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Espaços urbanos e criminalidade

um estudo do ambiente urbano como fator criminogênico

Espaços urbanos e criminalidade: um estudo do ambiente urbano como fator criminogênico

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Examina-se a relação existente entre degradação dos espaços urbanos de convivência com o aumento da criminalidade. À medida que um espaço público se degrada, cresce, na mesma intensidade, a criminalidade.

 Resumo: Quanto mais uma cidade cresce, maiores os problemas que tem que enfrentar, dentre os quais, um número maior de pessoas vivendo por quilômetro quadrado (o que gera conflito de interesses e de opiniões), além disso, os serviços públicos essenciais começam a ter que atender a um número cada vez maior de clientes, os cidadãos. O grande problema da urbanização se dá quando a mesma se processa de forma desordenada, gerando guetos sociais que passam a se distinguir por raça, classe social, etnia, etc. Este processo de estigmatização, ou melhor, de segregação social faz com que os espaços geográficos passem a ter uma ocupação característica e própria, deixando clara a separação entre ricos e pobres. Os ricos se acastelam em seus condomínios fechados, com requinte e luxo, e os pobres são cada vez mais expulsos para a periferia, que oferece condições de vida mais condizentes com seu poder aquisitivo, como moradia barata, luz elétrica clandestina, dentre outras, mas, ao mesmo tempo, condições incompatíveis com sua condição humana. Este estado de coisas acaba gerando raiva e frustração nos oprimidos, o que gera confronto entre estes e a elite. Este confronto é desencadeado, de um lado (pelos pobres), pela raiva de terem consciência de que não podem ter o que os mais abastados têm, de outro (pelos ricos), pelo temor que passam a ter das camadas mais pobres, em decorrência da possibilidade que sentem de serem vítimas deste ódio, que se materializa em violência. Esta urbanização desorganizada se erige em um fator criminógeno relevante. Contribuindo ainda para tanto, a deterioração ou ausência dos espaços públicos de convivência. 

Palavras-chave: Escola de Chicago, ecologia humana, guetos sociais, degradação urbana, criminalidade.

Sumário: 1. Introdução. 2. A cidade como objeto de análise da criminologia. 2.1. Urbanização e crescimento urbano – origem dos problemas sociais. 2.2. Os problemas sociais decorrentes da urbanização e do crescimento urbano desordenados. 2.3. Dos atos de violência: periferia x centro. 3. Escola de Chicago. 3.1. Ecologia humana. 4. Segregação urbana – dos enclaves fortificados. 5. Degradação humana e criminalidade. 6. Conclusão. Referências Bibliográficas 


 1. Introdução 

Dentro da atual configuração mundial, com o grande desenvolvimento tecnológico, com a expansão cada vez mais intensa do conhecimento humano, com o alto nível de informação de que dispõe a sociedade moderna, alavancada pelo processo de globalização, não mais há espaço para o enfrentamento de certos problemas de maneira simplista e incauta.

Os mais variados problemas que hoje assolam a sociedade mundial são o resultado inexorável de um complexo conjunto de fatores dos mais variados matizes. E dentre estes problemas, que assolam a sociedade moderna, o da violência é o que desponta com maior destaque porque a todos, indistintamente, tem afetado.

Não há mais espaço para as canduras políticas, para o discurso demagógico dos homens públicos descompromissados com a verdadeira essência da sociedade, qual seja, a mantença de sua coesão e harmonia.

Os discursos fajutos dos políticos em épocas eleitoreiras, verdadeiros espetáculos circenses, de pífia qualidade e de gosto hediondo, já não mais podem resolver o caos, no qual a sociedade se encontra imersa. Em verdade, referido discurso jamais resolveu situação alguma. O que referidos discursos tendem a fazer é mascarar a realidade, jogando “pano morno” nas verdadeiras e reais causas dos problemas, muitas vezes gerados pelo descaso político.

