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Função do Poder Judiciário na perspectiva do neoliberalismo econômico e na perspectiva do Estado democrático de direito

a busca de uma identidade

Função do Poder Judiciário na perspectiva do neoliberalismo econômico e na perspectiva do Estado democrático de direito: a busca de uma identidade

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O perfil do Judiciário contemporâneo é composto por diretrizes e atuações voltadas para um viés mercadológico, com ditames exclusivamente empresariais que objetivam promover gestão, economicidade e eficiência.

Resumo: O presente artigo objetiva elaborar um estudo acerca das funções do Poder Judiciário na perspectiva econômica, tomando-se como ponto de partida o Relatório Técnico 319S do Banco Mundial em contraposição com a visão sociológica de Boaventura de Sousa Santos. Buscaremos estabelecer os contornos de um Poder Judiciário na perspectiva do Estado Democrático de Direito e das diretrizes do Plano Estratégico do Poder Judiciário Nacional. A metodologia utilizada será baseada na revisão de literatura com análise de relatórios e recomendações de entidades financeiras e do Conselho Nacional de Justiça. Como resultado, pretende-se demonstrar a existência de antagonismos entre a perspectiva econômica e a perspectiva inspirada nos princípios e valores do Estado Democrático de Direito inscrito na Constituição de 1988, no que diz respeito à definição da função social do Poder Judiciário brasileiro e à construção de uma identidade coerente com o referido paradigma de Estado. Sustenta-se que a legitimidade Poder Judiciário nacional está condicionada à sua aptidão para contribuir, juntamente com os demais poderes, para a realização do projeto constitucional da sociedade brasileira. Nesse sentido, a realização da justiça, enquanto missão estratégica assumida pelo Poder Judiciário, implica a assunção de uma função transformadora da realidade social concernente à garantia da efetividade dos direitos fundamentais e sociais juntamente com uma concepção do direito e das práticas jurídicas voltadas para o futuro e não para o passado, portanto, uma compreensão da função jurisdicional para além da perspectiva quantitativa inerente aos planos, metas e estatísticas.

Palavras-chave: Poder Judiciário- Banco Mundial- Estado Democrático de Direito- Neoliberalismo.


1 INTRODUÇÃO

O presente estudo visa analisar a crise de identidade vivenciada pelo Poder Judiciário contemporâneo.

As mais variadas discussões jurídicas situam a crise do Poder Judiciário nos desafios das exigências do mercado e do cumprimento de sua missão de realizar a justiça, com base nos princípios e valores constitucionais do Estado brasileiro.

A crise do Poder Judiciário se manifesta também na demora da prestação jurisdicional e na insuficiência da sua atuação para conformar condutas sociais orientadas para a reversão do déficit de efetividade dos direitos, em especial dos direitos fundamentais individuais e sociais.

O presente artigo visa introduzir ideias gerais capazes de demonstrar que a crise do Judiciário torna-se uma crise da inefetividade de direitos, sequela da lógica neoliberal, que desvia a justiça de uma visão verdadeiramente social e comprometida com a transformação da realidade e com as diretrizes da ética consequencialista, o que transforma o judiciário em um poder caracterizado por metas de cunho mercadológico.

Nesse contexto, entram em cena instituições financeiras, entidades públicas e universidades em busca da redefinição da identidade do Poder Judiciário e de alternativas para o enfrentamento do problema da justiça. Assim, se faz necessário refletir sobre a relação entre ausência de justiça substantiva e déficit de efetividade dos direitos fundamentais: 

Nesse viés, torna-se sumamente relevante refletir sobre as causas do déficit do sistema de efetividade dos direitos fundamentais (sociais), dentre elas as disfuncionalidades, os códigos de conduta, o modus operandi e as concepções político-jurídicas das instituições públicas encarregadas de sua aplicação. Tais instituições têm por função garantir a efetividade “material” dos direitos segundo um conceito de justiça substantivo. (VASCONCELOS, 2012, p. 55)

Para se adentrar na temática, é necessário compreender que ausência de efetividade advém de uma série de fatores históricos provocados por vários acontecimentos da segunda metade do século XX. Os episódios que contribuíram para a referida crise foram jurídicos, com a expansão dos direito sociais; econômicos, com a crise do petróleo; sociais, com a mudança de uma sociedade rural para urbana e por fim, político, pela falta de políticas públicas que efetivassem os direitos sociais assegurados naquele momento[1].

Neste texto, faz-se uma reflexão sobre os tribunais do país que abraçam a causa da eficiência, adotando práticas modernas de gestão pessoal e processual na tentativa de superar a crise do Poder Judiciário.

A fim de ultrapassar a crise de inefetividade do Poder Judiciário, a Emenda Constitucional nº 45/2004 instituiu o princípio da duração razoável do processo e conferiu ao Conselho Nacional de Justiça a função de planejamento estratégico do Poder Judiciário.

Dentro deste panorama, surgiu a necessidade de se examinar a função do Poder Judiciário, que é garantir os direitos individuais, coletivos e sociais, solucionar conflitos[2] entre cidadãos, entidades e entre esses e o Estado, além de contribuir para transformação da realidade social. O mencionado poder possui autonomia administrativa e financeira garantida pela Constituição da República para cumprir seus objetivos e estatuir suas próprias funções com maior eficiência, eficácia e efetividade, com fulcro na prestação jurisdicional e gestão de qualidade em sua própria Administração.

O presente artigo almeja traçar um estudo sobre a função do Poder Judiciário na perspectiva do Estado Democrático de Direito e em uma perspectiva capitalista de cunho neoliberal, pois o judiciário precisa buscar alternativas para construir uma identidade que corresponda aos valores primordiais de uma sociedade.

Nesse cenário, a formação de uma identidade do Poder Judiciário pode contribuir para um retorno dessa legitimidade que se encontra perdida. Conforme será demonstrado, o Judiciário caminha em uma identidade dual. Em outras palavras, há um conflito no âmago deste Poder. Percebe-se que o mercado, ou seja, os “fatores reais de poder” desejam um Judiciário parceiro, onde possam validar suas transações com fulcro  na garantia de direitos egoísticos. Já em um ponto de vista social, o Judiciário estaria  engajado em premissas solidaristas, plurais e coletivistas; logo, sua função não seria manter o status quo do poderio mercadológico.

Investiga-se no presente trabalho, que caminho deve ser percorrido pelo judiciário em prol da formação de uma identidade. Elege-se como marco teórico para a persecução da presente crítica, a visão sociológica de Boaventura de Sousa Santos. Assim, o artigo realiza um estudo sobre as políticas judiciárias e a formação do convencimento neoliberal. Estabelece uma análise crítica sobre o Relatório Técnico 319 S do Banco Mundial, bem como do Plano Estratégico do Poder Judiciário nacional partindo das premissas constitucionais que estatuem um Estado Democrático de Direito.


2 UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS JUDICIÁRIAS COM VIÉS NEOLIBERAL

Antes de permear as características e os contornos do neoliberalismo, deve-se discorrer sobre o liberalismo como forma de ponto de partida, para posteriormente pensar em políticas neoliberais direcionadas ao Estado, o que inclui o Judiciário.

O Liberalismo político surge na tentativa de superar as ideias absolutistas do século XVII. O precursor do liberalismo político foi o inglês John Locke, que em síntese trouxe o sistema de tripartite de separação dos poderes, defendeu a ideia de um Estado onde garantisse que todos os homens fossem livres, dotados de uma razão absoluta, que pudessem escolher suas ações com total liberalidade.

John Locke entendia que a divisão dos poderes era indispensável para por fim ao despotismo e ao absolutismo; todavia, entendia que a o poder legislativo seria o poder supremo. Argumenta que,  “enquanto subsistir o governo, o legislativo é o poder supremo (...) e todos os demais poderes depositados em quaisquer membros ou partes da sociedade devem derivar dele ou ser-lhe subordinados”. (LOCKE, 1998, p. 519)

 Continuamente as ideias de Locke, Montesquieu sistematizou a divisão dos poderes do Estado, e definiu a função de cada poder, do executivo, do legislativo e do judiciário por intermédio do sistema de pesos e contrapesos.

O Poder Judiciário na concepção de Montesquieu: “seria um poder nulo, que deveria se limitar a aplicar a lei aos casos concretos”. Por isso, restringia o Poder Judiciário a uma única ferramenta: “a boca que pronuncia a norma estabelecida pelo legislador”. (MONTESQUIEU, 2000, p.175)

Já no período do Estado Liberal, a atuação dos magistrados era limitada ao princípio da legalidade, onde o juiz, em uma concepção individualista, decidia a lide dentro dos contornos pré-estabelecidos pelo poder legislativo.  A função do poder judiciário era legitimar a atuação do legislador, detentor de um papel de destaque no cenário do século XIX. O distanciamento do juiz do campo político e ético visava resguardar a aplicação fidedigna do direito positivado, sem se atentar com a órbita social atual.

