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Da necessidade de enquadramento dos pacientes de fibromialgia como pessoas com deficiência e da concessão de horário especial de trabalho

Da necessidade de enquadramento dos pacientes de fibromialgia como pessoas com deficiência e da concessão de horário especial de trabalho

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Demonstra-se o novo conceito de pessoas com deficiência, que abrange as pessoas com fibromialgia, e, consequentemente, a possibilidade de concessão a elas do horário especial da Lei nº 8.112/1990.

1 – Introdução. 2 – Da inconstitucionalidade do art. 4º, do Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989 e do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, tendo em vista o novo conceito de pessoa com deficiência. 3 – Da concessão de horário especial para os servidores públicos federais fibromiálgicos. 4 – Conclusão. 5 – Referências bibliográficas.


1 – Introdução.

A fibromialgia, incluída no Catálogo Internacional de Doenças apenas em 2004, sob o código CID 10 M79.7, é uma doença multifatorial, de causa ainda desconhecida, definida pelo renomado profissional, Dr. Drauzio Varela, como sendo uma:

dor crônica que migra por vários pontos do corpo e se manifesta especialmente nos tendões e nas articulações. Trata-se de uma patologia relacionada com o funcionamento do sistema nervoso central e o mecanismo de supressão da dor (...)[1].

Por se tratar de uma doença recém-descoberta, a comunidade médica ainda não conseguiu concluir quais são suas causas. Entretanto, já está pacificado que os portadores da citada enfermidade, em sua maioria mulheres, na faixa etária de 30 a 55 anos, possuem maior sensibilidade à dor do que as pessoas que não são acometidos por ela, em virtude de o cérebro dos doentes interpretar os estímulos à dor de forma exagerada, ativando o sistema nervoso por inteiro.

A interpretação exagerada dos estímulos pelo cérebro faz com que o paciente sinta ainda mais dor, conforme explica a cartilha “Fibromialgia – Cartilha para pacientes”[2], editada pela Sociedade Brasileira de Reumatologia.

Os principais sintomas que caracterizam a fibromialgia são dores generalizadas e recidivas, de modo que às vezes sequer é possível elencar onde dói, sensibilidade ao toque, síndrome do intestino irritável, sensação de pernas inquietas, dores abdominais, queimações, formigamentos, dificuldades para urinar, cefaleia, cansaço, sono não reparador, variação de humor, insônia, falta de memória e concentração e até mesmo distúrbios emocionais e psicológicos, a exemplo de transtornos de ansiedade e depressão.

Seu diagnóstico é essencialmente clínico, de acordo com os sintomas informados pelos pacientes nas consultas médicas, tais como a identificação de pontos dolorosos sob pressão, também chamados de tender-points.

Não existe um exame específico para sua descoberta, de forma que o diagnóstico resulta dos sintomas e sinais reconhecidos nos pacientes, bem como da realização de distintos exames que são utilizados para excluir doenças que possuem sintomas semelhantes à fibromialgia.

Ainda não há cura para a fibromialgia, sendo o tratamento parte fundamental para que não se dê a progressão da doença que, embora não seja fatal, implica severas restrições à existência digna dos pacientes, sendo pacífico que eles possuem uma queda significativa na qualidade de vida, impactando negativamente nos aspectos social, profissional e afetivo de sua vida.

A fibromialgia é, portanto, uma condição clínica que demanda controle dos sintomas, pena de os fatores físicos serem agravados, exigindo a necessidade de uma combinação de tratamentos medicamentosos e não medicamentosos, em virtude de a ação dos medicamentos não ser suficiente. Impõe-se, portanto, a submissão a um tratamento multidisciplinar, como ensina Lin Tchie Yeng, médica fisiatra que trabalha no Grupo de Dor do Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo[3].

O uso de medicamentos pelos pacientes é imperioso para a estabilização de seu quadro, não gerando quaisquer efeitos os anti-inflamatórios e analgésicos simples, uma vez que atuam para tratar dores associadas aos danos teciduais, o que não se dá na fibromialgia. Como na fibromialgia o que ocorre é uma alteração no cérebro quanto à percepção da dor, referidos medicamentos não são aptos a tratar os pacientes.

Os antidepressivos e os neuromoduladores são a principal medicação atualmente utilizada pelos pacientes de fibromialgia, uma vez que controlam a falta de regulação da dor por parte do cérebro, atuando sobre os níveis de neurotransmissores no cérebro, pois são capazes de agir eficazmente na diminuição da dor, ao aumentar a quantidade de neurotransmissores que diminuem a dor desses pacientes.

O tratamento não medicamentoso dos pacientes exige, por exemplo, a prática de atividade física individualizada e especializada, principalmente com exercícios aeróbicos, de alongamento e de fortalecimento, que deve ser realizada de três a cinco vezes por semana, acupuntura, massagens relaxantes, infiltração de anestésicos nos pontos da dor, acompanhamento psicológico, dentre outros.

A realização do tratamento requer, portanto, que o paciente disponha de tempo suficiente, bem como dispenda gastos de elevada monta, uma vez que o Sistema Único de Saúde – SUS não dá cobertura a todas essas atividades.