É mais fácil negar uma situação do que efetivamente tentar resolvê-la. Todavia, quanto mais negamos um problema, maior ele se torna.

Com a violência e a criminalidade o quadro não é diferente. Os políticos, em seus palanques, fazem a utópica promessa de que acabarão com a criminalidade e com os altos índices de violência, todos os dias noticiados pela mídia. No entanto, para tal desiderato, que mais é uma fantasia, sugerem soluções paliativas que vão atacar as causas e não a gênese da situação. É o mesmo que tratar os sintomas de uma doença, mas desprezar os fatores que desencadeiam a mesma. Agindo assim, a doença sempre irá permanecer, porque há o tratamento da sintomatologia, mas a etiologia (ou seja, a origem) da mesma permanecerá e todos continuarão a contrair a patologia.

Não mais é possível fantasiar com relação à violência urbana. Ela existe, está presente todos os dias em nossas vidas, afetando a nós, ou pessoas próximas a nós. Qualquer pessoa pode ser vítima da mesma e a qualquer momento.

Por essa razão, urge que se conheça a gênese criminológica da violência para que a mesma possa ser combatida e, se não vencida, pelo menos drasticamente minimizada.

Não se pode mais aceitar, evidentemente, a tese simplista e, porque não dizer discriminatória de Cesare Lombroso, em sua obra “O homem delinquente”, por meio da qual referido autor sustentou a tese de que a criminalidade seria de ordem genética, ou seja, transmitida de pai para filho. Logo, pela tese lombrosiana, se o pai era criminoso, fatalmente, o filho também o seria. Além disso, Lombroso sugeriu que o criminoso era portador de certos caracteres físicos inconfundíveis. Uma tese de um positivismo biológico extremamente perigoso.

Não há criminosos inatos, mas pessoas que, vivendo em determinados ambientes degradados e degenerados, acabam sofrendo influência dos fatores exógenos que as circundam. O homem não é endogenamente um criminoso, mas, dependendo de seu habitat, pode vir a se tornar um criminoso.

Dentro desta perspectiva, forçoso que voltemos as atenções ao ambiente em que vive o homem, para que se possa detectar se referidos fatores exo-criminógenos estão presentes. Psicologicamente, cremos que o primeiro habitat do homem seja a sociedade. Todavia, esta mesma sociedade tem que, obrigatoriamente, estar situada em determinado espaço físico. E este espaço físico é a cidade. Portanto, é a cidade, enquanto espaço físico, geograficamente falando, o primeiro ponto de partida da análise sociológica e criminológica da violência e da criminalidade.

Consoante definição do léxico[2], cidade é um “complexo demográfico formado, social e economicamente, por uma importante concentração populacional não agrícola, i. e., dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural”.

Os crimes acontecem dentro do cenário internacional, nacional, dentro dos Estados-membros, consoante noticia a imprensa, no entanto, antes de ter referidas repercussões, nos âmbitos espaciais acima citados, é no interior de uma cidade que os fenômenos da criminalidade e da violência se processam.

E, por essa razão, a cidade deve ser foco de atenção, para que os fatores criminógenos sejam detectados, estudados, entendidos e os mecanismos para se refrear a propagação de referida mazela social, implementados.

O crime pode ter a propagação que se queria lhe dar, mas, antes de qualquer outra repercussão, é na cidade que ele se manifesta primeiro, como um fenômeno localizado e setorial. 


2. A cidade como objeto de análise da criminologia

Um crime pode ter repercussão internacional, nacional, ou apenas dentro de um determinado Estado-membro, como acima dito, mas, antes de repercutir em qualquer destas esferas, ele se processou dentro de um determinado setor social. E este setor social é a cidade.

Mas, o que vem a ser uma cidade?