 Destaca-se que não compete ao estudo arrazoar sobre a história do liberalismo, mas apenas trazer em seu bojo aspectos relevantes para ingressar no estudo sobre o liberalismo econômico como forma de compreender sobre o neoliberalismo.

 Em uma perspectiva econômica, Adam Smith[3] foi o precursor do liberalismo econômico. O liberalismo é uma teoria baseada na liberdade econômica, da não intervenção do Estado na economia e da livre concorrência. Em outras palavras, o liberalismo adota a liberdade econômica e a exacerbação do individualismo com a respectiva diminuição da atuação estatal.

Smith foi o idealizador da teoria da “mão invisível”, tese que estatui uma força invisível capaz de equilibrar oferta, procura e preços. Sendo assim, o mercado se regularia automaticamente sem a necessidade de intervenção do Estado como balizador. Sua obra “A Riqueza das Nações” traz um estudo de como as nações poderiam se prosperar. Afirma tal obra que o elemento de geração da prosperidade econômica e a acumulação de riquezas para as nações estaria concebido no trabalho livre, sem um Estado regulador e interventor.

 Smith acrescenta a ideia de proteção à propriedade privada para proteger a ação tuitiva dos ricos contra os pobres e  os que não possuem nenhuma propriedade.

Para corroborar o descrito acima, cite-se Morrison quando aduz sobre as ideias de Smith:

O governo civil, na medida em que é estabelecido tendo em vista a segurança da propriedade, é de fato instituído para a defesa dos ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não têm absolutamente nenhuma. (MORRISON, 2006, p. 221)

Nesse excerto, percebe-se que a intenção e os ideais de Smith, bem como do liberalismo visavam preservar o patrimônio de uma classe social mais exacerbada em detrimento do restante da população.

Apesar de ter sido importante em determinada época para estabelecer limite aos poderes absolutistas, o liberalismo fortaleceu o Direito por meio de influencias na produção legislativa que estabeleceu limites para atuação estatal no mercado. Todavia, esse modelo acabou por favorecer uma determinada classe, que nas palavras de Lassale seria o favorecimento dos “fatores reais de poder”, pois, de fato, critérios individuais e egoísticos não satisfaziam a população. Novos direitos estavam sendo pleiteados e necessitava-se de um Estado garantidor dessas necessidades sociais.

Portanto, na passagem do Estado Liberal para o Estado Providência, o Direito foi desarticulado. No primeiro, enquanto tinha como princípio legitimador o Direito, no segundo se legitimava no tipo de desenvolvimento econômico e na forma de sociabilidade que acreditava estimular. A forma de regulação do Estado fez com que o mercado invadisse o Estado e a comunidade, diante de tal situação, o Estado perdeu seu papel central de protagonista, e a comunidade ficou marginalizada, o que gerou o enfraquecimento dos sindicatos e a verticalização das relações.

Nesse diapasão, fez (re) ascender o mercado, o que provocou a desconsideração da realidade e das formas de mudança social, e que, por sua vez, suprimiu outras formas de direito e de política. Logo, necessitava-se de um novo aparato (político, econômico, social) que mantivesse a órbita içada, mas por detrás de uma nova roupagem; então, tem-se o neoliberalismo. O neoliberalismo surge para suceder a ideia de Estado do Bem Estar Social ou como diz Boaventura o Estado Providência, uma vez que o Estado “grande” foi incapaz de efetivar os direitos assegurados naquele momento, principalmente quanto aos direitos sociais (trabalho, previdência).

Boaventura de Sousa Santos assegura que neoliberalismo é entendido como a nova versão do capitalismo de laissez faire. Centrada na questão da governabilidade, esta matriz regulatória pressupõe uma política de direito e de direitos que tende a agravar a crise da legitimidade do Estado. (SANTOS, 2005, p. 01)

Harvey (2012, p. 17) em seu livro “Neoliberalismo História e Implicações” remete que [...] o elemento vital do pensamento neoliberal é o pressuposto de que as liberdades individuais são garantidas pela liberdade de mercado e de comércio [...].

Harvey (2012, p. 12) sintetiza o movimento neoliberal articulando que o neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas [...].

Boaventura (2005, p. 13) destaca três períodos do neoliberalismo. Por volta de 1986, momento em que foram aplicadas três regras fundamentais: a privatização, a “mercantilização” e a liberalização. Estas três regras tornaram-se pilares do neoliberalismo. A década seguinte (de 1986 a 1996) foi o ponto alto do neoliberalismo, com o Estado a retirar-se do setor social e da regulação econômica, com a lei do mercado a presidir à regulação econômica e social, e com a proliferação de organizações da sociedade civil (“terceiro setor”), com finalidade de satisfazer as necessidades humanas a que o mercado não consegue dar resposta e o Estado já não está em condições de satisfazer. Esse é também o período em que os fracassos do mercado, enquanto grande princípio da regulação social, se tornam evidentes (aumento da polarização dos rendimentos e dos níveis de riqueza, com o seu efeito devastador sobre a reprodução dos modos de subsistência de populações inteiras; o aumento generalizado da corrupção; os efeitos perversos da conjugação da lei do mercado com a democracia não-distributiva, conducente à implosão de alguns Estados e a guerras civis Inter étnicas).

Resta evidente que o neoliberalismo adota como premissas básicas a liberdade econômica e a exacerbação do individualismo associada à diminuição da atuação do Estado.

Segundo David Harvey (2012, p. 13) o processo de neoliberalização, envolveu destruição não somente dos antigos poderes e estruturas institucionais (chegando mesmo a abalar as formas tradicionais de soberania do Estado), mas também das divisões do trabalho, das relações sociais, da promoção do bem-estar social, das combinações de tecnologias, dos modos de vida de pensamento [...] Na medida em que julga a troca de mercado “uma ética em si capaz de servir de guia a toda ação humana, e que substitui todas as crenças éticas antes sustentadas [...]”.

Boaventura assegura que: “O neoliberalismo neutralizou, ou enfraqueceu grandemente, os mecanismos democráticos de redistribuição social – ou seja, os direitos socioeconómicos e o Estado providência”. (SANTOS, 2005, p. 19)

Apesar dos efeitos colaterais provocados pelo neoliberalismo, a crítica que deve ser tecida é a insuficiência desse modelo de concretizar os direitos humanos, os direitos fundamentais (sociais) e a dignidade da pessoa humana, todos alicerçados na Constituição. O neoliberalismo está instaurado em valores mercadológicos, impotentes e incapazes de satisfazer as necessidades de uma sociedade tão complexa como é a contemporânea; assim, questiona-se como se introjeta esses valores na sociedade e no Estado?

2.1 A Formação do Convencimento Neoliberal

Para poder compreender a influência das ideias neoliberais no Poder Judiciário, deve-se trazer a baila como esse modelo mercadológico se naturalizou e permaneceu imune a qualquer tipo de questionamento.

Boaventura (2011, p.80) em sua obra “A Crítica da Razão Indolente”, promove uma divisão histórica no desenvolvimento capitalista, até chegar aos dias atuais, estabelece uma ligação com a modernidade em três períodos: o capitalismo liberal do século XIX; o capitalismo organizado do final do século XIX até o começo da década de sessenta; e o capitalismo desorganizado, do final da década de sessenta até a atualidade.

No estudo proposto, interessa-se primordialmente pelo estágio atual definido por Boaventura Santos (2011, p.78) como capitalismo desorganizado, que decorre do processo de desfazimento das formas de organização do período anterior. A forma de regulação do Estado fez com que o mercado invadisse o Estado e a comunidade. Diante disso, o Estado perdeu seu papel de protagonista, e a comunidade ficou marginalizada, o que gerou enfraquecimento e verticalização das relações. Nesse diapasão, o processo dito como desorganizado, fez reascender o mercado, o que provocou a redução da realidade e das formas de mudança social.

Dessa forma, vive-se um momento de racionalização econômica, onde o mercado e os pilares do neoliberalismo invadiram o constitucionalismo contemporâneo,  com uma  visão de um Estado-juiz insuficiente, injusto e distante da realidade social que passa a ser a forma de atuação e de concepção do Judiciário.

