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A crítica de Ronald Dworkin ao positivismo de Hart e suas possíveis influências teóricas no contexto do pensamento jurídico brasileiro

A crítica de Ronald Dworkin ao positivismo de Hart e suas possíveis influências teóricas no contexto do pensamento jurídico brasileiro

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Analisa-se a crítica formulada por Ronald Dworkin ao positivismo, tomando por parâmetro a teoria do direito de Hebert L. Hart em O Conceito de Direito.

1     CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As correntes do positivismo jurídico tiveram e ainda possuem grande influência no pensamento jurídico contemporâneo. Entretanto, desde muitos anos já existem críticas ao seu excesso formalismo, em especial porque historicamente o fracasso de sistemas garantistas extremamente formais provaram que a consagração positiva de direitos fundamentais não é suficiente para evitar sua violação (Cf. Bobbio, 2004). Apesar disso, podemos perceber que ainda vigora em grande parte na doutrina e jurisprudência, grande influência do positivismo. Entretanto, existem movimentos teóricos prontos para atualizar e formular críticas a esta postura formal, sugerindo teorias que buscam resolver problemas práticos e teóricos dentro desta concepção.  

Assim, uma conhecida disputa intelectual se desenvolveu entre o jusfilósofo inglês Herbert L. Hart e o estadunidense Ronald Dworkin, em que este último elabora uma crítica feroz contra o positivismo, tomando como parâmetro a teoria daquele apresentada em O Conceito de Direito (2001). Segundo Magalhães (2009, p. 72), este embate foi um dos mais acirrados no mundo jurídico no século XX, havendo, pois, muitos escritos descrevendo e analisando a discussão travada entre eles.

Não obstante, entendemos que este debate e sua análise ainda pode fornecer importantes reflexões a respeito do atual quadro teórico do direito, especificamente no Brasil, já que algumas questões ainda não estão completamente consolidadas e, outras, muito pouco debatidas. Em primeiro, a própria diferenciação entre regras e princípios jurídicos, partindo da colocação de Dworkin de que os positivistas concebem um modelo de sistema de regras e para regras, em que os princípios não podem ser validados como pertencentes a este sistema. Em segundo, a teoria das lacunas do ordenamento jurídico, e em especial a consideração da existência de lacunas ideológicas, e se é, de fato, possível haver lacunas no sistema jurídico, de acordo com uma concepção positiva do direito; em terceiro e último, o movimento do ativismo judicial, que em muitos aspectos revela um estreitamento com as posições concertadas pelo filósofo estadunidense, em especial as colocações sobre a importâncias de outros “padrões”, não necessariamente jurídicos, para a decisão judicial de determinados casos.

Cabe observar que o objetivo deste artigo não é uma análise detalhada de tais movimentos, bem como suas críticas, defeitos e avanços, mas sim expor suas principais características, descrevendo seus principais aspectos de forma didática, para expor a ligação destas e a crítica ao positivismo, considerando o pensamento de Ronald Dworkin a partir de sua crítica à teoria de Hebert L. Hart.

O método utilizado é o lógico dedutivo, buscando contextualizar e relacionar as ideias principais de cada tópico para demonstrar a hipótese avençada no objetivo proposto; isto é, ao final do artigo, almeja-se ter demonstrado as relações dos movimentos críticos teóricos do positivismo jurídico em relação à doutrina de Ronald Dworkin, ainda que de forma indireta.


2     O JUSPOSITIVISMO DE H. L. HART

H. L. Hart foi um importante jusfilósofo inglês, cuja teoria dominou e influenciou os sistemas de direito dos países anglo-saxão. É um precursor do estudo analítico do positivismo, e sua obra mais conhecida é O Conceito de Direito, onde elabora uma teoria do direito a partir da crítica do positivismo de John Austin. A análise do pensamento de Hart fornece importantes diretrizes para uma teoria crítica do direito positivo, já que ele dispensa alguns elementos formalistas desta corrente, sem, entretanto, recusar suas principais bases.

Assim, Hart, na obra citada acima, inicia sua análise do conceito de direito a partir de três questões: a primeira, como é possível diferenciar o direito e a obrigação jurídica de ordens baseadas em ameaças, como no caso de um assaltante; a segunda, como diferenciar o direito de outros tipos de obrigações, derivadas de outros tipos de regras, como as regras morais; e a terceira, partindo da premissa de que o sistema jurídico consiste em regras, o que são regras, e o que significa dizer que elas existem, e em que medida o direito é uma questão de regras (HART, 2001, p. 11-13). É a partir destes questionamentos que Hart afirma ser possível responder à pergunta “o que é direito?”.

Para Hart, podemos constatar a existência de dois tipos de regras: aquelas que impõem deveres ou obrigações, chamadas regras primárias; e aquelas que outorgam poderes, denominadas secundárias. As regras do tipo primário são aquelas que exigem que se faça ou deixe de fazer determinadas ações, enquanto as do secundo tipo são as que asseguram a criação de novas regras primárias, extinção ou modificação de regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. Dessa maneira, o Direito seria como que uma união desses dois tipos de regras, primárias e secundárias (HART, 2001, p. 91-92).

