado federal e delegado de polícia federal pelo Rio de Janeiro, Marcelo Zaturansky Nogueira Itagiba, apresentando seu voto em separado, na mesma Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Declara o deputado, em seu voto, que presentes estão os requisitos da competência constitucional e legitimidade para proposta de alteração legal, todavia, materialmente, ao contrário dos posicionamentos do autor e relator do projeto, a proposta fere substancialmente os preceitos constitucionais.

O parlamentar explica que o projeto de lei quando coloca que o juiz fica preso exclusivamente em sua fé religiosa, ao valorar a admissibilidade do documento apenas por ser psicografado, incorre em injuridicidade, porque, de certa forma, está tolhendo o exercício da livre apreciação das provas pelo magistrado, o que vai muito além de seus dogmas religiosos, além de inconstitucional, por restringir a liberdade de pensamento e de credo.

Não há falar em arbitrariedade da prova obtida por psicografia, muito menos de não proporcionar a ampla defesa e o contraditório no processo, que por sinal serão desrespeitados – os princípios – caso haja a aprovação do referido projeto. Assim, consigna-se parte do voto do deputado:

[...] Os princípios decorrentes do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, previstos no inciso LV do art. 5º da Carta Maior, os quais podem ser expressos sob a fórmula da “informação necessária + reação possível”, parecem igualmente arranhados. Isso porque deles se extraem o exercício dos meios e recursos inerentes à ampla defesa: ter conhecimento claro da imputação, poder apresentar alegações contra a acusação; poder acompanhar a prova produzida e fazer a contraprova; e poder recorrer da decisão desfavorável (Constituição de Comissão e Justiça e de Cidadania).

Vale ressaltar o ponto de vista técnico do advogado, professor, administrador de empresas e deputado federal de São Paulo, Régis Fernando de Oliveira, que também deu seu voto em separado ao PL nº 1.705/2007, como fez o deputado anterior, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Entende o parlamentar e jurista que a matéria em xeque não fere o nosso ordenamento jurídico só por violar os dispositivos constitucionais, mas também por reduzir o livre convencimento do juiz em valorar as provas carreadas aos autos, especificamente na admissibilidade do documento psicografado, já que esse princípio é um dos pilares da ordenança constitucional, na qual revela e reforça com magnitude a autoridade do magistrado. Assim, ao final, votou pela inconstitucionalidade, injuridicidade e boa técnica legislativa, e, no mérito, pela total rejeição da matéria.

Após a manifestação dos votos em separado dos deputados federais anteriores, verificou-se que a o entendimento não era tão pacífico assim e que o relator original não estava se manifestando adequadamente na medida em que o projeto voltava a sua mesa, então foi nomeado como novo relator o deputado Antonio Carlos Biscaia, que deu seu voto em 14 de abril de 2009, votando pela constitucionalidade, injuridicidade, boa técnica legislativa e pela rejeição total da matéria, no que tange ao mérito, tanto do PL nº 1.705/2007 quanto do PL nº 3.314/2008, apesar de, mesmo assim, não considerar o documento psicografado como prova jurídica, pois acredita na sua correlação com dogmas religiosos. De toda a sorte, os referidos projetos de lei foram arquivados nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, publicado em 01 de fevereiro de 2011.

Em suma, percebe-se com o referido arquivamento que a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados decidiu, por enquanto, manter as coisas como se encontram, ou seja, sem alterar a legislação processual penal vigente no que se refere a matéria em comento, cabendo, exclusivamente, ao magistrado, no caso concreto, valorar a admissibilidade desse tipo de prova no seu livre convencimento motivado, e aos jurados, por ocasião do júri popular, por íntima convicção.

Destaca-se que, apesar de toda essa discussão legislativa acerca da reforma parcial do artigo retro do Código de Processo Penal, no Estado de Pernambuco, por ocasião da implantação da Constituição do Estado, em 1989, gerou perspectivas acerca do tema em voga; isso porque o artigo 174 da respectiva Constituição Estadual assegura assistência à pessoa dotada de aptidão paranormal, consagrando esse Estado-membro como o precursor em tal reconhecimento. Eis o teor do artigo, ipsis litteris:

Art. 174. O Estado e os Municípios, diretamente ou através de auxílio de entidades privadas de caráter assistencial, regularmente constituídas, em funcionamento e sem fins lucrativos, prestarão assistência aos necessitados, ao menor abandonado ou desvalido, ao superdotado, ao paranormal e à velhice desamparada (grifo nosso).

Vislumbra-se, portanto, que o tema tratado nesse trabalho de conclusão de curso é bem polêmico, pelo fato de mobilizar grande parte das autoridades a discutir sobre a questão, seja em faculdades, nos tribunais ou nas sessões legislativas com projetos de lei, tudo para um saudável debate jurídico. Isso é o Direito.


CONCLUSÃO

É indubitável, em nossa realidade, que as pessoas possuem conceitos e crenças predeterminados sobre variados assuntos, principalmente no que tange a temas jurídicos, como é o caso do presente trabalho de conclusão de curso. O Direito não é estático, é dotado de interpretações e posicionamentos antagônicos, e, por isso, obviamente, não haveria um entendimento firmado e absoluto acerca da psicografia como prova jurídica lícita.