Boaventura (2011, p.89) assegura que o Estado vai perdendo seu papel de ator central, protagonista, e vai paulatinamente cedendo espaço para que as regras de mercado interfiram nas estruturas sociais e estatais passando a ditar as suas regras e impor a sua lógica mercadológica; posto que o discurso neoliberal torna-se tão conexo, que implanta uma estrutura capaz de dominar Estado e a sociedade.

Consoante disposto, David Harvey assegura que (...) “o discurso neoliberal é a teoria do possível que implanta o impensado” (...). (HARVEY, 2012, p. 51)

O convencimento neoliberal segundo David Harvey (2012, p. 49) se apresenta da seguinte forma, há um articulado aparato conceitual, aparato esse que são estratégias de convencimento, os discursos, a assimilação e difusão de valores. Esse aparato, portanto é segundo Harvey (2012) um conjunto de ações articuladas que mobilizam sensações, valores e desejos. Isso quer dizer que, (2012, p. 51) o neoliberalismo se apropria em um discurso que comove que mobiliza.

Nesse cenário, as instituições neoliberais entram em atuação, posto que são capazes de introjetar nos diversos campos de atuação a ótica neoliberal, que assenta em valores de: eficiência, competição, gestão, maximização de resultados (lucro), minimização de custo, rentabilidade, planejamento. Essas ideias (valores) citadas são, para Rosenau, atividades ditas paranormativas.

Nesse viés, Rosenau[4] citado por Ana Paula Lucena Silva Candeas conceitua o que vem a ser atividades paranormativas. “Estas buscam a harmonização de comportamentos de atores sociais, não pela adesão a normas cujo descumprimento acarretaria sanção, mas a valores ou ideias, criando consensos para que se tornem um “entendimento rotineiro.” (CANDEAS, 2007, p. 21)

Candeas continua discorrendo nesse mesmo sentido.

A atividade paranormativa das organizações internacionais, principalmente das instituições especializadas das Nações Unidas, se traduz na uniformização das referências, nomenclaturas, linhas diretoras, legislações-tipo e códigos diversos. (CANDEAS, 2007, p.21-22)

Destarte, o Banco Mundial é uma instituição instrumento da disseminação das políticas neoliberais no campo em que atua, pois em 1996 trouxe o Relatório Técnico de nº 319 S [5] na tentativa de estabelecer políticas reformistas para o Judiciário dos países periféricos e semiperiféricos da América Latina e Caribe por meio de um aparato conceitual neoliberal.

2.2 O Relatório Técnico do Banco Mundial: Premissas para um Judiciário Neoliberal

A priori, resta evidenciar que o Banco Mundial é uma instituição financeira internacional de cunho intrinsecamente neoliberal vinculada as Nações Unidas.[6] De fato, precisa-se explicar qual interesse possui o Banco Mundial ao estabelecer políticas para o Poder Judiciário, posto que o Banco Mundial atua como elemento facilitador da economia de mercado.

Certo é que a tentativa do Banco Mundial em trazer reformas para o Poder Judiciário, visa assegurar certa proteção ao setor privado, pois este “setor não admite um Judiciário que impõe arbitrariamente a aplicação das regras”. (CANDEAS, 2007, p.27)

Destaca-se que o Banco Mundial publica relatórios desde 1978, todavia, no que toca ao papel do Judiciário são os relatórios de nº 19 de 1997 intitulado de “O Estado num mundo em transformação”, e o de nº 24 de 2002 titulado de “Instituições para os mercados” além do Relatório técnico de nº 319 S de 1996 referente aos Elementos de Reforma para o Poder Judiciário dos países da América Latina e do Caribe. Como o relatório de nº 319 S tornou-se o mais substancial quanto as reformas para o Poder Judiciário, posto que traz valores fundantes a serem incutidos nesse Poder, torna-se fundamental a análise deste.

Destaca-se que o documento foi disciplinado no ápice do neoliberalismo da década de 1990, momento este em que grandes investidores pretendiam ingressar para o mercado brasileiro.

Nesse Relatório, o Banco Mundial propõe para o Judiciário dos países da América Latina e do Caribe um programa de reforma, que dispõe:

Um programa para a reforma do judiciário remetendo-se especificamente aos principais fatores que afetam a qualidade desses serviços, sua morosidade e natureza monopolística. O programa de reforma também relaciona os aspectos econômicos e legais, como as raízes da ineficiência e injustiça do sistema. Apesar de não apresentar uma lista exaustiva de medidas, o documento discute os elementos necessários para garantir uma reforma, em direção a um poder eficiente e justo. Os elementos básicos da reforma do judiciário devem incluir medidas visando assegurar a independência do judiciário através de alterações no seu orçamento, nomeações de juízes, sistema disciplinar que aprimore a administração das cortes de justiça através do gerenciamento adequado de processos e reformas na administração das unidades judiciárias; adoção de reformas processuais; mecanismos alternativos de resolução de conflitos; ampliação do acesso da população a justiça; incorporação de questões de gênero no processo da reforma; redefinição e/ou expansão do ensino jurídico e programas de treinamento para estudantes, advogados e juízes. (DAKOLIAS, 1996, p. 04)

Nesse aspecto, o objetivo do Banco Mundial é padronizar as concepções do Judiciário e dos sistemas de justiça em seu campo de atuação; haja vista sugerir o fim do monopólio do Judiciário na prestação jurisdicional, reforçar as garantias ao direito de propriedade e propiciar o desenvolvimento econômico do setor privado.

Conforme Ana Paula Lucena da Silva Candeas (2007, p.26), o Banco Mundial não compreende mercado e Estado como agentes que se competem, mas que atuam numa situação de cooperação unidirecional, onde o Estado deveria fomentar o mercado. Isso quer dizer que o Banco compreende o Judiciário como “parceiro” dos grandes conglomerados internacionais que prima pela garantia dos contratos celebrados para que os investidores não incorram em riscos de prejuízos financeiros.

No mesmo sentido, (2007, p.21) o Banco propõe que o judiciário combata a “síndrome da ilegalidade”, proteja a propriedade privada, garanta o cumprimento dos contratos e seja previsível; visa a influenciar os Judiciários em seus valores e seu modus operandi com vistas a adaptá-los à economia globalizada.

A reforma econômica requer um bom funcionamento do judiciário o qual deve interpretar e aplicar as leis e normas de forma previsível e eficiente. (DAKOLIAS, 1997, p. 07)

O objetivo do Banco (2007, p. 22) é padronizar as concepções do Judiciário e dos sistemas de justiça de forma indireta; além de buscar incutir valores destinados a aprimorar o funcionamento dos sistemas judiciais através da previsibilidade nas decisões, independência, eficiência, transparência, credibilidade, combate à corrupção, proteção à propriedade privada, acessibilidade (métodos alternativos de solução de controvérsias) e respeito aos contratos.

Nesse diapasão, deve-se atentar para os valores trazidos pelo Banco Mundial que mais problemáticos se tornam e se mostram na ótica voltada para o Judiciário. O primeiro valor seria a eficiência. No entendimento do Banco (2007, p. 31) seria a capacidade do Judiciário de maximização das resoluções das demandas sociais. “Para cumprir esse valor o Banco sugere a aplicação do princípio basilar do mercado – a competição – como vetor para as reformas institucionais, e, em particular, fator de aprimoramento da eficiência do sistema judicial”. (CANDEAS, 2007, p. 32)

O Banco compreende que, para o Judiciário ser eficiente, este deve ser competitivo para poder concorrer com outros meios não judiciais de resolução de conflitos.

Outro valor trazido pelo Relatório é a independência. Para o Banco, este valor se apresenta por meio de três tipos:

O primeiro tipo de independência do judiciário, a funcional ou decisória, corresponde a possibilidade de se tomar decisões de acordo com o direito aplicável e não em fatores políticos externos . A interferência no processo decisório também pode ocorrer dentro do próprio Judiciário, o que tem sido denominado de independência interna. Além disso, devem ser respeitados os limites específicos das jurisdições. Também é importante que os juízes individualmente tenham independência pessoal, entendido como tal o fato de terem investiduras estáveis nos cargos e bons níveis salariais, bem como o controle das atribuições processuais dos magistrados, pautas de julgamento, critérios de remoção e transferência. (DAKOLIAS, 1996, p. 09)

Sobre a independência, Ana Paula argumenta: “o valor independência também está ligado ao da neutralidade”. (CANDEAS, 2007, p. 35)

No tocante ao valor previsibilidade, Ana Paula Lucena assenta:

Muitos desses valores, tais como independência, eficiência, transparência e acessibilidade já estão incorporados nos discursos e na prática dos magistrados brasileiros, que têm buscado aprimoramento institucional. Por outro lado, entretanto, os magistrados em geral parecem refratários ao valor “previsibilidade” das decisões judiciais. (CANDEAS, 2007, p. 22)

O Banco (1996) acrescenta que a previsibilidade não traz elementos objetivos que o expliquem, como acontece com a eficiência (custos, rapidez). Essa previsibilidade se traduz em mecanismos de racionalização do sistema judicial, na medida em que o Banco tenta garantir um Judiciário portador de homogeneização das decisões, onde a norma é parâmetro.