Os conceitos variam. O professor Omar Dalank[3], arquiteto, assim define a cidade:

Definindo de forma simplista, tecnicamente uma cidade é um aglomerado de seres. Sua estrutura e complexidade são maneiras de manter apenas essa aglomeração estável, e não sua origem. Não habitamos uma cidade, nós a compomos. (Dalank, 2007)

Muitos critérios podem ser adotados para se definir uma cidade. Alguns países adotam o critério populacional, como, por exemplo, Dinamarca[4], no qual são necessários, pelo menos, 250 habitantes para uma comunidade urbana ser considerada cidade; já a Islândia, apenas 300 habitantes; já na França, um mínimo de dois mil habitantes são necessários para que uma localidade ganhe o “status” de cidade; e na Espanha, dez mil habitantes.

Já em outros países, o termo cidade é utilizado para se designar uma unidade político-administrativa, como é o caso da Austrália. Já no Brasil, o conceito de cidade, também extraído do site enciclopédia Wikipédia[5], pode ser definido como:

“(...) o conceito de cidade adotado é o do IBGE, o órgão oficial do Governo Federal responsável pelos censos demográficos. Segundo tal critério, qualquer comunidade urbana caracterizada como sede de município ou de distrito pode ser considerada uma cidade, independentemente de seu número de habitantes”.

Entrementes, não concordamos com o critério populacional para que se defina uma determinada localidade como sendo uma cidade.

Por outro viés, consoante dito no pavilhão israelense na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2000, foi dada a seguinte definição de cidade: “A cidade é um habitat humano que permite com que pessoas formem relações umas com as outras em diferentes níveis de intimidade, enquanto permanecem inteiramente anônimos”.

Corroborando este entendimento, o professor e criminólogo Sérgio Salomão Shecaira, em sua obra “Criminologia”, Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 151, citando o professor Robert Ezra Park, assim faz constar:

(...) cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem. (Shecaira, 2004:151)

Mais adiante, o professor Shecaira ainda faz constar:

Cada cidade tem sua cultura própria, seus estatutos, seus ditames, uma organização formal e outra informal, seus usos e costumes, seus “cantos” e sua própria identidade. Nada representa mais o Rio de Janeiro do que O Corcovado e O Pão de Açúcar. São Paulo é a Avenida Paulista, assim como Nova York é a estátua da Liberdade. A cidade é um produto não intencional do trabalho de sucessivas gerações de homens. Essa instituição é evidentemente maior do que a estrutura física (ruas, avenidas e praças), ela tem uma ordem moral decorrente das manifestações culturais daqueles que habitam a cidade.

Diante destas exposições, podemos concluir que a cidade, mais do que uma mera estrutura física de ferro e concreto, é um ecossistema, no qual deve prevalecer a simbiose (relação biológica na qual os organismos que interagem entre si trazem benefícios mútuos para todas as partes envolvidas) entre todos os habitantes.

Diante disso, a cidade se mostra objeto imprescindível de qualquer análise sócio-criminológica, envolvendo a detecção dos fatores etiológicos da criminalidade e da violência.

2.1. Urbanização e crescimento urbano – origem dos problemas sociais

As cidades se formam porque pessoas começam a se aglomerar em determinado espaço geográfico, ali estabelecendo sua moradia. Mas, uma vez formada a cidade a mesma não fica estagnada, estática, sofrendo, como qualquer comunidade biológica, um aumento.

A cidade, geo-espacialmente, cresce pelo processo de urbanização ou crescimento urbano.

A urbanização e o crescimento urbano são dois processos geográficos distintos, mas que podem conduzir a um mesmo problema, qual seja, uma cidade socialmente problemática, com a formação de zonas criminógenas, ou seja, desencadeadoras da criminalidade. 

O processo denominado urbanização, ocorre quando há uma conversão da população rural em urbana, o que ocorre por meio do êxodo rural, ou seja, a população migra da zona rural (campo: sítios e fazendas) para a zona urbana.

Já o crescimento urbano se dá sem que necessariamente haja um processo de urbanização. O crescimento urbano é o crescimento da própria cidade. No crescimento urbano é a cidade, a zona urbana, o espaço urbano que cresce, por meio do aumento da população.