Em que pesem as severas restrições impostas à sadia qualidade de vida dos pacientes, referida doença não foi contemplada pelo rol de pessoas com deficiência elencado do art. 4º, do Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989 e do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000. Isso tem causado inúmeros transtornos a essas pessoas, especialmente no que tange à concessão de benefícios destinados às pessoas com deficiência, razão pela qual se torna relevante a presente discussão.


2 – Da inconstitucionalidade do art. 4º, do Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989 e do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, tendo em vista o novo conceito de pessoa com deficiência.

A Constituição Federal de 1988 – CF/88 elegeu como fundamento central do ordenamento jurídico brasileiro a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), mostrando, já em seus primeiros artigos, a preocupação com a redução das desigualdades e com o tratamento igualitário, sem que haja qualquer forma de discriminação (art. 3º, III e IV, CF/88).

É exatamente em razão de mencionados ideais que ela impõe a obrigação de se conferir tratamento adequado às pessoas com deficiência, demonstrando a necessidade de se realizar a inclusão das pessoas com deficiência em sociedade de diversas formas, merecendo destaque a inclusão através do trabalho.

Tanto é assim que a Constituição determina que no seu art. 7º, inciso XXXI, a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência” no âmbito das relações privadas de trabalho. Já na seara pública, ela prescreve, em seu art. 37, inciso VIII, que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

Haja vista os mandamentos constitucionais, foram promulgadas leis acerca da temática da proteção das pessoas com deficiência, vindo em seguida os decretos regulamentadores, instituindo diversos conceitos de relevo para a efetiva inclusão das pessoas com deficiência em sociedade.

Com efeito, o Decreto nº 3.298/1999, que regulamenta a Lei nº 7.853/1989, estabelece o conceito de deficiência, in verbis:

Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:

I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz;

III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;

IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a) comunicação;

b) cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade;

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

V - deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.

O Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, por sua vez, estabelece em seu art. 5º as hipóteses de deficiência. Vejamos:

Art. 5º Os órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, as empresas prestadoras de serviços públicos e as instituições financeiras deverão dispensar atendimento prioritário às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

§ 1o Considera-se, para os efeitos deste Decreto:

I - pessoa portadora de deficiência, além daquelas previstas na Lei no 10.690, de 16 de junho de 2003, a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadra nas seguintes categorias:

a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;

c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;

d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

1. comunicação;

2. cuidado pessoal;

3. habilidades sociais;

4. utilização dos recursos da comunidade;

5. saúde e segurança;

6. habilidades acadêmicas;

7. lazer; e

8. trabalho;

e) deficiência múltipla - associação de duas ou mais deficiências; e

II - pessoa com mobilidade reduzida, aquela que, não se enquadrando no conceito de pessoa portadora de deficiência, tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se, permanente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção.

Referidos decretos não encontram suporte no atual bloco de constitucionalidade brasileiro, ampliado pela aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Brasil, que se deu em dois turnos, seguindo o procedimento previsto no art. 5º, §3º, da Constituição Federal de 1988, já integrando o ordenamento jurídico brasileiro com o status de emenda constitucional, consoante se vê da promulgação realizada através do Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009.

Com a promulgação do Decreto 6.949/2009, deu-se uma revolução no conceito legal de pessoa com deficiência no Direito Brasileiro, eis que ocorreu uma mudança de perspectiva, notadamente em virtude de a deficiência deixar de ser vista sob a perspectiva da pessoa com deficiência, sendo considerada a partir do prisma da inadequação do Estado e da sociedade, que não se adaptaram para incluir essas pessoas na vida em sociedade.

Muda-se, portanto, a perspectiva do conceito de deficiência, que passa a repousar na sociedade e no Estado, nas barreiras atitudinais e ambientais que eles impõem às pessoas que possuem certos impedimentos, nos termos do art. 1º, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que conceitua pessoa com deficiência da seguinte forma:

“Preâmbulo:

(...)

e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,

(...)

Artigo 1

O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” (destaques)

Ricardo Tadeu Marques da Fonseca escreveu um artigo de extrema lucidez, antes mesmo da superveniência da promulgação da citada convenção no Brasil, intitulado “A ONU e seu conceito revolucionário de pessoa com deficiência”[4], em que leciona:

Evidencia-se, então, a percepção de que deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que apresentam impedimentos físicos mentais, intelectuais ou sensoriais. Na medida em que as sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e atitudinais, as pessoas com impedimentos têm asseguradas ou não a sua cidadania. (destaques)

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi internalizada no Brasil com “status” de emenda constitucional, como já fora mencionado, razão pela qual integra o bloco de constitucionalidade brasileiro, sendo, portanto, de aplicação imediata, nos termos do art. 5º, §1º, CF/88, constituindo norma de direito fundamental.

Desta feita, os conceitos de pessoa com deficiência, trazidos pelo Decreto nº 3.298/1999, que regulamentou a Lei nº 7.853/1989, e pelo Decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, por sua vez, são demasiadamente restritivos, não se compatibilizando com os critérios, agora constitucionais, trazidos pela epigrafada Convenção.