O Estado Democrático de Direito brasileiro é laico – isso é fato! –, como assevera a Carta Magna, ou seja, não há uma religião oficial adotada pelo nosso país, e é por essa óptica que se valem os opositores para defender a ideia de que a psicografia é ilícita, posto que a associam, de imediato, à religião. E sob nenhum aspecto ela pode interferir nas decisões processuais, o que é natural e justo. Porém, esquecem-se de que não é a religião que intercede no momento em que ocorre o fenômeno mediúnico que resulta na psicografia, tendo em vista estar sob o controle do homem, falho e repleto de conveniências, mas, sim, os fatores identificados como extraordinários e, sendo assim, de cunho científico, que nada têm a ver com a religiosidade.

A psicografia não deve ser tachada em nosso sistema como uma prova ilegal, embora já tenham existido, expressamente, a rotulação como prova ilícita. Ela deve ser analisada casuisticamente, seja em juízo comum, no qual o magistrado se utilizará da sua persuasão racional para a aceitação, seja nos tribunais do júri, pela íntima convicção do Conselho de Sentença, que não precisa de motivação para tanto.

Entende-se, portanto, tratar-se como meio de prova documental, em sentido amplo, já que o legislador processual penal abriu margem para interpretações extensivas ao conceituar o documento no artigo 232 da Lei Adjetiva Penal, sendo, pois, dotada de licitude, já que a nossa Constituição Suprema, acompanhada pelo Código de Processo Penal vigente, veda as provas ilícitas e suas derivadas, como, por exemplo, as obtidas por violação ao sigilo telefônico, o que não ocorre com a psicografia. Há os que sustentam a tese de que essa ofende, precipuamente, o princípio do contraditório, vez que não há a hipótese de se contraditar uma “testemunha do além”, considerando que o Código Civil de 2002, em seu artigo 6º, é expresso ao enfatizar que a personalidade jurídica termina com a morte do indivíduo, não havendo a possibilidade de vida post mortem. Não há falar em ofensa ao contraditório no momento da produção da prova psicográfica, posto que poderá ser refutada como prova material, no momento de sua apresentação em juízo. E um dos mecanismos a ser utilizado para tal confrontação é o exame grafotécnico, que atestará se a grafia existente é ou não da pessoa quando estava em vida, o que foi constatado diversas vezes pelo renomado perito e estudioso da psicografia de Chico Xavier, Carlos Augusto Perandréa.

De toda a sorte, não se pode atribuir a ela um status de prova absoluta, devendo ser valorada pelo magistrado em conjunto com todos os outros meios de prova existentes nos autos processuais, já que não se pode esquecer a existência de fraudes por médiuns “charlatões”. Nos dois precedentes apresentados, no entanto, houve a presença do ilustre e inigualável espírita brasileiro Francisco Cândido Xavier, o qual suas psicografias são, praticamente, incontestáveis no meio jurídico, escritor de centenas de obras dos mais diversos assuntos, grande parte oriunda de psicografia, sem reconhecer nenhuma delas como de sua autoria, o que demonstra, substancialmente, sua credibilidade face às mensagens espíritas apresentadas no âmbito jurídico.

Ainda que tenham ocorrido casos emblemáticos em que cartas psicografadas foram aceitas nos tribunais, é notório que o Judiciário ainda não está amplamente preparado para recepcionar esse tipo de prova, vez que, apesar das grandes repercussões, foram casos isolados, os quais surgem gerando bastante divergência. Não se pode negar que o último caso analisado nessa monografia fortificou a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a favor da admissibilidade da psicografia, chegando a um patamar de discussão bem elevado, com a interposição do Agravo de Instrumento em Recurso Extraordinário, havendo a necessidade de manifestação perante o Supremo Tribunal Federal, que ainda pende de julgamento. A decisão a ser tomada pelo Excelso Pretório, seja a favor ou contra a aceitação da psicografia como meio de prova judicial, indubitavelmente, traçará novos rumos no mundo jurídico.

Percebe-se que o tema é bastante polêmico, desafiador, alcançou a finalidade proposta pelo projeto de pesquisa, qual seja, considerar a carta psicografada como meio de prova documental e lícita, devendo ser analisada não de forma isolada no processo, mas sim em harmonia com todo o arcabouço probatório acostado aos autos, sendo sua aceitação julgada pelo livre convencimento motivado do magistrado, no procedimento comum, ou na íntima convicção dos jurados, no procedimento do júri popular, tudo para a busca da verdade real.

Reitera-se que o tema em apreço deve ser discutido não só na prática forense dos juízos, tribunais ou, mesmo, na seara legislativa, mas também no próprio ambiente acadêmico, no qual formará futuros profissionais críticos e conhecedores dos paradigmas existentes muito além do âmbito das faculdades.


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FERREIRA, Leandro Tavares. Psicografia no processo penal: a admissibilidade de carta psicografada como prova judicial lícita no direito processual penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3412, 3 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22918. Acesso em: 25 abr. 2024.