O fenômeno da urbanização tem um limite, ou um fim, mas o crescimento urbano pode ocorrer de forma indefinida. Consoante noticia o professor José William Visentini, em sua obra “Brasil – sociedade e espaço – geografia do Brasil”, editora Ática, 21ª edição, 1994, p. 105:

Em alguns países, como a Inglaterra, a urbanização já cessou, passando a ocorrer apenas o crescimento urbano. Aí, a população urbana já chegou aos 85% do total e prevalece um equilíbrio, com uma visível diminuição da migração rural-urbana, que, por vezes, chega até a ser inferior à migração urbano-rural. A urbanização, portanto, tem um limite, um ponto final, ao passo que o crescimento das cidades pode continuar a ocorrer indefinidamente. (Visentini, 1994:105)

O que se verifica, notadamente nos países outrora chamados de subdesenvolvidos e que, hodiernamente, são eufemisticamente chamados de países em desenvolvimento, ou em processo de industrialização, é uma forma desordenada pela qual este crescimento se verifica. E isso, principalmente, nos países subdesenvolvidos, que, historicamente, foram colônias de exploração e não de enraizamento.

Como a cidade cresce do centro para a periferia, nota-se que, quanto mais industrializado for o centro e quanto maior for o custo de vida em referida localidade, maior será a força de expulsão, principalmente da classe trabalhadora, sem muitos recursos financeiros, para o setor periférico do perímetro urbano. Isso porque, como dito, a cidade cresce do centro para a periferia (força centrífuga – que lança o corpo do centro para fora), e não da periferia para o centro (força centrípeta[6] – que atrai os corpos do exterior para o interior da força de atração).

A população pobre é expulsa para a periferia e acaba abandonada à própria sorte. Abandonada porque, ou o poder público não consegue acompanhar o crescimento vertiginoso da população, ou porque não se faz presente na periferia, a não ser em épocas eleitorais. Seja qual for o motivo, as consequências são nefastas, dentre as quais, a falta de infra-estrutura (água, esgoto, asfalto, iluminação), moradias dignas (há uma predominância de barracos, casas feitas com restos de materiais de má qualidade), ausência de escolas, centros de lazer, etc.

Com o crescimento urbano desordenado há o estabelecimento de espaços sociais conflituosos. O centro não se mistura com a periferia e nem esta com o centro. O aumento populacional desordenado acaba gerando um “inchaço” da cidade, que reflete diretamente na vida das pessoas, principalmente das que vivem nas margens da sociedade, ou seja, na periferia.

O número de vagas em empregos começa a diminuir, gerando um grande exército de pessoas desempregadas ou subempregadas.

Portanto, como se nota, a questão do aumento da cidade, seja pelo processo de urbanização, seja por meio do crescimento urbano, são fenômenos geográficos que têm implicações sociológicas muito grandes e que, por essa razão, não podem passar despercebidos da alçada da criminologia.

2.2. Os problemas sociais decorrentes da urbanização e do crescimento urbano desordenados 

Como já foi dito alhures, a urbanização, bem como o crescimento urbano desordenados, geram os mais variados problemas sociais. Este problema é agravado em países como o Brasil, que sofreram um processo de industrialização tardia ou retardatária.

Em países subdesenvolvidos há uma clara concentração de riquezas nas mãos de uma minoria. Isso gera a desigualdade social, resultante de uma má distribuição de renda. Esta má distribuição de renda faz com que uma pequena elite tenha acesso ao que há de melhor no mercado de consumo, e de outro lado expurga uma ampla parcela de despossuídos, que sem dinheiro, não tem como adquirir referidos produtos e bens de consumo. Isso gera uma geografia humana muito peculiar. A elite se isola em fortificações, os condomínios fechados, o que foi muito brilhantemente estudado pela antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira, na obra “Cidade de Muros”, que chamou estas fortificações ou guetos de “enclaves fortificados”. Analisaremos este estudo com mais acuidade adiante.