Tanto é assim que a então Procuradora-geral da República, Deborah Duprat, propôs a Arguição de Preceito Fundamental nº 182 junto ao Supremo Tribunal Federal – STF, requerendo que seja declarada a invalidade por não recepção do art. 20, §2º, da Lei nº 8.742/93, que também se vale de um conceito restritivo para conceder o benefício de assistência social, consoante cópias anexas[5].

Importante alertar que a Súmula 377, do STJ já asseverava, antes mesmo da promulgação da mencionada Convenção, que “o portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes”. Mencionada interpretação se baseia na constatação de que o rol do Decreto nº 3.298/1999 é demasiadamente restritivo, já que exclui as pessoas com visão monocular do conceito de pessoas com deficiência, fazendo-se necessária, na hipótese, a atuação do Judiciário conformando a norma ao caso concreto.

De se mencionar ainda que, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 6.949/2009, “a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, apensos por cópia ao presente Decreto, serão executados e cumpridos tão inteiramente como neles se contém”, sendo, portanto, de aplicação obrigatória para a Administração Direta e Indireta. 

Tendo em vista a natureza constitucional das normas insculpidas no Decreto nº 6.949/2009, o novo conceito de pessoa com deficiência revoga todas as normas que forem com ele incompatíveis. Assim sendo, o art. 4º, do Decreto 3.298/1999 e o art. 5º, do Decreto 5.296/2004 não mais possuem amparo constitucional, não podendo a Administração Pública observá-los em suas decisões administrativas, já que também o Estado deverá submeter-se ao império dos mandamentos constitucionais, haja vista a supremacia da Constituição Federal de 1988, notadamente em se tratando de direitos fundamentais sociais e do princípio da legalidade.

É preciso lembrar que o tema está afeto à garantia dos direitos da liberdade ao trabalho (art. 5º, II e XIII, CF/88) e da igualdade de oportunidade e tratamento no trabalho (art. 5º, caput, 6º, 7º, XXX e 39, §3º, CF/88), que são direitos fundamentais, sendo resultado da necessidade de se garantir igualdade não apenas formal, considerando-se o homem de forma isolada e abstrata, mas material, possibilitando a efetivação dos princípios da igualdade entre os homens e da dignidade da pessoa humana, bem como dos direitos fundamentais à vida e à saúde (art. 5º, caput, 6º e 196, CF/88).

Assim é que se autoriza a existência de discriminação positiva consubstanciada na promoção da igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de trabalho, em respeito à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho, ambos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III e IV, CF/88), concretizando-se o dever de obediência ao princípio da legalidade que se impõe à Administração Pública direta e indireta, dentre a qual se inclui a autarquia requerida, nos termos do art. 37, caput, CF/88.

Sobre a dignidade da pessoa humana, em que repousa a centralidade de todo ordenamento jurídico brasileiro instituído pela Constituição Federal de 1988, releva colacionar as lições de Annelise Fonseca (2012, p. 135)[6]:

É de salutar relevância explicitar que a dignidade da pessoa humana, além de ser um valor moral, alcançou o patamar de valor jurídico a ser tutelado por todos os estatutos normativos. E mais, não só produz efeitos no plano jurídico, mas também a dignidade deve produzir efeitos no plano material, impondo obrigações ao Estado e à sociedade.

Ingo Sarlet (2007, p. 48)[7] expõe com clareza que incumbe ao Estado pautar-se por condutas que concretizam a dignidade da pessoa humana.

Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, sendo portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria, portanto, o elemento mutável da dignidade), constatação esta que remete a uma conexão com o princípio da subsidiariedade, que assume uma função relevante também neste contexto. 83 84

De se ver, portanto, que o conceito insculpido no artigo 1º, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, efetivamente incorpora a dimensão médica ao conceito de deficiência, mas leva em conta, também, a importância da interação com os fatores sociais que levam à exclusão das pessoas com deficiência da vida digna.

À fl. 13 da cartilha “Fibromialgia – Cartilha para pacientes”[8], editada pela Sociedade Brasileira de Reumatologia, os impactos negativos trazidos pela fibromialgia à vida do paciente, bem como a necessidade de realização de atividades físicas, ficam bem claros:

(...) podemos observar, em um número significativo de pacientes, uma queda importante da qualidade de vida, com reflexos nos aspectos social, profissional e afetivo destes pacientes. Uma questão central para os fibromiálgicos é a dificuldade para a execução de tarefas, profissionais ou do cotidiano. Os pacientes mostram-se extremamente inseguros quanto ao desempenho pessoal, gerando um estado crônico de revolta em relação a sua saúde. Queixam-se frequentemente da redução da qualidade do seu trabalho, com consequente influência em sua vida profissional e mesmo na renda familiar. Comuns também são relatos de indiferença por parte de amigos e familiares, problemas conjugais e diminuição da frequência de atividades de lazer e mesmo religiosas.

 É muito importante que a pessoa com Fibromialgia entenda que a atividade física regular terá que ser mantida para o resto da vida, pelo risco de a Fibromialgia voltar se esta atividade for interrompida.