Se para o autor o conceito de regra depende da coexistência de uma conduta regular, e somente através delas que se pode afirmar que alguém possui uma obrigação, isto significa que é somente a partir da subsunção da conduta atualizada pelo sujeito à previsão daquela regra constante que este agente pode ser obrigado. O que se verifica, portanto, é que somente se pode exigir que alguém aja ou deixe de agir mediante à aplicação de uma regra que o impele a fazer ou não fazer. Entretanto, Hart observa que o contrário não é verdadeiro, ou seja, que existem regras que não impõem nenhum tipo de obrigação. Entretanto, isso não significa que estar submetido a uma regra é o mesmo que estar submetido a uma sanção ou mal proveniente de seu descumprimento. A regra estabelece um padrão de comportamento que vai além da ameaça que pode garantir sua aplicação (cf. DWORKIN, 2002, p. 32).

Por isso a ideia de que o direito é formado por regras primárias e secundárias facilita a compreensão do funcionamento das regras. Um sistema formado apenas por regras primárias implicaria numa estrutura social muito simples, que, invariavelmente, teria problemas em diversos aspectos de seu funcionamento. A introdução de regras secundárias relativas às primárias corrigiria uma série de defeitos, entre os quais a incerteza – já que não haveria regras para esclarecer o âmbito de aplicação das regras primárias – papel exercido pelas regras secundárias. A introdução de uma “regra de reconhecimento” poderia resolver este problema, indicando se determinada regra de um grupo social deve ser apoiada pela pressão social que ele exerce – ou seja, que deve ser reconhecida como uma regra jurídica. A regra de reconhecimento confere uma marca dotada de autoridade, introduzindo a ideia de sistema jurídico: as regras não são agora apenas um conjunto discreto e desconexo, mas estão, de um modo simples, unificadas - germe da ideia de validade jurídica (cf. HART, op. cit., p. 105).

Além disso, um sistema jurídico formado unicamente por regras primárias seria um sistema estático. Não haveria um meio de adaptação das regras às circunstancias em mutação, pela eliminação das regras antigas ou pela introdução de regras novas, a evolução histórica cultural ou as mudanças sociais revolucionárias, seja por atos políticos ou mudanças decorrentes do avanço da técnica. Isso  pressupõe a existência de regras de um tipo diferente das regras primárias de obrigação pelas quais a sociedade exclusivamente vive. A introdução de “regras de alteração” no sistema (jurídico) corrigiria este defeito, já que possibilitaria sua transformação, com a introdução de novas regras e modificação e exclusão das regras já “incorporadas”. As regras de alteração possuem uma conexão estreita com as regras de reconhecimento, pois “quando as primeiras existirem, as últimas terão necessariamente de incorporar uma referência à legislação como um aspecto identificador das regras, embora não necessitem de referir todos os detalhes processuais envolvidos na legislação” (HART, op. cit., p. 105).

Por fim, o terceiro defeito de um tal sistema jurídico, seria a ineficácia da pressão social, ou seja, a falta de tais determinações de forma definitiva e dotadas de autoridade. Além disso, os castigos pela violação das regras e outras formas de pressão social implicando esforço físico ou o uso da força não são aplicados por uma instância especial, mas são deixados aos indivíduos ofendidos ou ao grupo em geral, significando mais uma forma de vingança que Direito. As regras secundárias que dão poderes aos indivíduos para solucionar estes conflitos podem solucionar o problema, sempre que uma regra primária for violada. São as “regras de julgamento”, que, além disso, definem importantes conceitos jurídicos, tais como juiz, tribunal, jurisdição (HART, op. cit., p. 107).

Assim, Hart acredita descrever o funcionamento de um sistema jurídico, pela introdução instrumentos que dão certeza, dinamicidade e legitimidade na aplicação das próprias regras do sistema. As regras primárias devem ser complementadas pelas regras secundárias, instituindo a ideia de validade das regras; além disso, permite a continuidade do sistema, acompanhando as mudanças sociais; e, por fim, atribui às regras primárias maior eficácia, por meio da introdução de regras de julgamento.

Se voltarmos atrás e considerarmos a estrutura que resultou da combinação das regras primárias de obrigação com as regras secundárias de reconhecimento, alteração e julgamento, é evidente que temos aqui não só o coração de um sistema jurídico, mas um instrumento poderosíssimo para a análise de muito daquilo que tem intrigado, quer o jurista, quer o teórico político. (Hart, op. cit., p. 107).

Hart parte da distinção entre uma afirmação interna e uma afirmação externa de que uma regra pertence a este sistema, para explicar o quesito da validade das normas jurídicas; isto é, Hart defende a ideia de que a aplicação de reconhecimento depende de um observador externo, um sujeito que não está histórica e culturalmente inserido em determinado sistema jurídico. Assim, segundo ele, afirmação interna é aquela manifesta do ponto de vista interno, e usada naturalmente por quem aplica a regra de reconhecimento, aceitando-a, mas sem declarar este fato, reconhecendo a validade de qualquer regra concreta do sistema. A afirmação externa, por sua vez, se verifica “na linguagem natural de um observador externo ao sistema, que, sem aceitar ele próprio a regra de reconhecimento deste sistema, enuncia o facto de que outros a aceitam” (HART, op. cit., p. 114).

O autor destaca as ideias de validade e eficácia de uma regra do sistema. Assevera, pois, que não há qualquer relação entre uma e outra qualidade: uma regra pode ser válida, sem, no entanto, ser eficaz – salvo na hipótese em que, no próprio sistema, há uma regra que disponha que as regras que não possuem eficácia deixam de ter validade neste sistema.

A regra de reconhecimento de um sistema é dotada de um caráter último e critério supremo. A ideia de critério supremo significa que, se duas normas identificadas como pertencentes ao sistema estiverem conflito entre si, a regra que estiver assim identificada com base no critério da regra de reconhecimento prevalecerá em relação à outra. Por sua vez, o seu caráter último significa que não há regra que faculte critérios para apreciação de sua própria validade jurídica (HART, op. cit., p. 118).