Consoante narra José William Visentini, obra já citada, p. 120, um dos grandes problemas sociais da questão urbana no Brasil é a moradia.

Assim leciona o professor Visentini:

Um desses problemas é a moradia. Enquanto em algumas áreas das grandes cidades brasileiras surgem ou crescem novos bairros ricos, com residências moderníssimas, em outras, ou, às vezes, até nas vizinhanças, multiplicam-se as favelas, os cortiços e demais habitações precárias. Nas últimas décadas ocorreu um aumento da população favelada em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras cidades do país. Muitas favelas são desmanchadas para dar lugar à construção de algum edifício no terreno; em alguns casos parte da população favelada acaba indo residir em conjuntos habitacionais feitos com recursos públicos, mas o aparecimento de novas favelas e o aumento das já existentes sempre superam o final de algumas. O mesmo ocorre com os cortiços, moradias pobres onde se amontoam várias pessoas num espaço reduzido, e que também tiveram seu número multiplicado nas últimas décadas. Além disso, essas populações transferidas de favelas ou cortiços para grandes conjuntos habitacionais quase sempre acabam retornando à vida em favelas ou cortiços (ou, às vezes, em casas precárias na periferia), pois o aumento das prestações da moradia é sempre superior ao aumento dos salários. Assim, nas últimas décadas, foi sempre comum que os conjuntos habitacionais construídos para abrigarem populações de baixa renda acabassem ficando em poder da classe média. (Visentini, 1994:120)

Estes ambientes urbanos degradados são focos certos de atividades violentas. Nos cortiços, por exemplo, as pessoas vivem espremidas umas sobre as outras. Quanto maior o número de pessoas vivendo próximas umas das outras, maior a probabilidade de conflitos. As pessoas vivem sob forte tensão. Frustradas pelas condições desumanas em que vivem, experimentando todo tipo de miséria, salários baixos, desmandos e abusos dos patrões, estas pessoas chegam a suas casas totalmente sobrecarregadas. E esta sobrecarga precisa ser liberada. E, geralmente, esta liberação é feita sobre a própria família, principalmente sob a forma de violência doméstica, seja contra a esposa ou contra os filhos.

Colabora para este tipo de degradação psicológica, já fruto da degradação do ambiente em que se vive, a ausência de “espaços públicos de socialização”. Não há praças, parques, bosques, centros de lazer. Os únicos ambientes “sociais” são os bares, vulgarmente chamados de “botecos”, nos quais as pessoas vão não para se socializar propriamente, mas para afogar as frustrações num copo de água ardente.

Embriagada e frustrada a pessoa se torna uma “bomba” ambulante, pronta para explodir. As famílias aos poucos vão se desestruturando. Os pais de família se socorrem dos bares, logo, o diálogo resta prejudicado com seus filhos e esposa. As esposas, na ausência de verdadeiros companheiros, se socorrem nos braços de outros, ou apostam em aventuras amorosas ilusórias. Os filhos, em toda esta conjuntura de esfacelamento familiar, ficam à própria sorte. Sem estrutura familiar, sem diálogo, sem sonhos ou perspectivas acabam soltos pelo mundo, vagando às cegas. Estas crianças e jovens crescem sem identidade e com uma personalidade problemática. São filhos e filhas órfãos de pais e mães vivos. Esta perda de identidade, principalmente na adolescência, deixa o jovem sem referencial. Este referencial é o modelo de conduta que todos tendemos a ter, sendo, na infância principalmente, a figura do pai ou da mãe. Sem o referencial, o jovem tende a se agarrar a qualquer coisa que supra sua carência afetiva.

Jovens sem identidade começam a se aglomerar em grupos, formando as gangues. As gangues são aglomerados humanos que se formam, e isso psicologicamente falando, para a busca de um referencial, ou modelo.