O tema é de demasiada importância, tanto assim o é, que tramita em caráter conclusivo o Projeto de Lei 2.680/2011[9], de autoria do Deputado Miriquinho Batista (PT-PA), que acrescenta dispositivo à Consolidação das Leis do Trabalho, para reduzir a jornada de trabalho de portador de fibromialgia, em quatro horas, condicionada à comprovação de prática de atividade física.

Impende ainda asseverar que a fibromialgia é uma doença do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo, que só recentemente foi catalogada no Cadastro de Internacional de Doenças – CID, recebendo o código CID 10 M 79.7, o que ocorreu somente 2004[10]. Assim, havendo o Decreto 3.298/1999, que estabelece as formas de deficiência, sido editado em 1999, era impossível que àquela época a fibromialgia pudesse ser enquadrada no mencionado rol.

Conforme já detalhadamente exposto, a fibromialgia é uma doença que importa ao paciente impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual e sensorial, que, em interação com as diversas barreiras impostas pelo trabalho deles, notadamente no que tange à jornada de oito horas de trabalho, efetivamente obstruem sua participação plena e efetiva na sociedade, especialmente em seu trabalho, em igualdade de condições com os demais servidores, que não estão acometidos por qualquer patologia como a fibromialgia.

Nestes termos, impõe-se o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 4º do Decreto nº 3.298/1999, que regulamentou a Lei nº 7.853/1989, bem como do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamentou as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, criando um rol taxativo de deficiências, valendo-se da técnica da interpretação conforme à Constituição (balizada no novo bloco de constitucionalidade firmado a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), para considerar o referido dispositivo como indicativo de exemplos, não se excluindo outras formas de deficiência, dentre as quais se inclui a fibromialgia, concluindo-se que as pessoas com fibromialgia se enquadram plenamente no novo conceito jurídico de pessoa com deficiência.


3 – Da concessão de horário especial para os servidores públicos federais fibromiálgicos.

A Lei 8.112/90, que instituiu o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias, inclusive as em regime especial, e das fundações públicas federais, em obediência aos mandamentos constitucionais acerca da proteção às pessoas com deficiência, possibilita que os servidores públicos com deficiência gozem de horário especial de trabalho. Seu art. 98, §2º assim prescreve:

Art. 98.  Será concedido horário especial ao servidor estudante, quando comprovada a incompatibilidade entre o horário escolar e o da repartição, sem prejuízo do exercício do cargo.

(...)

§ 2º. Também será concedido horário especial ao servidor portador de deficiência, quando comprovada a necessidade por junta médica oficial, independentemente de compensação de horário. (grifos)

A fibromialgia impede que os pacientes tenham as mesmas condições de trabalho que seus colegas que não se encontram enfermos, permitindo-lhes o enquadramento como pessoa com deficiência.

Saliente-se, entretanto, que não se deve confundir deficiência com impossibilidade de trabalhar, uma vez que eles, em sua maioria, são capazes de trabalhar, necessitando apenas que sejam removidas as barreiras que impedem o exercício de sua plena capacidade, exatamente a elevada carga horária, diante da necessidade de tratamento de saúde.

Urge colacionar a lição de GUGEL (apud PEREIRA, 2012, p. 139)[11]:

A pessoa com deficiência, portanto, é sujeito de direitos, devendo gozar das mesmas oportunidades disponíveis na sociedade, razão pela qual deve ser afastado do conceito de deficiência o conceito de doença ou incapacidade.

É exatamente por isso que o artigo 2º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009) permite que se estabeleçam adaptações razoáveis para que as pessoas com deficiência sejam tratadas de forma isonômica, consoante os princípios insculpidos no art. 3º da mencionada Convenção, especialmente o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas, a não-discriminação, a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade e a igualdade de oportunidades.

Nesse sentido, a referida Convenção trata do trabalho e emprego das pessoas com deficiência, falando de “trabalho” para abranger, inclusive, as relações administrativas, de natureza estatutária, como a relação existente entre os servidores públicos federais e a União. É o que reza o art. 27, item 1, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009):

Artigo 27

Trabalho e emprego

1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Esse direito abrange o direito à oportunidade de se manter com um trabalho de sua livre escolha ou aceitação no mercado laboral, em ambiente de trabalho que seja aberto, inclusivo e acessível a pessoas com deficiência. Os Estados Partes salvaguardarão e promoverão a realização do direito ao trabalho, inclusive daqueles que tiverem adquirido uma deficiência no emprego, adotando medidas apropriadas, incluídas na legislação, com o fim de, entre outros:

a) Proibir a discriminação baseada na deficiência com respeito a todas as questões relacionadas com as formas de emprego, inclusive condições de recrutamento, contratação e admissão, permanência no emprego, ascensão profissional e condições seguras e salubres de trabalho;

b) Proteger os direitos das pessoas com deficiência, em condições de igualdade com as demais pessoas, às condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo iguais oportunidades e igual remuneração por trabalho de igual valor, condições seguras e salubres de trabalho, além de reparação de injustiças e proteção contra o assédio no trabalho;