Hart admite também que estas características da regra de reconhecimento podem levar a alguns problemas. Lembra, assim, que para alguns autores, “enquanto a validade jurídica das outras regras do sistema pode ser demonstrada por referência àquela, a sua própria validade não pode ser demons­trada, antes é ‘assumida’ ou ‘postulada’, ou constitui uma ‘hipó­tese’”. É o caso de Kelsen. Kelsen explica que o sistema jurídico é estruturado a partir de uma hierarquia entre as normas, de forma escalonada. Na base desta estrutura, estariam as normas de hierarquia inferior, que, necessariamente, devem estar de acordo com as normas de hierarquia superior, ou de forma alguma seriam admitidas dentro daquele sistema. E no topo, estaria o que o autor alemão denomina “norma hipotética fundamental”. Esta norma seria, em última análise, o fundamento de todo o sistema jurídico.

Para Hart, a regra de reconhecimento de um sistema não pode ser simplesmente “pressuposta”, tal como Kelsen afirma. Sugere, diversamente, que uma regra de reconhecimento não pode ser afirmada internamente, sendo aceita e reconhecida, tal como acontece com as outras regras. A regra de reconhecimento só pode ser afirmada do ponto de vista externo, reconhecendo-se que as pessoas daquela comunidade aceitam e fazem uso daquela regra. Além disso, anota que a validade de uma regra só pode ser considerada quando a questão se coloca dentro de um sistema de regras, em que o reconhecimento da validade de uma regra pode ser verificado pela satisfação dos critérios dados pela regra de reconhecimento. Diversamente, a própria regra de reconhecimento não pode ser válida ou inválida, “mas é simplesmente aceita como apropriada para tal utilização” (HART, op. cit., p. 120).

Em relação a esta suposição de validade da regra de reconhecimento, Hart argumenta, em resumo, o seguinte:

(...) enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido, “existir”, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de facto. (HART, op. cit., p. 121).

Logo, a regra de reconhecimento possui, segundo Hart, um caráter distinto das demais regras, inclusive no tocante à sua existência. Enquanto sua validade não pode ser demonstrada, mas somente suposta, sua existência é verificada pela prática dos membros, particulares e funcionários, de um dado sistema. E, dessa forma, por não ter como se verificar a sua validade, já que ela é mesmo o critério supremo e último para tal, a afirmação de que ela existe é uma questão de fato, somente podendo ser feita de um ponto de vista externo.

Outro importante ponto a se observar em sua teoria diz respeito ao que ele denomina de “textura aberta” das normas jurídicas. O Direito, segundo Hart, é um instrumento de controle social, e por isso deve se basear em regras gerais, e não diretivas particulares. O sistema jurídico deve ser formado por regras que possam ser aplicadas a uma variedade de situações que não foram previamente consideradas, dado um certo grau de imprevisibilidade das inúmeras condutas possíveis, bem como situações que emergem com o surgimento de novas tecnologias.

Hart pontua que as duas principais formas de comunicação do direito são os precedentes e a legislação. No primeiro caso, a comunicação é feita através do exemplo, ou seja, o uso jurídico do precedente é implementado pelo exemplo. O problema de tal prática é que este tipo de comunicação pode deixar em aberto uma série de possibilidades, ou seja, padecem de indeterminação. No segundo caso, por sua vez, o uso de formas gerais de linguagem gera a certeza da subsunção de determinado fato a uma regra formada naqueles termos gerais, que, em alguns casos, porém, “pode surgir incertezas quanto à forma de comportamento exigido por elas” (HART, op. cit, p. 139).

Isso significa que há uma zona de imprecisão, ou incerteza, ao redor de determinadas regras, termos gerais. Por exemplo, uma regra de proibição segundo a qual nenhum veículo pode ser levado a um parque.  Apesar de ser um enunciado suficientemente claro para que todos entendam que não é permitido levar um automóvel ao parque, isso não fica suficientemente claro no caso de, por exemplo, um automóvel elétrico, de brinquedo. São “situações de facto, continuamente lançadas pela natu­reza ou pela invenção humana, que possuem apenas alguns dos aspectos dos casos simples, mas a que lhes faltam outros” (HART, op. cit., 1. 139).

Para que haja utilidade, portanto, na aplicação destes termos gerais, é preciso que existam aqueles casos familiares e incontestáveis. Tal como no uso dos precedentes, é preciso considerar se o caso em questão se assemelha suficientemente ao caso simples em aspectos relevantes. Nesse contexto, é de se falar em um poder discricionário deixado pela linguagem. “No caso das regras jurídicas, os critérios de relevância e de proximidade da semelhança dependem de factores muito complexos que atravessam o sistema jurídico e das finalidades ou intenção que possam ser atribuídos à regra” (HART, op. cit., p. 140).

Neste sentido, segundo o autor, todos os sistemas jurídicos devem admitir um compromisso de que certas regras podem ser aplicadas pelos indivíduos privados a eles próprios, e a necessidade de deixar em aberto questões que só podem ser adequadamente apreciadas e resolvidas quando surgem num caso concreto (HART, op. cit., p. 143). Assim, para controlar os extremos deste dilema – regras com termos muito gerais e abertos, ou, ao contrário, regras que somente exemplificam uma situação, como no caso dos precedentes –, os sistemas jurídicos providenciam uma variedade de técnicas, tais como a delegação do poder regulamentar aos órgãos executivos, ou a elaboração doutrinária de juízos comuns sobre razoabilidade.