Geralmente nas gangues, há uma figura central, o líder, que comanda. Este líder transmite aos demais certa coragem, se preocupa e zela do grupo. Este zelo e atenção são sentimentos que a maioria não possui dentro da própria casa. Todo ser humano sente a necessidade de ser amado e de ter um lugar no qual se sinta acolhido e protegido. E é dentro das gangues que muitos jovens encontram isso.

Assim, as gangues são fruto da degradação familiar e esta, por sua vez, fruto da degradação social e urbana.

Estes os problemas urbanos gestados pela urbanização e pelo crescimento urbano desordenados, fruto de uma industrialização tardia ou retardatária, impelida pelo capitalismo selvagem.

2.3. Dos atos de violência: periferia x centro 

Esta divisão sócio-espacial entre centro e periferia gera, inegavelmente, conflitos. De um lado temos o centro, que possui as melhores condições de vida, como saúde, transporte, lazer, boas escolas, e de outro, um ambiente degradado, que produz uma paisagem urbana inóspita e esteticamente feia, a periferia. Os cortiços possuem uma arquitetura muito singular. São prédios mal acabados, enegrecidos pelo lódão e liquens (resultado de infiltração); um único banheiro serve para várias famílias; as casas, ou pequenos cômodos, são amontoados, não há privacidade, ou mesmo intimidade. A vida de todos é de conhecimento de todos.

Esquecidos pelas autoridades, a população reage. E da forma mais violenta. Esta reação pode se dar pela busca de moradia, como o caso dos sem-terra urbanos; ou ainda, movimentos de depredação do patrimônio público, como forma de compelir as autoridades a cumprir seu papel institucional e constitucional.

O professor Visentini assim faz constar:

Um movimento popular que vem se multiplicando ultimamente nas grandes cidades brasileiras é o dos sem-terra urbanos. São centenas de famílias que da noite para o dia “invadem” – ou melhor, ocupam – um dos muitos terrenos ociosos que existem nessas cidades e aí procuram fixar moradia. (Visentini, 1994, p. 126)

E mais adiante complementa:

Outro movimento popular que com freqüência ocorre nas metrópoles do país, só que nesse caso de forma espontânea, sem aquela organização que existe entre os sem-terra, são as depredações de ônibus e trens. Isso costuma ser uma decorrência das péssimas condições desses transportes coletivos, com irregularidades nos horários, atrasos constantes, filas e superlotações, além dos abusivos aumentos nas tarifas. (Visentini, 1994, p. 126)

Vários outros exemplos podem ser citados. Quantas populações em estado de miséria não invadem e saqueiam supermercados e armazéns? Quando o poder público não ouve os gritos de desespero de seu povo, outros canais surgem para que os excluídos possam se fazer ouvir.

De forma magistral, assim conclui o professor Visentini (1994:127): “Como se vê, na ausência de canais institucionais que garantam um real diálogo da população com as autoridades, a própria população tem de criar, às vezes pela força, suas formas de ser ouvida”.

Logo, como se percebe, a violência acaba sendo o resultado do abandono e do descaso.

Outro fator que contribui sobremaneira para o desenho irregular das cidades e sua ocupação desordenada é a especulação imobiliária. A especulação imobiliária se processa da seguinte forma: entre um loteamento e outro, se deixa uma extensa área vazia. Portanto, entre um loteamento anterior, já servido com infra-estrutura (água, esgoto, iluminação, transporte, etc.), e o próximo, fica uma área vaga, vazia. Feito o novo loteamento, o mesmo terá que ter infra-estrutura. Ocorre que, para chegar até este loteamento, referidos serviços (infra-estrutura) terão que passar pela área vazia e não loteada, intencionalmente deixada assim. Isso provocará uma vertiginosa valorização de referida área, o que acarretará uma valorização dos terrenos que serão vendidos a preços muito mais elevados. O que serve apenas aos interesses da elite. Neste processo, o trabalhador é lançado cada vez mais para a periferia.