c) Assegurar que as pessoas com deficiência possam exercer seus direitos trabalhistas e sindicais, em condições de igualdade com as demais pessoas;

d) Possibilitar às pessoas com deficiência o acesso efetivo a programas de orientação técnica e profissional e a serviços de colocação no trabalho e de treinamento profissional e continuado;

e) Promover oportunidades de emprego e ascensão profissional para pessoas com deficiência no mercado de trabalho, bem como assistência na procura, obtenção e manutenção do emprego e no retorno ao emprego;

f) Promover oportunidades de trabalho autônomo, empreendedorismo, desenvolvimento de cooperativas e estabelecimento de negócio próprio;

g) Empregar pessoas com deficiência no setor público;

h) Promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas;

i) Assegurar que adaptações razoáveis sejam feitas para pessoas com deficiência no local de trabalho;

j) Promover a aquisição de experiência de trabalho por pessoas com deficiência no mercado aberto de trabalho;

k) Promover reabilitação profissional, manutenção do emprego e programas de retorno ao trabalho para pessoas com deficiência. 

(destaques)

Tendo em vista as necessidades diversificadas das pessoas com deficiência, com finalidade de permitir a isonomia com aquelas que não possuem qualquer tipo de deficiência, tratando desiguais, desigualmente, foi que o legislador trouxe o permissivo legal do art. 98, §2º, da Lei nº 8.112/1990, de realização de jornada especial de trabalho, independentemente de compensação de horários. Mencionado dispositivo legal guarda total pertinência com a alteração na ordem jurídica trazida pelo Decreto nº 6.949/2009).

Especificamente quanto à fibromialgia, impende ressaltar que tal enfermidade vem sendo constantemente discutida em juízo e, em muitos dos casos, os Colendos Tribunais vêm acolhendo até mesmo a tese de aposentadoria por invalidez à pessoa com fibromialgia.

De fato, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais decidiu, em 30 de abril de 2008, conceder o benefício à interessada sob o argumento de que "comprovadas a invalidez permanente e total por doença e a consequente impossibilidade de reabilitação para o exercício de atividade garantidora da subsistência do obreiro, é de ser deferida a aposentadoria por invalidez, impondo-se que a dúvida a respeito do nexo de causalidade seja dirimida em favor do requerente, por força do principio In Dúbio Pro Misero e no sentido social da legislação infortunística." (TJMG - 11ª Cam. Cível; ACi nº 1.0024.06. 100773-8/001 - Belo Horizonte - MG; Rel. Des. Afrânio Vilela; j. 30.04.08, vu).

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal também coaduna do mesmo entendimento, conforme se extrai do julgado abaixo transcrito:

APOSENTADORIA. PROVENTOS PROPORCIONAIS. SERVIDORA PÚBLICA. PORTADORA DE FIBROMIALGIA. ART. 186, § 1º, DA LEI 8.112/90. ROL EXEMPLIFICATIVO.186§ 1º8.112

I - O ART. 186, § 1º, DA LEI 8.112/90 CONTÉM ROL EXEMPLIFICATIVO, QUE ADMITE INCLUSÃO, PARA FIM DE APOSENTAÇÃO INTEGRAL, DE OUTRAS DOENÇAS QUE NÃO AS NELE ELENCADAS OU EM LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA. PRECEDENTES.186§ 1º8.112

II - A FIBROMIALGIA NÃO CONSTA DO ROL DO SUPRACITADO ARTIGO. A DESPEITO DISSO, É ENFERMIDADE GRAVE E INCURÁVEL, CONFORME CONCLUIU A JUNTA MÉDICA DA POLÍCIA CIVIL DO DISTRITO FEDERAL. POR ISSO, A APOSENTAÇÃO DA SERVIDORA ACOMETIDA DA RETROCITADA DOENÇA DEVE OCORRER COM PROVENTOS INTEGRAIS.

III - APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL IMPROVIDAS.

(309998820058070001 DF 0030999-88.2005.807.0001, Relator: VERA ANDRIGHI, Data de Julgamento: 05/11/2008, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: 24/11/2008, DJ-e Pág. 54)

Também no TRF5 há jurisprudência no sentido de que a fibromialgia deve ser enquadrada como deficiência. Vejamos:

EMENTA

PREVIDENCIÁRIO. TRABALHADORA RURAL. BENEFÍCIO DE AMPARO SOCIAL. FIBROMIALGIA. INCAPACIDADE. REQUISITOS. PREENCHIMENTO. ART. 203, V, CF/88 C/C ART. 20, § 3º DA LEI Nº 8.742/93. LAUDO PERICIAL. LIVRE CONVENCIMENTO DO MAGISTRADO. ARTS. 436 E 131 DO CPC.

- Para a concessão do benefício de prestação continuada, amparo social, é necessário à comprovação de alguns requisitos, dentre eles, que a pessoa seja portadora de deficiência que a incapacite para o trabalho e para a vida independente, e que não possua meios de prover a própria manutenção e nem tê-la provida por sua família (art. 20, §§ 2º e 3º da Lei 8.742/93).