A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais deter­minam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflituantes que variam em peso, de caso para caso. Seja como for, a vida do direito traduz-se em larga medida na orientação, quer das autoridades, quer dos indivíduos privados, através de regras deter­minadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso. (HART, op. cit., p. 148)

Por último, Hart tece severos argumentos contra a teoria do ceticismo, segundo a qual não existem regras no sistema jurídico, senão aquelas decorrentes das decisões dos juízes. Ora, em última análise, isso implica dizer que os juízes não estão vinculados a nenhum tipo de padrão, e, assim, eles exercem um poder discricionário nos casos que lhe são submetidos. Esta problemática será um dos principais pontos da crítica formulada por Ronald Dworkin, como veremos.

Dessa forma, Hart rejeita a posição cética, afirmando que em qualquer sistema jurídico os juízes estão sujeitos a determinados padrões estabelecidos, e que não é possível negar a existência dos mesmos. Afinal, na medida em que é possível afirmar que geralmente os juízes obedecem um determinado padrão, é igualmente permitido falar que eles reconhecem a sua existência e os aceitam:

(...) os juízes, mesmo os do supremo tribunal, são parte de um sistema cujas regras são suficientemente determinadas na parte central para fornecer padrões de decisão judicial correcta. Estes padrões são considerados pelos tribunais como algo que não pode ser desres­peitado livremente por eles no exercício da autoridade para proferir essas decisões, que não podem ser contestadas dentro do sistema. (HART, op. cit., p. 159)

Portanto, conclui o autor, quando há clareza no que é exigido pelas regras, é possível predizer as decisões de um tribunal, pois se sabe que os tribunais consideram as regras jurídicas “como padrões a seguir na decisão, suficientemente determinados, apesar da sua textura aberta, para limitar o seu carácter discricionário, embora sem o excluir” (HART, op. cit., p. 161).


3     A CRÍTICA DE RONALD DWORKIN

Ronald Dworkin, em seu texto “Levando os Direitos à Sério”, dedica dois dos capítulos à análise dos “modelos de regras”. O filósofo pretende, talvez não elaborar uma teoria do direito abrangente como a de Hart, mas sim exercer uma crítica à doutrina positivista. Segundo o autor, o positivismo é uma teoria amplamente aceita, ainda que seja orientada de diversas formas, formuladas através de críticas de modelos anteriores ou alternativos (DWORKIN, 2002, p. 27). Interessante, neste sentido, a afirmação capitular do autor “[q]uero lançar um ataque geral contra o positivismo e usa­rei a versão de H. L. A. Hart como alvo, quando um alvo espe­cífico se fizer necessário” (DWORKIN, op. cit., p.35).

O ponto central da crítica de Dworkin é o fato de que há ocasiões em que os juristas discutem a respeito de direitos e obrigações jurídicas e recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas como “princípios, políticas e outros tipos de padrões” (op. cit., p. 36). Estas situações ocorrem principalmente nos chamados “casos difíceis” (hard cases), em que os problemas conceituais do direito e da obrigação aparecem de forma mais severa. Segundo o autor, o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e sua principal tese repousa num teste fundamental para o direito, e, por isso, ignora outros tipos de padrões que não são regras. O destaque será retomado mais adiante.

Dworkin distingue estes padrões entre políticas e princípios, designando os primeiros como “aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcan­çado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade”; os segundos, os princípios, que se referem não a um objetivo econômico, político ou social, mas a uma “exigência de justiça ou equidade, ou ainda a alguma outra dimensão da moralidade” (ibidem). Entretanto, a principal distinção aqui é entre princípios (este termo tomado em seu sentido genérico, abrangendo, pois, tanto os princípios quanto as políticas, e todos os tipos de padrões que não são regras) e regras (idem, p. 37).

Assim, a diferença entre princípios e regras jurídicas, para Dworkin, é de natureza lógica. Isso significa que apesar de apontarem ambos os conjuntos para decisões particulares sobre a obrigação jurídica em circunstâncias específicas, distinguem-se quanto à natureza da orientação que propõem.  “As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Ou é válida ou inválida. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (idem, p. 39).

Os princípios, entretanto, se apresentam de maneira diversa. É que aqueles padrões não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas – tal como sucede nas regras. O princípio de que ninguém pode se beneficiar de seus erros nem sempre é levado a cabo, tal como se ele fosse uma regra, pois há exceções em que, de fato, são reconhecidos efeitos jurídicos da ação contrária ao próprio direito. Por exemplo, a usucapião ou prescrição aquisitiva, que a posse sobre propriedade de outrem, desde que atendidos certos requisitos, acarreta na aquisição do direito de propriedade.

Os princípios, segundo Dworkin, podem conviver com outros princípios em sentido contrário, que, em algumas situações, poderá não prevalecer, mas não quer dizer que ele não faz parte do sistema jurídico. Outrossim, quando estiverem presentes outras condições em que o princípio em sentido contrário possui menor peso, aquele primeiro prevalecerá: “ao afir­marmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, [isto significa] é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pe­las autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que incli­na numa ou noutra direção” (idem, p. 42). Dessa forma, os princípios possuem uma dimensão do peso ou importância. No caso em que existem princípios em sentidos opostos, a solução deve se pautar na força relativa de cada um destes padrões. Em contrapartida, diz-se das regras que são funcionalmente importantes ou desimportantes. Dworkin afirma que uma regra não pode ser considerada mais importante que outra, dentro do mesmo sistema, e por isso quando estão em conflito, uma delas será suplantada (idem, p. 43).