Em última análise sobre os valores propostos ao judiciário pelo Banco Mundial,  percebe-se que houve uma busca em prol da  preservação e da garantia  de cumprimento de contratos celebrados e da proteção da propriedade privada. Diante do narrado, a intencionalidade do referido Banco é a garantia dos contratos e da propriedade privada independente de suas repercussões sociais.

Em suma, a intenção do Banco Mundial é garantir que o Judiciário seja previsível, eficiente em suas decisões, visa o favorecimento do mercado em suas transações, buscando com isso aumentar a competitividade e diminuir os riscos contratuais, propiciando assim um ambiente lucrativo e seguro para o comércio global.

O Presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Cláudio Balbino Maciel contesta o mercado como mecanismo suficiente para disciplinar com justiça a vida em sociedade, e defende que o valor precípuo para o Judiciário é a justiça:

O desenvolvimento econômico é, por certo, finalidade a ser obtida pelos governos. Mas não é, decididamente, tarefa do Judiciário produzir – e não deve produzir – desenvolvimento econômico. O Judiciário produz – e deve produzir – justiça (MACIEL, 2001, p. 7)

Todavia, mesmo passadas quase duas décadas, políticas neoliberais continuam  arquitetando o Judiciário com uma visão estritamente racionalista, ao argumento de que políticas econômicas poderão solucionar os problemas enfrentados por esse poder. Para Corroborar, o Relatório Técnico 319 S argumenta que: “o  programa de reforma relaciona os aspectos econômicos e legais, como as raízes da ineficiência e injustiça do sistema”. (DAKOLIAS, 1996, p. 04)

 Do excerto, depreende-se que as políticas neoliberais são tidas como a solução para a crise do Poder Judiciário. Em contrapartida, Boaventura de Sousa Santos critica:

Com o avanço do neoliberalismo, passou a entender-se que o modelo norte-americano era, não só o melhor, como também o único com capacidade de sobrevivência. Como é sabido, este modelo sempre assentou num fraquíssimo Estado social, o que explica, por exemplo, que 49 milhões de cidadãos de países ricos do mundo não tenham seguro médico por incapacidade financeira para o pagar. Nos últimos anos, temos assistido ao duelo entre a administração Obama e a oposição o que toca à reforma do sistema de saúde. A proposta do governo é o alargamento da cobertura de saúde, passando a incluir 31 milhões de pessoas. (SANTOS, 2011, p. 23- 24)

Em sintonia com a visão de Boaventura, Antônio Gomes de Vasconcelos expõe sua opinião sobre as características do neoliberalismo.

Conjunto de ideias e práticas generalizadas, direcionadas para um objetivo utilitarista, pode-se localizar o neoliberalismo como uma ideologia. Ideologia de caráter eminentemente econômico, dado o seu conteúdo utilitarista. Não se tem em mira qualquer outra perspectiva de natureza ética ou política. (VASCONCELOS, 2002, p. 117)

De certo as políticas neoliberais do Banco Mundial visam a manutenção do status quo; pois compreende a  função  judicial como aquela ordenadora das relações sociais entre o público e o privado, e de solucionador de conflitos, não havendo comprometimento com a busca de transformar a realidade social, como se pode apurar pelo transcrito abaixo:

O propósito do judiciário, em qualquer sociedade é de ordenar as relações sociais (entre entes públicos e privados e indivíduos) e solucionar os conflitos entre estes atores sociais. O setor judiciário na América Latina efetivamente não assegura essas funções, estado de crise que é atualmente percebido por todos os seus usurários - indivíduos e empresários - e seus atores - juízes e advogados. Como resultado, o publico em geral e os empresários passam a não acreditar no judiciário, vendo a resolução de conflitos nesta instituição como excessivamente morosa. (DAKOLIAS, 1996, p. 07)

Do entendimento anteriormente citado, aduz-se que, nesta perspectiva de um judiciário movido por uma identidade neoliberal, suas funções não ultrapassam a mera subsunção do fato à norma típica no positivismo kelsiniano. Nesse aspecto o Relatório estabelece que:

A reforma econômica requer um bom funcionamento do judiciário o qual deve interpretar e aplicar as leis e normas de forma previsível e eficiente. (DAKOLIAS, 1997, p. 07)

Assim, a ausência de uma visão sociológica corrobora para que o viés neoliberal esteja engendrado no paradigma da ciência tradicional, não reconhecendo a complexidade das relações sociais, marcado por uma visão caracteristicamente reducionista e mecanicista do Poder Judiciário.


3 O PODER JUDICIÁRIO NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Judiciário possui algumas funções formais, como por exemplo, a função jurisdicional e o controle de constitucionalidade; mas não se pode esquecer que o Judiciário também é uma instituição encarregada de administrar a justiça, propondo e promovendo formas eficientes e eficazes para contornar e minimizar os transtornos do sistema judicial brasileiro.

Para que se viabilize a compreensão das funções do Poder Judiciário, principalmente, a função de Administrar a justiça, se faz necessário compreender o que vem a ser um Estado Democrático de Direito, que possui uma definição no artigo 1º da Constituição. A referida definição está consubstanciada a partir de elementos constitutivos dos fundamentos primordiais do também chamado Estado Constitucional, Estado Pós-Social ou Estado Pós Moderno, cujos fundamentos não se assentam apenas na proteção e efetivação dos direitos humanos de primeira dimensão (direitos civis e políticos), de segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais), mas também nos direitos de terceira dimensão (direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos) e nos direitos de quarta geração (direto de proteção social contra os reflexos do processo de globalização desenfreada). [7]

Os fundamentos Constitucionais que definem o Estado Democrático de Direito e que possibilitam a compreensão da verdadeira função do Poder Judiciário em um Estado Constitucional consubstancia-se no art. 1º da Constituição:

Art. 1º: A república Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II – a cidadania

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa

V – o pluralismo político

Parágrafo único: Todo poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos diretamente, nos termos desta constituição.

Segundo o entendimento de José Afonso da Silva, o conceito de Estado Democrático de Direito é tão amplo que engloba uma fusão entre os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito.

O Estado Democrático de Direito reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. (SILVA, 2001, p.116)

Conclui-se que um Estado Democrático de Direito é um Estado que promove o exercício dos instrumentos que tem a sua disposição para concretizar a justiça social fundando-se em valores e princípios que levem em conta à dignidade da pessoa humana. Em suma, um Estado Democrático de Direito é aquele que prioriza e cumpre efetivamente os Direitos Humanos, tendo por objetivos primordiais e fundamentais a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, a correção das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem-estar e justiça sociais para todas as pessoas, o desenvolvimento socioambiental, a paz e a democracia almejada pelo constituinte originário.

Para compreender a verdadeira função do poder judiciário, é necessário compreender que o Estado Democrático de Direito não objetiva apenas justificar os direitos sociais como direitos humanos, mas sim garanti-los e efetivá-los. Nesse viés, exsurge a importância do Poder Judiciário, da sua função, da sua identidade eficaz tanto interna como externamente para promover a defesa dos direitos fundamentais e da inclusão social, especialmente por meio do controle judicial de políticas publicas capazes de transformar a realidade social.

Frente à Constituição, a função do judiciário passa a ser enxergada como instrumento de transformação da realidade social, não excluindo as funções formais positivadas, mas sim ampliando um leque de atuação do Poder Judiciário, transformando todos os seus membros, principalmente os magistrados, em atores sociais de suma importância para se concretizar os fundamentos e os objetivos da República.

A função do Poder Judiciário não pode e não deve ser compreendida apenas como uma função axiológica fundamental, relacionada à implementação dos valores fundamentais concebidos em uma sociedade democrática e pluralista. Deve-se ir além, pois o Estado Democrático de Direito é em sua essência, um Estado Social, cuja função primordial repousa na plena realização de valores e direitos humanos por intermédio da justiça social.