- É entendimento jurisprudencial que, quanto ao aspecto da incapacidade laborativa, o magistrado é livre na apreciação da prova, não estando vinculado ao laudo pericial, sendo-lhe lícito apreciar livremente as provas acostadas aos autos (arts. 436 e 131 do CPC).

- In casu, não obstante o laudo médico pericial tenha concluído que a enfermidade que acomete a autora 'fibromialgia reumática' só incapacita de forma parcial, estando apta para as atividades laborativas que requer menor esforço físico, verifica-se do conjunto probatório dos autos, que resta configurada sua incapacidade para as atividades na agricultura, em que às dores musculares e ósseas freqüentes impõe limitações para o trabalho. Considerada, ainda, que se trata de uma pessoa pobre, de grau de instrução baixo, e que sobrevive da agricultura em regime de economia familiar, sendo, portanto, infrutífera qualquer tentativa de reabilitação para inseri-lo no mercado de trabalho.

- In casu, preenchido os requisitos legais de concessão do benefício de amparo social, deve ser deferido o seu pleito, a contar da data do requerimento administrativo.

- Apelação provida.

(Processo AC - 529039/CE - 0004835-45.2011.4.05.9999, RELATOR:DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO WILDO LACERDA DANTAS, ORIGEM:Vara Única da Comarca de Milagres, Data de julgamento: 25/10/2011, Publicado no DOU, Tribunal Regional Federal - 5ª Região TRF5 de 03/11/2011, Pg. 291)

O E. STF já se manifestou acerca do reconhecimento da natureza da fibromialgia como doença grave, autorizadora da concessão da aposentadoria por invalidez, tendo em vista que não caberia à lei a exclusão da fibromialgia dos conceitos constitucionais. Vejamos:

Decisão

Trata-se de agravo de instrumento contra decisão que negou seguimento a recurso extraordinário. O acórdão porta a seguinte "(...) APOSENTADORIA -INVALIDEZ PERMANENTE -FIBROMIALGIA -DOENÇA INCAPACITANTE -GRAVE E INCURÁVEL -RECONHECIMENTO OFICIAL -PREVISÃO CONSTITUCIONAL (ART. 40, § 1º, I).É cristalina a regra constitucional ao dizer que a aposentadoria ocorre por invalidez permanente decorrente de doença grave (art. 40, § 1º, I, CF). Se a fibromialgia está inserida dentre as doenças graves e ainda acrescido da agravante ser incurável, por si só se enquadra nos dizeres da Constituição, sendo desnecessário qualquer referência expressa em lei ordinária, diga-se, que só tem o condão de atravancar o direito constitucionalmente assegurado ao trabalhador.(...)" (fl. 33).No RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição, alegou-se violação ao art. 40, § 1º, I, da mesma Carta. O agravo não merece acolhida. Para se chegar à conclusão contrária à adotada pelo acórdão recorrido, necessário seria o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, o que atrai a incidência da Súmula 279 do STF. Por oportuno, trago à colação trecho do acórdão recorrido:"(...) É cristalina a regra constitucional ao dizer que a aposentadoria ocorre por invalidez permanente decorrente de doença grave. Ora, se a fibromialgia está inserida dentre as doenças graves e ainda acrescido da agravante de ser incurável, por si só se enquadra nos dizeres da Constituição, sendo desnecessário qualquer referência expressa em lei ordinária, diga-se, que só tem o condão de atravancar o direito constitucionalmente assegurado ao trabalhador.(...) E neste caso específico em epígrafe não se pode desprezar a realização de Laudo Médico por órgão oficial, onde foi constatada a patologia.Com a devida vênia do doutor Relator, entendo que a matéria foi ampla e fundamentadamente analisada pelo julgador singular, de modo que a prescrição atinge aos atos da administração pública.(...) Restou comprovado, também, que ela está em desvio de função por não ter condições de exercer atividades próprias do concurso público que prestou, desde 2002" (fls. 42-44). Isso posto, nego seguimento ao recurso. Publique-se. Brasília, 2 de fevereiro de 2010. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI- Relator (Processo: AI 781129 MT, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Julgamento: 02/02/2010, Publicação: DJe-028 DIVULG 12/02/2010 PUBLIC 17/02/2010).

O raciocínio esposado nos julgados acima colacionados, de que a fibromialgia é doença grave e incurável, ensejando, inclusive, aposentadoria por invalidez, também é aqui aplicado, não podendo, mutatis mutandis, os servidores públicos federais fibromiálgicos ser excluídos do direito a uma jornada especial de trabalho, nos termos do art. 98, §2º, da Lei nº 8.112/1990.

Tal se deve ao fato de que a fibromialgia importa impedimentos de natureza física, mental, intelectual e sensorial durante toda a vida do paciente, de modo que mencionados impedimentos, em interação com as barreiras impostas pela jornada de trabalho de 8 (oito) horas obstruem sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com os servidores públicos não acometidos por referida patologia, dever imposto, pelos princípios da legalidade (art. 37, caput, CF/88) e da supremacia da Constituição, também à autarquia requerida.