Ainda neste tópico, o autor traz a problemática de que, em algumas situações, a identificação de uma assertiva como uma regra ou princípio pode ser complexa. Assim, a depender da forma como é posta, pode-se estar diante de uma regra ou diante de um princípio. A regra pode se assemelhar ainda mais a um princípio principalmente quando acompanhada de termos como “razoável”, “injusto”, “negligente”, etc., ou seja, termos de amplitude conceitual indefinida. A importância de identificar, no caso concreto, se estamos diante de uma regra ou um princípio é essencial para a solução de um conflito, e fundamental para se decidir em um ou outro sentido.

No entanto, Dworkin identifica duas orientações diferentes no que diz respeito aos princípios. A primeira é identificada como aquela segundo a qual os princípios devem ser encarados da mesma maneira que as regras, e por isso tem força de lei; a segunda, a que entende que os princípios não são obrigatórios, da mesma forma que as regras são, e o juiz tem liberdade de aplicar ou não determinado princípio. Neste caso, o juiz “vai além do ‘direito’”, além das regras que ele está obrigado a aplicar (idem, p. 47). E para o autor, a doutrina positivista utiliza o segundo conceito de princípios, de modo que eles não são considerados obrigatórios para o juiz, ao contrário das regras. Quando o juiz se utiliza de um princípio na sua argumentação para fundamentar uma decisão, estaria ele indo além do direito. “Os positivistas sustentam que quando um caso não é coberto por uma regra clara, o juiz deve exercer seu poder discricionário para decidi-lo mediante a criação de um novo item de legislação” (idem, p. 49-50).

Quando Dworkin passa a analisar o problema do poder discricionário dos juízes, que alega ser defendido pelos positivistas – vale lembrar que Dworkin toma a teoria do direito de Hart como parâmetro –, aduzindo os seguintes postulados: em primeiro, que o conceito de poder discricionário envolve um sentido forte, e dois outros sentidos fracos. No seu sentido forte, poder discricionário seria a ideia de que, em alguns assuntos, o juiz não está limitado a padrões previamente estabelecidos. No primeiro sentido fraco, significa que os padrões que uma autoridade pública deve aplicar exigem o uso da capacidade de julgar, ou seja, o contexto não é por si só esclarecedor. No último sentido, também fraco, que algum funcionário público tem a autoridade para tomar uma decisão em última instância, e esta não pode ser revista (idem, p. 51-52).

Para os positivistas, o juiz não possui poder discricionário quando uma regra clara e estabelecida está disponível. Entretanto, para Hart, naqueles casos de regras que não são claras, de “textura aberta”, o juiz deve usar o poder discricionário para julgar (sentido forte). Dworkin sugere que Hart defende a ideia de que os juízes não estão de modo algum vinculados por padrões que não sejam regras, quando ele de um poder discricionário deixado pela linguagem, nas situações em que as regras não são claras em decorrência de sua textura aberta. E, para o autor inglês, isso se justifica pela acepção de que as regras jurídicas devem passar por um teste fundamental de validade para assim serem consideradas, e, segundo Dworkin, como os princípios não são pensados na teoria positivista como padrões jurídicos, eles não podem ser aceitos pela regra de reconhecimento.

Portanto, Dworkin sugere que um modelo de regras   - ao contrário do modelo positivista tal como pensado por Hart – deve levar em conta o papel dos princípios nos argumentos sobre a obrigação jurídica – sobre o que é ou não direito. E na tarefa de dizer o que é direito, para Dworkin, em relação aos juízes, quando se está em questão a mudança de uma regra, só pode ser realizada por dois caminhos: o primeiro, que o juiz considere que a mudança de uma regra favorece algum princípio – com importância e peso suficientes; o segundo, o juiz leve em considerações padrões importantes que se opõe a tal mudança.


4 A REGRA DA PROPORCIONALIDADE E A PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS

A questão levantada por Ronald Dworkin e H. L. Hart, acerca da “textura aberta” da regra jurídica, e, também, do poder discricionário do juiz, leva a discussão a outro ponto: a colisão de direitos fundamentais e princípios. Os direitos fundamentais, na maioria das vezes, apresentam a estrutura normativa de princípios. Isso significa que a sua aplicação deve levar em conta esta natureza, chegando a resultados concretos variáveis em decorrência disso. Assim, apareceram nas doutrinas jurídicas, mesmo no âmbito de concepções positivistas, teorias que buscavam explicar a existência e a força normativa dos princípios no interior do ordenamento jurídico.

Dessa forma, Silva (2002) explica que Robert Alexy divide as normas jurídicas em duas categorias, as regras e os princípios. Deve-se entender, portanto, que para Alexy, norma é um gênero, do qual são espécies as regras e os princípios. Assim, a diferença entre tais categorias não é de grau de generalidade ou especialidade, mas de estrutura e forma de aplicação. Assim, regras expressam “deveres definitivos e são aplicadas por meio da subsunção”. Princípios expressam “deveres prima facie, cujo conteúdo definitivo somente é fixado após sopesamento com princípios colidentes”. Os princípios devem ser encarados como “mandamentos de otimização”, pois, considerando as possibilidades fáticas e jurídicas, devem ser aplicados na maior medida possível (SILVA, 2002, p. 25).