O Estado Democrático de Direito não mais aceita uma postura omissa e passiva do Poder Judiciário, “este deixou de ser um Poder distanciado da realidade social, para tornar-se um efetivo partícipe da construção dos destinos da sociedade e do país, sendo, além disso, responsável pelo bem da coletividade”. (TEIXEIRA, 1999, p. 182)

Para que o judiciário seja protagonista de suas próprias funções, se faz necessário um ativismo judicial inspirador da conduta habitual do magistrado que auxilia na formação de material jurídico positivo, é o que depreende dos dizeres de José Alfredo de Oliveira Baracho:

No Estado de direito exige-se grande esforço do juiz, para o exercício do desenvolvimento da função promocional do direito: – construção de uma jurisprudência que consagre os valores constitucionais da igualdade e da solidariedade, realizando-se os avanços normativos necessários à sociedade. (BARACHO, 1995, p. 29)

Boaventura de Sousa Santos, em pesquisas sobre “Os tribunais nas sociedades contemporâneas”, destacou o Brasil como o país no qual, apesar do predomínio de uma cultura jurídica cínica e autoritária, se multiplicam os sinais do ativismo dos juízes comprometidos com a tutela judicial eficaz de direitos. (SANTOS, 1996, p.45)

Apesar da afirmação feita por Boaventura quanto à multiplicação de ativismo por parte de muitos magistrados comprometidos com a função de transformação da realidade social, cabe a realização de uma análise crítica sobre as mazelas do Poder Judiciário, pois as propostas de fortalecimento[8] se tornam cada vez mais incompatíveis com as premissas de um Estado Democrático de Direito.

Para promover um judiciário transformador da realidade é necessário conhecer profundamente as necessidades sociais dos indivíduos que compõe determinado Estado.  Tal premissa, somente é viabilizada com um Poder Judiciário dialógico, plural e próximo da sociedade. 

Nesse aspecto, ultrapassada a ideia de democracia representativa e se atendo a uma democracia substancial, onde os cidadãos participem efetivamente das escolhas e do processo decisório, faz-se necessário uma relação dialógica. A abertura ao diálogo consubstancia um ambiente propício ao debate e enfrentamento de problemas, capaz de construir um judiciário efetivamente democrático e transformador da realidade.

Diante disso, “somente no bojo de uma ação comunicativa conduzida por uma teoria discursiva se poderá falar efetivamente em pluralismo e participação no sentido de democracia pretendida pelo Estado brasileiro”. (VASCONCELOS, 2009, p. 369)

João Bosco da Encarnação aduz que: “o agir comunicativo é caracterizado pela interação de ao menos dois sujeitos capazes de linguagem e ação (com meios verbais e extras verbais) estabelecem uma relação interpessoal”. (HABERMAS apud ENCARNAÇÃO, 1999, p.71).

Habermas esquematizou a teoria da ação comunicativa e Oliveira acrescentou a devida complementação:

Um dos propósitos de Habermas ao traçar a teoria da ação comunicativa, foi estabelecer parâmetros de discussão sobre a ação e linguagem tendo como consequência direta deste processo deliberativo, o sentimento de empatia social como reflexo da deliberação e também a participação cívica por excelência. Essa teoria propõe a isonomia de tratamento, e uma isonomia na instrumentalização nas ferramentas políticas de participação social. Democracia deliberativa nasceu nesta teoria, e essa ideia de um debate permanente nada mais é do que deliberação política instrumentalizada através de todos os elementos do grupo. (OLIVEIRA, 2011, p. 11)

Ressalte-se que, a prática do discurso deve ser embasada em princípios e em garantias constitucionais. Nesse aspecto, o Estado necessita mirar na igualdade entre os homens e no solidarismo como alicerce da organização do Estado, para que as prestações sociais assumidas sejam realizadas por meio do consenso. Antônio Gomes de Vasconcelos destacou:

Se em Habermas a legitimação das pretensões de validade se verifica por meio de uma Ética do Discurso e do consequente consenso dos participantes em terno delas, o acolhimento da teoria garantista coloca na base do consenso preconizado os princípios e as garantias constitucionais norteadores de sua prática. (VASCONCELOS, 2002, p. 370)

De acordo com o entendimento de Antônio Gomes de Vasconcelos (1999, p.11) “o Poder Judiciário somente será democrático se adotado, o mais amplamente possível, o modelo de Rousseau, com a mais ampla participação de todos os interessados”. [9]

O mesmo autor ainda reforça sua tese da dialogicidade nos seguintes fundamentos:

Com efeito, o enfrentamento da complexidade, a dinâmica das relações socioeconômicas e as contínuas e cada vez mais amíudes transformações da sociedade nacional contemporânea devem ser realizados pelo diálogo e pelo entendimento. Porém, se as deficiências do paradigma tradicional assim o determinam, não há como deixar de admitir a sua existência nas práticas institucionais de gestão da organização do trabalho e de aplicação do direito, impondo-se democraticamente uma revisão paradigmática dos códigos de conduta e do modo modus operandi das instituições.  (VASCONCELOS, 1999, p.20)

O Judiciário de um Estado Democrático de Direito, deveria se constituir em meio ou instrumento para a equânime consecução dos fins legítimos dos cidadãos, pois ele não é um fim em si mesmo, mas um meio de se alcançar premissas Constitucionais que estabelecem um projeto de sociedade com menor teor de desigualdade.[10]

Para que o Poder Judiciário promova sua função de maneira transparente e eficiente, com garantia de agilidade, controle administrativo e processual, foi criado em 2004, O Conselho Nacional de Justiça, previsto no artigo 103-B da Constituição. Assim, no próximo tópico se faz necessário discorrer sobre a nova identidade do Poder Judiciário frente às diretrizes e metas estabelecidas pelo CNJ.


4 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA: UMA PROPOSTA DE NOVA IDENTIDADE JUDICIAL

A Emenda Constitucional nº 45/2004 incluiu na estrutura orgânica do Poder Judiciário Nacional o Conselho Nacional de Justiça, a quem fora atribuído controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.

O CNJ exerce uma espécie de controle externo, considerado como uma verdadeira política judicial que impede inexoravelmente que os integrantes do Poder Judiciário atuem em desconformidade com o regime democrático, disposto no inciso VII, alínea “a” do art. 34 da CR/88.

 O Conselho Nacional de Justiça, previsto no artigo 103-B da Constituição da República de 1988 assume algumas funções, dentre elas, a função de prestação jurisdicional eficiente, e administração do Judiciário no sentido de realizar justiça, consoante disposição constitucional para se efetivar a democracia substancial. [11]

Nesse aspecto, Antônio Gomes de Vasconcelos aduz que a administração da justiça passa e está passando por profundas transformações, conforme disposto abaixo:

A administração da Justiça brasileira, por sua vez, passa por profunda transformação, coordenada e implementada pelo Conselho Nacional de Justiça. Pela primeira vez na história da Justiça brasileira, em coerência com a atribuição dada ao Estado pela Constituição de 1988, atribui-se ao Poder Judiciário a missão estratégica de realizar a justiça (Plano Estratégico do Poder Judiciário Nacional). Esta perspectiva, ao pôr em foco o problema da efetividade dos direitos fundamentais e da aptidão do Poder Judiciário para conformar condutas sociais, traz à evidência o problema da administração da Justiça em nosso País.

De outro lado, a filosofia da ciência e a epistemologia clássicas são confrontadas com a insuficiência de seus paradigmas para dar conta dos problemas da sociedade contemporânea segundo as premissas do Estado Democrático de Direito e, no caso nacional, para reformular os códigos de conduta e o modus operandi das instituições do Estado e as de defesa de interesses sociais, de modo a torná-las aptas a contribuir mais efetivamente para a realização do projeto constitucional de sociedade, incluídas as concepções teóricas que orientam suas práticas jurídico institucionais, de gestão pública e de administração da Justiça. (VASCONCELOS, 2012, p.13, Grifo nosso)

De acordo com o citado acima, o CNJ passou a ter incumbência da elaboração das políticas nacionais de administração da justiça e da coordenação e da gestão estratégica do Poder Judiciário, onde passou a editar normas relativas a tais assuntos, destacando-se especialmente a Resolução n. 70/2009 que diz respeito ao Plano Estratégico do Poder Judiciário Nacional. Transcreve-se abaixo as diretrizes do presente plano:

Art. 1° Fica instituído o Planejamento Estratégico do Poder Judiciário, sintetizado nos seguintes componentes:

I - Missão: realizar justiça.

II - Visão: ser reconhecido pela Sociedade como instrumento efetivo de justiça, equidade e paz social.