O pesquisador Lucio Kowarick, na obra “A espoliação urbana”, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980, p. 29-53, citado por Visentini (1994:128) assim registra:

O vertiginoso crescimento da metrópole, conjugado ao processo de retenção dos terrenos à espera de valorização, levou ao surgimento de bairros cada vez mais distantes. Amontoam-se populações em áreas longínquas, afastadas dos locais de trabalho, impondo-se distâncias de deslocamento cada vez maiores.

Este processo, como se nota, cria muros entre as diferentes classes socais. O trabalhador, assim, é expulso do centro e a elite capitalista domina o cenário urbano.

A classe trabalhadora, estigmatizada e lançada para longe, se torna estranha à elite. Esta, sem conhecer a face do trabalhador, que todos os dias faz verter suor e lágrimas de seus olhos para suprir seus luxos (os da elite), vê no trabalhador um estranho perigoso.

Quando começaram a surgir os conflitos – manifestações, reivindicações, ocupações de terrenos urbanos, saques, assaltos, etc. – a elite construiu seus castelos. Agora a burguesia vive em guetos urbanos, os condomínios fechados, cercados de altos muros eletrificados e fortemente vigiados por seguranças particulares e moderno sistema de vigilância eletrônica. Esta atitude elitista apenas aumenta ainda mais a segregação social.

E isso se dá porque, as pessoas não aprenderam a viver o espírito da cidade. Viver na cidade não se resume apenas em ocupar um determinado espaço geográfico, mas também, em se aderir ao espírito urbano de coexistência pacífica e tolerância. Todos trabalhando em prol da coletividade. O problema é que a burguesia, parafraseando-se Lucio Kowarick, ainda teima em ver a cidade e o trabalhador como mera fonte de lucro.


3. A Escola de Chicago

Foi o departamento de sociologia da Universidade de Chicago, que primeiro analisou a interligação dos fenômenos urbanização, industrialização e criminalidade.

Isso porque Chicago congregava as condições ideais, que a transformaram em excelente objeto de análise e estudo sociológico.

Consoante descreve o professor Davi de Paiva Costa Tangerino:

Chicago foi especialmente sensível aos fenômenos apontados. Ainda em 1800, nada mais havia na região do que alguns pioneiros – o Estado de Illinois só foi fundado em 1818. Em 1840, a população de Chicago não alcançava cinco mil habitantes. Em questão de cinqüenta anos, Chicago cresce mais que duzentas vezes atingindo população superior a um milhão de habitantes. (Tangerino, 2007:13)

E em outra passagem, o professor Davi Tangerino faz constar:

Se os dados sugerem euforia e prosperidade, a descrição daquela cidade, datada de 1890, todavia, revela as contrariedades desse momento histórico: “(...) era uma cidade relativamente nova, uma metrópole em ebulição, turbulenta e industrial que sabia o significado de ser grande, mas que teve pouco tempo para absorver o conhecimento. Era uma cidade de paradoxos, brilhantemente capturada no poema de Carl Standburg ‘Chicago’. Tinha seu lado negro, uma cidade de exploração e degradação humana. A industrialização levou a conflitos industriais, mais dramaticamente da disputa de Haymarket de 1886 e na greve Pullman de 1894”. Citando Lincoln Stefens, aponta que Chicago ‘estava repleta de violência (...) criminalmente estava totalmente aberta; comercialmente, insolente; e socialmente, acéfala e crua’”. (Tangerino, 2007:13)

Portanto, consoante se pode perceber, o grande crescimento da cidade de Chicago levou a mesma não apenas ao progresso e a prosperidade, mas também, a problemas sociais sérios, dentre os quais, a criminalidade.