É com base nisso, podemos afirmar que a aplicação de princípios deve obedecer a esta natureza normativa diversa das regras. Assim, em nome da segurança jurídica, bem como como forma de assegurar determinados limites à discricionariedade judiciária, tem-se aplicado a regra da proporcionalidade. Importante frisar que não podemos falar de um “princípio da proporcionalidade”, como é comum ser tratado na prática jurídica e forense no Brasil, mas de uma regra. E ainda, segundo Gavião Filho (2011), a não aplicação destas regras pode ensejar a ilegalidade da decisão judicial que pondera princípios de maneira arbitrária

A idoneidade, a necessidade e a proporcionalidade em sentido restrito não são ponderadas diante de algo diferente, mas satisfeitas ou não satisfeitas no caso concreto. O problema, portanto, não é de ponderação como ocorre com os princípios, e sim, de satisfação ou não satisfação como ocorre com as regras. A consequência da não satisfação de uma delas é a ilegalidade. (GAVIÃO FILHO, 2011, p. 61)

É interessante notar que a teoria de Alexy sobre a regra da proporcionalidade se baseia em um método, dividido em três fases, três princípios parciais, através das quais a solução para uma colisão entre princípios deve passar, com o objetivo de sua aplicação “em sua maior medida”.

Assim, a regra da proporcionalidade é um expediente utilizado no caso de colisão de princípios, e não de regras. Este tipo de norma não comporta um sopesamento, ao contrário dos princípios. A regra é um tipo de norma que se aplica à maneira do “tudo-ou-nada”. E, caso uma determinada regra esteja em contrariedade a outra regra pertencente a um mesmo ordenamento num mesmo período, uma das duas deverá ser eliminada, por meio de critérios normativos previstos no próp´rio sistema, isto é, os critérios da temporalidade, da especialidade e da hierarquia entre as normas. A regra da proporcionalidade é uma regra interpretativa, que se divide em três etapas: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

A adequação ou idoneidade indica a relação entre meio e fim que deve ser comprovado o grau de não cumprimento ou prejuízo de um princípio. Na segunda fase, deve-se verificar a necessidade, ou seja, a exigibilidade, baseado no princípio da menor ingerência possível, o que quer dizer que diante de medidas igualmente eficazes, deve-se buscar aquela menos gravosa, comprovando-se, portanto, a importância do princípio em sentido contrário. Por fim, a terceira fase, a proporcionalidade em sentido estrito, ou a ponderação, em que se faz o sopesamento entre a intensidade da restrição de um princípio e a importância da realização do outro – elementos tidos como resultado das fases anteriores.

É importante observar, ainda, que a ponderação é rotulada, frequentemente, de arbitrária, irracional, e que não pode ser controlada. Segundo Habermas, “não existem critérios racionais para ponderar, de tal sorte que a ponderação é irrefletida ou arbitrária, seguindo, apenas, ordens de precedência e padrões de costume” (apud GAVIÃO FILHO, p. 63). Entretanto, o uso de um método tal como descrito pela teoria de Robert Alexy, e, ainda, baseado em um discurso argumentativo exaustivo, sendo possívelpossível a aplicaçao de uma proporcionalidade com critérios de racionalidade.

Dessa maneira, é importante notar que a crítica de Dworkin contra “os positivistas”, tomando como parâmetro o pensamento de Hart em O Conceito de Direito, voltada contra a exclusão dos princípios do sistema jurídico, foi, de certa maneira, amparada pela distinção entre regras e princípios provenientes do pensamento de Alexy. Aqui, ambas as categorias, regras e princípios, fazem parte do gênero norma, e podem fazer parte do ordenamento jurídico. Outrossim, os princípios jurídicos são concebidos de forma muito próxima à proposta de Dworkin, além de propor a necessidade de uma regra de proporcionalidade para a sua aplicação nos limites legais de cada ordenamento.


5.A TEORIA DAS LACUNAS E ANTINOMIAS JURÍDICAS

As teorias positivistas, segundo Dworkin, baseiam-se na ideia de incompletude do ordenamento jurídico. Isso significa que não haveriam direitos além do ordenamento jurídico, isto é, fora dele e provenientes de fontes que não aquelas reconhecidas como capacitadas a produzir direito. isto é, o ordenamento jurídico somente aceita as regras e princípios que sejam produzidas por e de acordo com as próprias regras que o compõem. Para isso, é necessário a existências das regras secundárias de que fala Hart, a regra de reconhecimento, as regras de alteração e de julgamento. Diversamente, o filósofo estadunidense defende que o direito deve ser considerado como uma união de princípios e regras. Estes princípios estabelecem uma direção a ser tomada para promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social desejável, como forma de atingir uma determinada exigência de justiça social ou questão de moralidade política (Cf. Magalhães, 2009, p. 76).

Entretanto, podemos observar que o dogma da completude odo ordenamento jurídico apresenta algumas complexidades que não foram consideradas nesta acepção. É o caso do reconhecimento de antinomias e lacunas jurídicas no ordenamento jurídico. 

Assim, segundo Bobbio, antinomia jurídica é “a situação de normas incompatíveis entre si”, quando estas mesmas coexistem em um mesmo ordenamento, atuando em um mesmo âmbito de validade temporal, espacial, pessoal e material. Segundo o jurista italiano, apoiado em Kelsen, o ordenamento jurídico é um sistema dinâmico que exige coerência, e, portanto, não tolera antinomias. Na hipótese em que se depara com uma antinomia jurídica, o intérprete deve se utilizar de mecanismos previstos dentro do próprio ordenamento que visam à eliminação destas situações, por meio dos critérios de hierarquia, especialidade, ou temporalidade.