III - Atributos de Valor Judiciário para a Sociedade:

a) credibilidade; b) acessibilidade; c) celeridade; d) ética; e) imparcialidade; f) modernidade; g) probidade: h) responsabilidade Social e Ambiental; i) transparência.

IV - 15 (quinze) objetivos estratégicos, distribuídos em 8 (oito) temas: a) Eficiência Operacional: Objetivo 1. Garantir a agilidade nos trâmites judiciais e administrativos; Objetivo 2. Buscar a excelência na gestão de custos operacionais; b) Acesso ao Sistema de Justiça: Objetivo 3. Facilitar o acesso à Justiça; Objetivo 4. Promover a efetividade no cumprimento das decisões; c) Responsabilidade Social: Objetivo 5. Promover a cidadania; d) Alinhamento e Integração: Objetivo 6. Garantir o alinhamento estratégico em todas as unidades do Judiciário; Objetivo 7. Fomentar a interação e a troca de experiências entre Tribunais nos planos nacional e internacional; e) Atuação Institucional: Objetivo 8. Fortalecer e harmonizar as relações entre os Poderes, setores e instituições; Objetivo 9. Disseminar valores éticos e morais por meio de atuação institucional efetiva; Objetivo 10. Aprimorar a comunicação com públicos externos; f) Gestão de Pessoas: Objetivo 11. Desenvolver conhecimentos, habilidades e atitudes dos magistrados e servidores; Objetivo 12. Motivar e comprometer magistrados e servidores com a execução da Estratégia; g) Infraestrutura e Tecnologia: Objetivo 13. Garantir a infraestrutura apropriada às atividades administrativas e judiciais; Objetivo 14. Garantir a disponibilidade de sistemas essenciais de tecnologia de informação; h) Orçamento: Objetivo 15. Assegurar recursos orçamentários necessários à execução da estratégia.

Observa-se que, como descreve o inciso I do art.1º da Resolução 70/2009 o novo perfil traçado para o Judiciário Brasileiro é que este que tenha como missão a realização da justiça, visando o reconhecimento pela sociedade no sentido de ser um órgão na busca efetiva de justiça, equidade e paz social. Além de ter como valores: credibilidade, acessibilidade, celeridade, ética, imparcialidade, modernidade, probidade, responsabilidade social, ambiental, e transparência.

Diante do disposto pela Resolução 70/2009, pode-se deduzir que a busca precípua do Conselho Nacional de Justiça é contribuir para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência e efetividade, em benefício da sociedade. Nesse viés, Antônio Gomes de Vasconcelos demonstra as transformações implementadas por iniciativa do CNJ:

As significativas transformações endógenas por que passam as instituições públicas são elementos indispensáveis à recuperação da legitimidade e da credibilidade destas como corresponsáveis pela realização do projeto de sociedade inscrito na Constituição Federal. Mencionem-se, exemplificativamente, as transformações paradigmáticas concebidas e implementadas por iniciativa e coordenação do Conselho Nacional de Justiça no campo da gestão judiciária e da administração da Justiça e o processo de inserção da tecnologia da informação na atividade jurisdicional, com destaque especial para a informatização do processo ? Processo Judicial Eletrônico, ora em curso. Essa intensa movimentação do Poder Judiciário é, no plano endógeno (interna corporis), indispensável, mas insuficiente.

[...]

Por isso mesmo, o Plano Estratégico do Poder Judiciário aponta, além das medidas atinentes à gestão judiciária e à administração da Justiça, no plano interno, para um novo paradigma de jurisdição, que implica a abertura da Justiça para um modelo institucionalizado de interação com as demais instituições do Sistema de Justiça e com a sociedade, de modo a cumprir a missão institucional de realizar a justiça. O complemento das transformações preconizadas se dá, agora, no plano das relações externas do Poder Judiciário, que, passa a ser compreendido também como um agente de transformação social. E, ainda mais, inclui-se no âmbito da jurisdição a atuação da Justiça na busca da prevenção dos conflitos sociais, da efetividade da ordem jurídica e do tratamento dos conflitos de massa (VASCONCELOS, 2012, p. 47-48).

Nesse aspecto, além do Plano Estratégico disposto pela Resolução 70/2009, O CNJ passou a disciplinar medidas de cunho empresarial (metas, estatísticas) para gerir as atividades do Judiciário, focando em celeridade por meio de metas de curto, médio e longo prazo; o que de fato, requer que o Judiciário Nacional venha a ter um modus operandi objetivando aumentar a produtividade do órgão, a fim de cumprir a razoável duração do processo.

Em uma análise superficial, o estabelecimento de metas, como a de maior produtividade, por exemplo, poderia ser a solução da morosidade processual, garantindo aos jurisdicionados uma razoável duração do processo. Todavia, o estabelecimento de metas não levam em consideração as peculiaridades regionais de cada tribunal, pois trazem medidas de cunho nacional.

Nessa perspectiva, Repolês assenta:

O planejamento estratégico deve considerar as diferenças regionais de modo que não se pode apenas pensar medidas nacionais, gerais, mas sobretudo, buscar respeitar as especificidades de cada lugar, valorizar as soluções locais e considerar as dificuldades que se apresentam de modo e em graus distintos. (REPOLÊS, 2012, p. 230)

De fato, quando o CNJ utiliza-se de meios estatísticos e metas para aferir a produtividade dos tribunais, acaba por incutir no Judiciário a ideia de que este é o elemento que move o poder, sem levar em consideração a que “custo” prima-se por produtividade. Assim, o que está sendo prejudicado é a qualidade das sentenças proferidas.

De outra sorte, não se pode olvidar que essa “política” traz grande importância no tocante às estatísticas; entretanto, o que importa para o sistema de gestão judiciária posto em prática pelo CNJ são quantos processos foram distribuídos, quantos foram julgados em determinado ano, quantos estão pendentes, quais são os tribunais que detêm maior déficit em processos pendentes.

A utilização desse estratagema (maximização de metas) de forma estritamente objetiva, despreza as peculiaridades processuais, regionais e pessoais, pois os magistrados e serventuários passam a ser encarados como máquinas, porém incumbidos de sentenciar. Dessa forma, o que importa é “aumentar a quantidade de processos julgados” sem um mínimo de responsabilidade nas consequências produzidas pelas decisões.

O Judiciário passa a ser entendido como se empresa fosse, onde os jurisdicionados são clientes e ao magistrado cabe resolver a lide (conflito de interesses) dentro de menor tempo possível, tendo em vista que, quanto maior a produtividade do órgão, falaciosamente entende-se que será maior o resgate da legitimidade do Judiciário.

Não cabe aqui, tecer críticas quanto ao Plano Estratégico, mas sim demonstrar que, a tentativa do CNJ em gerir o Judiciário por meio de estratégicas de mercado (metas, estatísticas), deixando de garantir os direitos fundamentais e inserindo postura mecanicista, acaba por agravar a formação da identidade judicial.

As transformações trazidas pelo CNJ são superficiais[12] e não atingem o âmago do problema da crise de identidade do Judiciário, apresenta-se com um discurso belíssimo tendo como ápice a realização de justiça, mas carrega consigo instrumentos de viés puramente de mercado em detrimento de valores como o verdadeiro acesso à justiça, proposto por Mauro Cappelletti (1997).

Desta feita, o Judiciário entra em um conflito de identidade. Num primeiro olhar, percebe-se que a intenção do CNJ é promover uma mudança de perfil do Judiciário como um todo, tendo como pano de fundo, a concretização dos direitos fundamentais. Isso pode ser observado pela sua missão “máster”, que é a de realizar justiça, “no sentido de Judiciário como garantidor dos direitos constitucionais dos cidadãos”. (REPOLÊS, 2012, p. 231)

Em um segundo aspecto, o CNJ busca incutir no Judiciário, valores mercadológicos onde a produtividade é entendida como sinônimo de lucratividade, o que por si só é capaz de desviar o objetivo principal do Judiciário Nacional que seria realizar justiça.

Dessa maneira, o Judiciário deixa de ser um ator protagonista, que transforma a realidade social, e se torna engrenagem do sistema capitalista desorganizado[13].


5 A CRISE DE IDENTIDADE DO PODER JUDICIÁRIO

 Diante da averiguação abordada nos capítulos anteriores, indaga-se sobre a possibilidade de conciliar um Judiciário “para o mercado” [14], com fulcro em políticas neoliberais, com um Judiciário primado na efetividade dos direitos fundamentais (sociais). Assim, questiona-se: como construir uma nova identidade?