Assim, em se tratando de horário especial de trabalho, independentemente da compensação de horários, deduz-se que a jornada especial de trabalho não pode implicar redução dos vencimentos do servidor público, sob pena de violar frontalmente o princípio da irredutibilidade de vencimentos dos servidores públicos, previsto expressamente no art. 37, XV, da CF/88 e no art. 40, §3º, da Lei 8.112/1990.

A concessão de horário especial aos servidores públicos federais fibromiálgicos, nos termos do art. 98, §2º, da Lei nº 8.112/1990, consiste na realização de uma adaptação razoável, nos termos dos artigos 2º e 27, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009), sendo medida que se impõe para evitar que em médio prazo conduza à incapacidade para o trabalho, gerando aposentadoria por invalidez e perda de sua força de trabalho. Isso implicaria um ônus para a sociedade, que arcará com o benefício previdenciário prematuro, tendo em vista a alta expectativa de vida do brasileiro, que é atualmente de 74 (setenta e quatro) anos e 29 (vinte e nove) dias, segundo aponta o IBGE[12], bem como um ônus para a União, que perderá de seus quadros servidores diligentes e responsáveis, porém acometidos de doença grave e incurável.

A não concessão do horário especial a esse grupo de pessoas importará, ainda, inestimáveis prejuízos para eles, que, além de ter seu quadro de saúde agravado, em ofensa ao direito fundamental à saúde (art. 6º e 196, CF/88 e art. 25, da Convenção da ONU sob comento), ficarão incapacitados para o trabalho, perdendo a sua dignidade e ficando à margem da sociedade.

Resta claro que a negativa em conceder o horário especial aos pacientes de fibromialgia, por não constar do rol do artigo 4º do Decreto nº 3.298/1999, que regulamentou a Lei nº 7.853/1989, bem como do art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamentou as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, não está respaldada na legalidade em sentido amplo, uma vez que desrespeita, inclusive, os fundamentos da República Federativa do Brasil, quais sejam a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1º, III e IV, CF/88), violando frontalmente a Constituição Federal de 1988.

De se mencionar que se a Constituição Federal de 1988 impõe à iniciativa privada, ao tratar da ordem econômica (art. 170, CF/88), a necessidade de observar os princípios da redução das desigualdades sociais e econômicas e a busca do pleno emprego, com muito mais razão deve se exigir do Estado, encarregado de zelar pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV, CF/88), o respeito a tais princípios.


4 – Conclusão

A fibromialgia é uma patologia já reconhecida pela comunidade médica, apesar de recentemente descoberta. Sua causa ainda é desconhecida, atualmente estando classificada no CID 10 M79.7, sendo reputada como uma doença grave e incurável.

Mencionada enfermidade traz inúmeros desconfortos ao paciente que afetam de modo severo sua vida digna, saúde e sadia qualidade de vida. Tal se deve em razão de os estímulos à dor serem interpretados de modo exagerado, ativando todo o sistema nervoso, o que provoca dores por todo o corpo deles.

Os principais sintomas que caracterizam a fibromialgia, quais sejam, dores generalizadas e recidivas, impedindo a identificação de onde se localiza a dor, sensibilidade ao toque, sensação de pernas inquietas, dores abdominais, síndrome do intestino irritável, queimações, dificuldades para urinar, formigamentos, cefaleia, cansaço, sono não reparador, variação de humor, insônia, falta de memória e concentração e até mesmo distúrbios emocionais e psicológicos, a exemplo de transtornos de ansiedade e depressão, geram diversos impedimentos aos fibromiálgicos.

A interação de referidos impedimentos com as barreiras atitudinais e ambientais que a sociedade e o Estado impõem às pessoas com fibromialgia autorizam o reconhecimento de que as pessoas que padecem de fibromialgia podem ser enquadradas como pessoas com deficiência, nos termos do art. 1º, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, internalizada no Brasil pelo Decreto nº 6.949/2009.

Referida norma goza, no Brasil, do status de norma constitucional, por haver sido incorporada ao nosso ordenamento jurídico através do procedimento previsto no art. 5º, §3º, CF/88, sendo, portanto, de uso imperativo no âmbito público e privado, autorizando a conclusão de que o bloco de constitucionalidade brasileiro foi ampliado.

Assim é que as definições de deficiência, trazidas pelo artigo 4º do Decreto nº 3.298/1999, que regulamentou a Lei nº 7.853/1989, bem como pelo art. 5º, do Decreto nº 5.296/2004, que regulamentou as Leis nº 10.048/2000 e 10.098/2000, devem ser interpretadas conforme à Constituição para que se entenda que não estabelecem rol taxativo de deficiências, pena de violar o novo bloco de constitucionalidade brasileiro, formado a partir da aprovação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com o procedimento de emenda constitucional.

Tendo em vista que aos servidores públicos federais com deficiência foi assegurado o direito à concessão de horário especial (art. 98, §2º, da Lei nº 8.112/1990), também aos servidores públicos pacientes de fibromialgia, que tenham condições de trabalhar, deve ser estendido mencionado benefício, realizando-se assim as adaptações razoáveis que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência exige em seu art. 2º.