Bobbio revela, ainda, a existência do que denomina antinomias impróprias, que são aquelas em que, segundo o autor, não há propriamente uma situação antinômica. São as antinomias de princípio, de avaliação, e teleológicas. As antinomias de princípio são aquelas situações em que em um mesmo ordenamento há prevalência de princípios contrapostos que, dada sua natureza, não se anulam, mas frequentemente inspiram a criação de regras antinômicas.  Da mesma forma, as antinomias de avaliação não revelam a coexistência de normas incompatíveis, mas situações em que se vislumbra uma injustiça – como no caso de se punir um delito menor com uma pena mais severa que outro delito de maior gravidade. Neste caso a necessidade de correção decorre não por uma questão de coerência do ordenamento, mas por uma questão de justiça. Por fim, em relação à antinomia teleológica, existe “oposição entre a norma que prescreve o meio para alcançar o fim e a que prescreve o fim” (Bobbio, op. cit., p. 91). Deste modo, a aplicação daquela não atinge as condições para consegue alcançar o fim desta, e vice-versa.

O problema da completude do ordenamento é uma condição necessária para os ordenamentos em que o juiz é obrigado a julgar, e que deve julgar com base em uma norma pertencente ao sistema. A completude é a “falta de lacunas”, ou, mais tecnicamente, “o ordenamento jurídico é completo quando jamais se verifica o caso de que a ele não se podem demonstrar pertencentes nem uma certa norma nem a norma contraditória” (Bobbio, op. cit., p. 116). Assim, a sua solução deve partir da teoria da norma geral exclusiva, aliando a ela a ideia de que, em um ordenamento, sempre haverá um outro tipo de norma, uma norma geral inclusiva.

Dessa forma, o ordenamento seria formado por normas particulares inclusivas, a que corresponderiam uma norma geral exclusiva, e, ainda, as normas gerais inclusivas, como a que determina o uso da analogia. Porém, o problema se agrava no caso de haver mais de uma solução possível, com base nestas teorias.  Por isso, não seria possível sustentar o dogma da completude, sendo mais viável afirmar que o ordenamento jurídico será incompleto se nele não existir um critério de solução das lacunas. Neste sentido, fala-se da existência de lacunas ideológicas. Estas são, na verdade, não a falta de resposta para a solução de um caso, mas a falta de uma resposta satisfatória, pondo-se a questão, novamente, no problema da justiça na aplicação de normas jurídicas pela simples subsunção. A lacuna ideológica revela não a ausência de uma norma, mas a ausência de uma norma justa.

Dessa maneira, Bobbio descreve uma teoria segundo a qual seria possível solucionar problemas com que o juiz se depara na decisão dos casos concretos com base nas normas do ordenamento jurídico. Isso sugere que, para alcançar uma decisão mais justa, em algumas situações o juiz deve buscar princípios normativos que sirvam para este ensejo. Há hipóteses, portanto, em que o juiz deverá buscar instrumentos normativos no próprio sistema que o permite decidir não somente em conformidade com o ordenamento jurídico, mas de acordo com um princípio geral da justiça. Assim, as teorias das antinomias e das lacunas jurídicas servem de suporte teórico ao juiz para sua atuação no sentido exposto. Segundo aquelas teorias, existem tipos de antinomias e tipos de lacunas (impróprias) que são assim consideradas não por revelarem contradição entre normas ou falta de normas, mas por levarem a uma situação injusta, levando-se em conta justamente os valores constitucionais.

Assim, podemos perceber que a teoria das antinomias e das lacunas jurídicas revela que o ordenamento jurídico deve ser coerente e completo para que possa manter sua estrutura escalonada. Entretanto, há determinados conflitos entre normas do sistema que devem ser resolvidos a partir da aplicação da regra da proporcionalidade, conforme visto acima: isto é, há conflitos entre princípios dentro do ordenamento, mas não de regras, já que aqueles, mas não estas, comportam uma aplicação por “peso”, uma aplicação “na maior medida possível”.

Além disso, se o ordenamento deve ser completo, é preciso verificar que o juiz deverá sempre buscar, dentro do sistema jurídico, uma norma que seja adequada à solução do caso que lhe é submetido. Entretanto, a solução fria da lei em alguns casos pode levar a resultados manifestamente injusto, contrários a uma série de princípios do próprio ordenamento. Por isso, em alguns casos, como diria Dworkin, existem objetivos mais importantes a serem alcan­çados, aspectos econômicos, políticos ou sociais; ou ainda, princípios que se referem não a um objetivo econômico, político ou social, mas a uma “exigência de justiça ou equidade, ou ainda a alguma outra dimensão da moralidade” (Dworkin, op. cit., p. 36).


6.O ATIVISMO JUDICIAL

O ativismo judicial é um movimento, criado e desenvolvido na própria magistratura, que passa a reconhecer suas deficiências (DALLARI, 2002, apud Moulin, 2005, p.91), no sentido de uma postura mais ativa dos juízes, especialmente na defesa de direitos coletivos. Esta posição se respalda na concepção de que aos juízes é atribuída a função de guardiões da Constituição, e, por isso mesmo, devem observar o seu conteúdo, especialmente as normas que asseguram direitos fundamentais e, como tais, os coletivos e sociais. Assim, busca-se evitar a retrógrada concepção de que estas normas seriam apenas diretrizes ou programas a serem seguidos.

O ativismo judicial, portanto, busca a implementação dos ideais constitucionais, tendo em vista que ao poder judiciário foi atribuída a função de interpretar e decidir de forma final a Constituição, pelo controle de constitucionalidade. Para isso, deve-se reconhecer em sua atividade um caráter não somente dogmático, mas também político, se afastando do formalismo exacerbado do positivismo jurídico, apoiado em valores constitucionais. Nesta perspectiva, o juiz deve atribuir ao direito não somente a ideia de subsunção total do fato à norma, mas considerar, na decisão, os aspectos sociais, históricos e políticos de cada situação (MOULIN, 2005, passin).