 Retoma-se a crítica de que o Judiciário encontra-se em uma crise de identidade; por um lado: assenta-se em modelo de desenvolvimento em regras de mercado e nos contratos privados, logo, para que estes sejam cumpridos e os negócios tenham estabilidade é necessário um Judiciário eficaz, rápido e independente; por outro lado, tem-se por escopo os preceitos do Estado Democrático de Direito e a inefetividade dos direitos fundamentais com a precarização dos direitos sociais.

Certo é que existem ao menos duas facetas de perfil no Judiciário Nacional: de um lado incita um judiciário preso à planos, metas e estatísticas como forma de gestão da atividade jurisdicional em busca de uma celeridade processual a todo custo, noutro caminho busca-se um judiciário comprometido com uma ideia de justiça social e acessibilidade da sociedade a esse órgão.

Ressalta-se que a tentativa do CNJ no sentido de resgatar a credibilidade e a legitimidade ao Judiciário se mantém por meio a um discurso contraditório possuidor de dois vieses, um neoliberal e outro de justiça social. Destaca-se que essa identidade dicotômica agrava a crise sistêmica que “assola” o Judiciário Nacional, não conseguindo garantir a efetividade dos direitos fundamentais no momento da entrega da prestação jurisdicional.

Para corroborar cite-se Antônio Gomes de Vasconcelos, quando diz que:

Mencionem-se, exemplificativamente, as transformações paradigmáticas concebidas e implementadas por iniciativa e coordenação do Conselho Nacional de Justiça no campo da gestão judiciária e da administração da Justiça e o processo de inserção da tecnologia da informação na atividade jurisdicional, com destaque especial para a informatização do processo ? Processo Judicial Eletrônico, ora em curso. Essa intensa movimentação do Poder Judiciário é, no plano endógeno (interna corporis), indispensável, mas insuficiente. Há, pelo menos, três desafios que a torna insuficiente: o citado déficit de efetividade da ordem jurídica, agravado por fatores culturais; o vício do demandismo; e a “explosão da litigiosidade”. Tais fatores mitigam os efeitos dessa movimentação interna e impede a instalação de um círculo virtuoso a partir das medidas adotadas. A aceleração do processo atende até certo ponto ao princípio da duração razoável do processo, mas deixa de fazê-lo na fase conclusiva, dado que a decisão e a intermediação da autocomposição dos litígios judiciais constituem tarefa eminentemente humana, e o que vinha se estacando no percurso do processo correrá o risco de saturação no final. (VASCONCELOS, 2012, p. 47- 48, grifo nosso)

Pelo transcrito, percebe-se que questões fundantes da crise não foram levantadas pelo CNJ como forma de construir uma identidade judicial, já que, questões culturais de fundo burocrático ainda permeiam esse Poder, tornando-o moroso e metódico. Ademais, o CNJ não buscou medidas que previnam o vício do demandismo e da explosão da litigiosidade dos grandes conglomerados que veem no judiciário seus parceiros empresariais.

Boaventura (1986) acredita que para superar essa crise de Identidade do Judiciário, faz se necessário uma série de reformas endógenas, sejam elas de caráter administrativos, de gestão, de desburocratização da relação processual, democratização do processo onde as partes sejam além de partícipes na relação. Isso quer dizer que, para superar a crise desse Poder deve-se ultrapassar mudanças relacionadas à gestão como vem sendo empregadas as metas, planos e estatísticas pelo CNJ.

Nesse diapasão, Boaventura (2011) em sua obra para uma Revolução Democrática da Justiça propõe uma democratização da justiça como requisito fundante para a mudança de perfil do Judiciário. Para ele, torna-se necessário pensar numa reforma da relação entre o órgão judicial e os jurisdicionado que favoreça o acesso ao serviço prestado. Nesse sentido inclui a criação de juizados especiais (juizados de “pequenas causas”), juizados especializados (julgam causas de determinado tema), eliminação dos obstáculos econômicos por meio de serviços gratuitos de assistência judiciária (núcleos de universidades, defensorias públicas), criação de um serviço que promova ações educativas com vista à educação para os direitos humanos (educação cidadã), que prima em emancipar os cidadãos sobre seus direitos, modos de defesa, estimulando outras formas de resolução de conflitos mais céleres e menos burocrático e menos conflituoso, tais ações acabam por repercutir na redução do demandismo, já que a população mais consciente de seus direitos e deveres não recorrerão ao Judiciário para promover lides temerárias.

Já no que concerne a uma mudança paradigmática no interior do processo judicial, Boaventura de Sousa Santos (2011) alvitra a necessidade de desburocratização judicial para sugerir uma maior participação das partes na condução processual, por meio de uma relação mais informal e horizontalizada entre juiz e partes.

Em consonância com o exposto, Repolês acrescenta que:

A simplificação dos atos processuais, a introdução de mecanismos de conciliação prévia e de mediação no interior do processo, a educação para a cidadania e até mesmo algo tão simples quanto a luta pela aplicação do direito vigente, são pontos importantes para a melhoria desse problema. (REPOLÊS, 2012, p. 235)

Como acima aduzido, tais mudanças melhoram o problema da crise do Poder Judiciário, entretanto, não eliminam. Tem-se que ater que o sistema neoliberal galgou todos os setores do Estado, inclusive o Judiciário, conforme já se apresentou.

Neste liame, deve-se ser prudente para compreender que vivemos num capitalismo desorganizado onde o poderio do mercado e sua força controlam o Estado, suas instituições e a sociedade, e que se livrar dessas amarras é um processo gradativo. Na visão de Boaventura de Sousa Santos (2011), vivemos atualmente em um contexto de transição paradigmática, no qual a morte de um paradigma contém o paradigma que o sucederá.

A transição de um paradigma dominante (capitalismo, consumismo, autoritarismo, desigualdades) para novos paradigmas (plurais e diversos) como quis o constituinte originário, deve ser uma ação conjunta por meio de um diálogo horizontalizado do Estado com a sociedade como forma de chegar ao âmago da crise.

Ana Paula Lucena da Silva Candeas dispõe que: “o mais importante nesse contexto é a permanência do diálogo entre os segmentos sociais na esfera nacional para que as instituições possam ser aprimoradas e os efeitos nocivos do Mercado possam ser corrigidos”. (CANDEAS, 2007, p. 40)

De sorte, para que haja a construção de uma identidade judicial que a sociedade almeja, deve-se ir ao foco do problema, retirar as falácias de toda dominação e manipulação das premissas neoliberais e caminhar rumo para a formação de um perfil judicial sob os paradigmas plural, social, solidarista, dialogal de uma democracia substancial que coadunam com os ditames da Constituição Cidadã de 1988.


6 CONCLUSÃO

Em plano programático, tem-se a perspectiva da construção de uma identidade judicial que priorize direitos humanos e abarque um comprometimento social efetivo e eficaz; mas para tanto, deve-se ir ao foco do problema, retirar as falácias de toda dominação e manipulação das premissas neoliberais e caminhar rumo para a formação de um perfil judicial sob os paradigmas plural, social, solidarista, dialogal de uma democracia substancial que coadunam com os ditames da Constituição Cidadã de 1988.

O Banco Mundial apresenta premissas de uma preocupação exclusivamente patrimonial (propriedade privada e manutenção dos contratos) com o consequente abandono da proteção da pessoa humana.  Legitima-se um documento (relatório 319S) que nega a prevalência dos direitos humanos. Segundo Antônio Gomes de Vasconcelos, (2002) a dignidade humana assegurada a todo cidadão somente é possível a partir da garantia do direito pautado pela justiça social, que se realiza na efetividade e não como uma função meramente simbólica dos direitos sociais fundamentais.

Destaca-se que se o Judiciário se apoiar por uma postura econômica haverá a perda da compatibilidade entre os "valores" do Estado Democrático de Direito estatuídos na Constituição de 1988; logo, o Judiciário não se preocupará com as consequências que podem advir das decisões judiciais, haja vista que eficiência será a razão de ser mais importante do órgão.

Ressalta-se que o Plano Estratégico do Poder Judiciário Nacional, no mesmo sentido do Relatório Técnico do Banco Mundial, viola as perspectivas do Estado Democrático de Direito, tornando incompatível a formação de uma identidade judicial. O Plano Estratégico possui, substancialmente, um viés econômico, adverso em muitos aspectos com o projeto de sociedade estatuído na Constituição de 1988. Primar por celeridade é sem dúvida algo importante, mas não é algo que deva prevalecer em detrimento de uma ordem jurídica justa.

O Relatório Técnico, anteriormente mencionado, visa a formação de uma identidade judicial pautada no neoliberalismo, incapaz de construir uma sociedade justa e solidária, bem como erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades regionais e sociais. Isso ocorre devido à ausência de preocupação com os fatores sociais, característica geradora do descaso com as consequências sociais provocadas pela excessiva valorização do mercado.