É que, em razão da necessidade de submissão a um tratamento multidisciplinar, a jornada de trabalho de 8 (oito) horas diárias e 40 (quarenta) horas semanais impede a realização do tratamento que a doença exige, provocando o agravamento da doença e, em alguns casos, conduzindo até mesmo à incapacidade para o trabalho. Tanto é assim que a jurisprudência já vem, inclusive, reconhecendo o direito à aposentadoria por invalidez das pessoas com fibromialgia.

Ocorre que o agravamento da patologia traz severas e inoportunas consequências não apenas para os enfermos, que terão sua vida digna e saudável comprometida e ficarão à margem da sociedade, uma vez que o trabalho é forma de garantir a sua dignidade e inclusão social. Implica, ainda, prejuízos para o ente público, que perde força de trabalho preparada, bem como para a sociedade, que precocemente será obrigada a custear os valores do pagamento do benefício da aposentadoria por invalidez.

De se mencionar, ainda, que mencionada redução de horário é medida que não pode implicar redução de vencimentos do servidor enfermo, haja vista, notadamente, o princípio constitucional da irredutibilidade de vencimentos (art. 37, XV, da CF/88 e art. 40, §3º, da Lei 8.112/1990).

Do exposto, conclui-se que a concessão de horário especial de trabalho ao servidor público com fibromialgia é medida que se impõe, garantindo-se, especialmente, a efetivação dos mandamentos constitucionais de proteção à vida, saúde, dignidade da pessoa humana, igualdade material, valor social do trabalho, dentre outros (art. 1º, III, IV, 3º, III e IV, 5º, 6º, 196, CF/88), construindo-se, efetivamente, uma sociedade livre, justa e solidária.


5 – Referências bibliográficas

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________________. Entrevista Fibromialgia. Disponível em: http://drauziovarella.com.br/wiki-saude/fibromialgia-3/. Acesso em 27/03/2013.


Notas

[1] Doenças e sintomas – Fibromialgia. Disponível em: http://drauziovarella.com.br/corpo-humano/fibromialgia/. Acesso em 27/03/2013.

[2] Fibromialgia – Cartilha para pacientes. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/138263284/ Cartilha-fibromialgia. Acesso em 27/03/2013.

[3] Entrevista Fibromialgia. Disponível em: http://drauziovarella.com.br/wiki-saude/fibromialgia-3/. Acesso em 27/03/2013.

[4] FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A ONU e seu conceito revolucionário de pessoa com deficiência. In: Revista LTr., Vol. 72-03/263, março de 2008.

[5] PGR pede que se adote conceito de pessoa com deficiência utilizado em Convenção. Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.mp.br/noticias/noticias-do-site/copy_of_constitucional/pgr-pede-que-se-adote-conceito-de-pessoa-com-deficiencia-utilizado-em-convencao/?searchterm=. Acesso em 11/03/2013.

[6] PEREIRA, Annelise Fonseca Leal. Das Medidas Efetivas para Inclusão no Trabalho da Pessoa com Deficiência, In: Direitos Fundamentais do Trabalho na Visão de Procuradores do Trabalho, São Paulo: LTr Editora, 2012.

[7] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5 ed. rev. e atual., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

[8] Ibidem.

[9] Portador de Fibromialgia poderá ter jornada de trabalho reduzida. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=526983. Acesso em 19/04/2013.

[10] Histórico das versões. Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/v2008.htm. Acesso em 11/04/2013.

[11] GUGEL, Maria Aparecida apud PEREIRA, Annelise Fonseca Leal. Das Medidas Efetivas para Inclusão no Trabalho da Pessoa com Deficiência, in Direitos Fundamentais do Trabalho na Visão de Procuradores do Trabalho, São Paulo: LTr Editora, 2012.

[12] Expectativa de vida do brasileiro aumenta para 74 anos. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/11/29/expectativa-de-vida-do-brasileiro-aumenta-para-74-anos. Acesso em 11/06/2013.


Autor

  • Theanna de Alencar Borges

    Juíza do Trabalho Substituta do TRT da 6ª Região (Pernambuco). Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa "Luís de Camões". Especialista em "Derechos Humanos Laborales y Gobernanza Global" pela Universidade Castilla-La Mancha (Toledo, Espanha). Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Professora do Grupo de Estudos Loucos por Trabalho - GELT (instagram @gelt_oficial). Pesquisadora voluntária do Projeto "Direito Internacional Sem Fronteiras - DISF" e do "Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais da Universidade Federal do Ceará - GEDAI UFC". Ex-Professora de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho da Faculdade Paraíso do Ceará – FAPCE. Ex-editora do blog Loucos por Trabalho (http://loucosportrabalho.blogspot.com.br/). Ex-Técnica Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará – TRE/CE.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Theanna de Alencar. Da necessidade de enquadramento dos pacientes de fibromialgia como pessoas com deficiência e da concessão de horário especial de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4466, 23 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33468. Acesso em: 16 abr. 2024.