Um dos principais aspectos do movimento do ativismo judicial é a sua relação de transparência com norma e com a sociedade. Assim, o juiz deve analisar as normas infraconstitucionais sob a ótica de novos paradigmas constitucionais, exercendo um papel de agente transformador da sociedade. Nesse contexto, a concepção de completude e unidade do ordenamento jurídico, tipicamente positivista, não corresponde mais às complexas situações que são levadas à análise judicial. Por isso, a atividade do juiz deve estar atenta não somente à adequação da lei às normas constitucionais, mas também às diversas possibilidades de interpretação das normas. Assim, afirma Moulin: [a] atividade julgadora não se reduz a mera subsunção de um fato a uma norma existente. Ao mesmo tempo, não mais se pode admitir, por parte dos juízes, uma postura de subserviência e de visão limitada perante a lei. (MOULIN, op. cit. p. 108).

Dessa maneira, podemos notar que o ativismo judicial encontra algumas intersecções com a doutrina de Ronald Dworkin, ainda que dificilmente esta ligação seja destacada diretamente. A defesa do filósofo pela aplicação cogente de determinados padrões e princípios objetivos, vai ao encontro de uma postura mais ativa dos juízes, que devem observar as mudanças históricas, políticas e sociais que ocorrem na sociedade. Isso não significa que os juízes devam (ainda que possam) abandonar uma posição positivista do direito, mas exercê-la de forma crítica.

Neste sentido, existem teorias próprias de uma concepção positivista do direito que buscam conciliar uma teoria do direito nestes moldes com determinados padrões e objetivos sociais, mormente aqueles previstos constitucionalmente. Ainda, em determinadas situações concretas com que se deparam os juízes, é imprescindível a eles buscar nestes princípios gerais ou padrões uma solução mais justa do que aquela que se chegaria através da aplicação da norma jurídica de forma estéril, pela pura e simples subsunção.


7 .CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de direito é uma questão de maior importância na filosofia do direito. apesar da grande variedade de posições, que evoluíram ou se diversificaram ao longo dos períodos históricos, existem teorias mais ou menos aceitas que buscam explica-lo. O positivismo é um dos casos bem-sucedidos, de forma que sua aceitação é ampla e muito divulgada até os dias de hoje. É certo, porém, que nas suas diversas formas o positivismo jurídico é criticado e são apontadas diversas falhas da teoria. Entretanto, tem por mérito a simplicidade e a coerência lógica da concepção do sistema.

Alguns movimentos de menor repercussão buscaram corrigir algumas injustiças que vem à tona através da concepção formal do direito derivada do positivismo. Além disso, a teoria das lacunas e das antinomias – ao lado da concepção do ordenamento como um sistema aberto e dinâmico – permite um maior grau de liberdade aos aplicadores do direito, desde que baseados em um discurso argumentativo e em princípios de justiça e equidade. Também, em um caso diverso, o problema da colisão entre princípios, tendo em mente a distinção elaborada por Robert Alexy, pode ser amenizado por meio da regra da proporcionalidade, e, da mesma forma, embasada em um discurso argumentativo racional.

Outras teorias do direito podem servir de apoio para, em determinadas situações, buscarem-se novos mecanismos e técnicas para a busca de soluções justas na apreciação dos problemas jurídicos e na definição do que é o direito.

As concepções de H. L. Hart e Ronald Dworkin formam um contraponto interessante em relação à concepções mais familiares como a de Kelsen ou Bobbio, especialmente pelo contexto em que foram concebidas, o sistema anglo-saxão. Não se pretende afirmar a preferência por nenhuma destas teorias, mas apenas ter em mente diferentes posturas.


BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Nova Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª edição, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GAVIÃO FILHO, Anízio Pires. O Direito Fundamental ao Ambiente e a ponderação, in AUGUSTIN, Sérgio (org.); STEINMETZ, Wilson (org.). Direito Constitucional do Ambiente: teoria e aplicação. Caxias do Sul: EDUSC, 2011.

HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2001. Trechos Selecionados.

MAGALHÃES, Breno Baía. A concepção do Direito em Hart e Dworkin: análise do atual estágio da discussão entre os autores e impactos na jurisprudência nacional. Em: Anais do XVIII Congresso Nacional do Conpedi, São Paulo, 04 a 07 de novembro de 2009, p.71-87.

MOULIN, Marlúcia Ferraz. Meio Ambiente e Ativismo Judicial na perspectiva dos Direitos Humanos. Dissertação de Mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais – Faculdades de Vitória. Vitória, 2005. Disponível em: <http://mestrado.fdv.br/>. Acessado em 12 de junho de 2012.

SILVA, Virgílio Afonso da. O Proporcional e o razoável, in Revista dos Tribunais n. 798 (2002): 23-50.


Autor

  • Gustavo Rosa Fontes

    Possui graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2010). Tem experiência nas áreas de Direito Constitucional, com ênfase em direitos da personalidade e direitos culturais; Direito Ambiental, com enfase em bioética e direitos humanos. Atualmente é mestrando em direito ambiental no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Amazonas (UEA), e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, Gustavo Rosa. A crítica de Ronald Dworkin ao positivismo de Hart e suas possíveis influências teóricas no contexto do pensamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4116, 8 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29740. Acesso em: 18 abr. 2024.