Por todo corroborado, o documento técnico número 319S do Banco Mundial não cumpre com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Há violação dos incisos I e III do artigo 3º da Constituição que trata da justiça social e traz nas entrelinhas a necessidade de um judiciário ator na transformação da realidade social.

Em sede conclusiva, pode-se dizer que o perfil do Judiciário contemporâneo é composto por diretrizes e atuações voltadas para um viés mercadológico, com ditames exclusivamente empresariais que objetivam promover gestão, economicidade e eficiência.


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Notas

[1] As consequências concretas das crises de hegemonia, de legitimidade e da matriz organizacional do Estado, em termos de multiplicação de conflitos e de novas formas de atuação política, obrigaram o Estado brasileiro a promover constantes ajustamentos no que se refere à organização socioeconômica e político administrativa no país, sem, no entanto, conseguir superar as próprias contradições em que tal organização se assenta. Nesse processo de ajuste, o foco cada vez mais profundo entre o sistema jurídico e os interesses conflitantes numa sociedade em transformação, exponenciado pelas tradicionais dificuldades enfrentadas pelo Judiciário para se adaptar aos novos tempos, conduziu a uma progressiva desconfiança tanto na objetividade das leis, como critério de justiça, quanto na sua efetividade, como instrumento de regulação e direção da vida socioeconômica. Decorre daí uma certa banalização da ilegalidade e da impunidade que passou a caracterizar a “imagem” do Brasil contemporâneo – a imagem de que os códigos teriam sido convertidos em simples ficção e de que sua violação sistemática teria sido convertida em regra geral, expressando a falência de instituições jurídico-judiciais, tornadas anacrônicas por não terem sabido renovar-se. (FARIA, 2010, p. 17)

[2] De acordo com o autor Mauro Cappelletti, a terceira onda traz a ideia de prevenção de conflitos como uma forma de superar a massificação de conflitos. (CAPPELLETTI, 1997, p 68)

[3] O escocês Adam Smith costuma ser satirizado como a figura paterna do capitalismo laisse-faire. Tido como defensor do egoísmo como fio condutor das ações humanas, Smith é muito lembrado por argumentar que as relações sociais devem, em grande parte, ficar a cargo da mão oculta do mercado livre, dos resultados de incontáveis interações de indivíduos egoístas  interesseiros. O desejo egoísta não é o motivo dominante da ação: aquilo que podemos chamar de egoísmo é na verdade amor-próprio que resulta em dano ou descaso para com os demais. Os seres humanos são criaturas voltadas para os próprios interesses. (MORRISON, 2006, p.213-219)

[4] ROSENAU, James N. et ali. Governança sem Governo. Ordem e Transformação na Política Mundial. 2000, p. 31

[5] O prefácio do Relatório Técnico assegura que: Os países da América Latina e Caribe passam por um período de grandes mudanças e ajustes. Estas recentes mudanças tem causado um repensar do papel do estado. Observa-se uma maior confiança no mercado e no setor privado, com o estado atuando como um importante facilitador e regulador das atividades de desenvolvimento do setor privado. Todavia, as instituições públicas na região tem se apresentado pouco eficientes em responder a estas mudanças. Com o objetivo de apoiar e incentivar o desenvolvimento sustentado e igualitário, os governos da América Latina e Caribe, estão engajados em desenvolver instituições que possam assegurar maior eficiência, autonomia funcional e qualidade nos serviços prestados. O Poder Judiciário é uma instituição pública e necessária que deve proporcionar resoluções de conflitos transparentes e igualitária aos cidadãos, aos agentes econômicos e ao estado. Não obstante, em muitos países da região, existe uma necessidade de reformas para aprimorar a qualidade e eficiência da Justiça, fomentando um ambiente propício ao comércio, financiamentos e investimentos.

O Poder Judiciário, em várias partes da América Latina e Caribe, tem experimentado em demasia longos processos judiciais, excessivo acúmulo de processos, acesso limitado à população, falta de transparência e previsibilidade de decisões e frágil confiabilidade pública no sistema. Essa ineficiência na administração da justiça é um produto de muitos obstáculos, incluindo a falta de independência do judiciário, inadequada capacidade administrativa das Cortes de Justiça, deficiência no gerenciamento de processos, reduzido número de juízes, carência de treinamentos, prestação de serviços de forma não competitiva por parte dos funcionários, falta de transparência no controle de gastos de verbas públicas, ensino jurídico e estágios inadequados, ineficaz sistema de sanções para condutas anti-éticas, necessidade de mecanismos alternativos de resolução de conflitos e leis e procedimentos enfadonhos. Este trabalho pretende discutir alguns dos elementos da reforma do judiciário, apresentando alguns exemplos da região. Esperamos que o presente trabalho auxilie governos, pesquisadores, meio jurídico o staff do Banco Mundial no desenvolvimento de futuros programas de reforma do judiciário.

[6] Disponível em: http://www.onu.org.br/index.php?s=fmi&x=-1003&y=-165. Nesse diapasão o Banco Mundial buscou contribuir para a implementação das chamadas reformas de primeira geração, ou seja, abertura comercial e financeira, privatizações, desregulamentações. Foi algo extremamente lucrativo para os potenciais investidores.

[7] Definição estabelecida por Nestor Sampaio Teteado Filho: “Os direitos de 4ª geração seriam também direitos e garantias de proteção contra a globalização desenfreada, direito a democracia e à informática.” (FILHO, Nestor Sampaio Teteado. Manual de Direitos Humanos. São Paulo: Método, 2006, p. 28.

[8] As propostas para se fortalecer o Judiciário são o Relatório técnico 319 S do Banco Mundial e o Plano estratégico do Poder Judiciário Nacional. O presente trabalho objetiva indagar e estabelecer uma crítica sobre estas supostas formas de fortalecimento.

[9] VASCONCELOS. Antônio Gomes. Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista. Fundamentos. Princípios, criação, estrutura e funcionamento. São Paulo: LTR, 1999.

[10] O Judiciário é meio para se fazer cumprir as premissas e os fundamentos de um Estado Democrático de Direito. Vide artigos 1º e 3º da Constituição.

[11] Para Bobbio (1987) a democracia formal se caracteriza pelas regras do jogo ou procedimentos democráticos tidos como universais, a saber, as eleições, o voto e os sistemas partidários. Já a democracia substancial seria uma democracia onde houvesse a participação direta da população nas decisões tomadas na política pública.

[12] Boaventura de Sousa Santos (1986) em seu artigo Introdução à Sociologia da Administração da Justiça acrescenta que a crise do Judiciário, como qualquer crise, é multifacetada, posto ser um engano pensar em reformas do Judiciário à simples fatores econômicos.

[13] Boaventura em seu livro Crítica da Razão Indolente, traz o termo para dizer o momento contemporâneo.

[14] Expressão trazida por Ana Paula Lucena Silva Candeas. (CANDEAS, 2007, p. 42)


Abstract:

This article aims to conduct a study of the functions of the judiciary in economic perspective, taking as its starting point the Technical Report 319 S Bank in opposition to the sociological view of Boaventura de Sousa Santos. Will Seek establish the contours of a judiciary in view of the democratic state in contrast to the guidelines of the Strategic Plan of the National Judiciary. The methodology will be based on literature review with analysis of reports and recommendations by financial institutions and the National Council of Justice. As result, we intend to demonstrate the existence of antagonisms between the economic outlook and perspective inspired by the principles and values ??of the democratic rule of law enshrined in the Constitution of 1988 concerning the definition of the social function of the Brazilian Judiciary and the construction of an identity consistent with that paradigm state. We argue that the legitimacy of the national judiciary is subject to their ability to contribute, along with the other powers, for the realization of the constitutional project of Brazilian society. Accordingly, the realization of justice, while strategic mission assumed by the judiciary, implies the assumption of a function transforming social reality concerning the assurance of the effectiveness of fundamental rights and social  along with a conception of law and legal practice focused on the future and not the past, therefore, an understanding of the judicial role beyond the quantitative perspective inherent in the plans, goals and statistics.

Keywords:  Judiciary - World Bank - Democracy - State Democratic of Law – Neoliberalism.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SENA, Gabriela de Campos; SOARES, Mirelle Fernandes et al. Função do Poder Judiciário na perspectiva do neoliberalismo econômico e na perspectiva do Estado democrático de direito: a busca de uma identidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3878, 12 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26684. Acesso em: 25 abr. 2024.