Grande e inestimável foi a contribuição do pensamento sociológico da Escola de Chicago, que até os dias de hoje é revisitado pelos intelectuais, notadamente, os criminólogos que se debruçam sobre as causas da criminalidade nos centros urbanos. Os intelectuais da Escola de Chicago, como já ressaltado, foram os primeiros a ligar o fenômeno deletério da criminalidade ao fenômeno da desorganização social que se verifica nas cidades. Desorganização social esta, fruto de um processo de urbanização extremamente rápido, resultado do capitalismo selvagem e sempre apressado.

A Escola de Chicago abandonou a arcaica e lombrosiana idéia do “homem delinquente”, ou seja, aquela cuja criminalidade estava ínsita em sua estrutura genética e orgânica e deslocou o foco de atenção para o entorno social que envolve o homem, e mais especificamente, o delinquente, chegando a conclusão de que, a delinquência é fruto do meio social em que se vive, ou, mais especificamente, do meio social degradado em que se vive.

Essa a grande contribuição da Escola de Chicago, cujo pensamento, gestado no departamento de sociologia da Universidade de Chicago, trouxe ao mundo dados preciosos acerca do fenômeno criminal.

3.1. A ecologia humana 

Surge, com os estudos da Escola de Chicago, a noção de “ecologia humana”.

Ecologia é uma palavra que deriva do grego “oikos”, significando casa, moradia, habitação. Assim, ecologia é a ciência que estuda a moradia de um ser, seja animal ou vegetal.

Esta moradia ou habitação é o local onde o ser (animal ou vegetal) vive e com o qual interage. Portanto, ecologia é a ciência que estuda a relação dos seres vivos com o meio ambiente no qual vivem e das diversas espécies entre si. Logo, ecologia humana é a ciência que estuda as relações entre os homens e destes com o meio no qual vivem.

Consoante citado por Davi Tangerino (2007:15), o primeiro a dar tratamento sistemático à ecologia humana foi Robert Park, em 1915, em seu artigo The City. Ainda na obra do professor Davi Tangerino, pode-se ler:

No entender do autor, dois são os princípios ecológicos centrais: o da dominância e o da sucessão. No reino vegetal, podemos perceber a dominância na disputa das plantas pela luz: aquelas mais altas, cujas folhas se projetam sobre as demais são as plantas dominantes de uma região. No reino humano, por assim dizer, a dominância está presente em vários campos sociais, como fruto dos processos de competição. Na disputa pelas áreas da cidade, as áreas de dominação serão aquelas cujos terrenos tenham valor mais alto. O mesmo poder-se-ia dizer dos estatutos social, econômico, etc. (Tangerino, 2007:15)

E ainda nas palavras de Park, citado por Davi Tangerino:

Outro princípio ecológico central é o da sucessão. Ensina Park que “sucessão é o termo usado pelos ecólogos para descrever e designar a seqüência ordenada de mudanças através das quais uma comunidade biótica passa, no curso de seu desenvolvimento, de um estádio primário e relativamente instável, a um estádio relativamente permanente ou de clímax”. No campo da ecologia, a sucessão pode ser ilustrada “pelos processos de deterioração física dos prédios que levam a uma modificação do tipo de povoamento que produz, por sua vez, uma tendência de diminuição dos alugueres, selecionando níveis de população de rendimento cada vez mais baixo, até que um novo ciclo seja iniciado, quer como mudança de residência para negócios, ou por meio de um novo desenvolvimento do uso antigo, como por exemplo, a mudança de apartamentos para hotéis”. (Tangerino, 2007:15-16)

Portanto, é a ecologia humana que vai fornecer as bases teórico-práticas, de análise do fenômeno interacional homem-ambiente urbano.

Como já ressaltado linhas acima, é a cidade o palco dos acontecimentos humanos. Por meio da ecologia humana, pode-se perceber o quanto o ambiente urbano degradado influi no homem, modificando sua personalidade. Ambiente degradado, personalidade degradada.

São estas mudanças espaciais que propiciam a segregação espacial urbana, criando universos diferentes, dentro do mesmo espaço geográfico. Mundos sociais diferentes, numa mesma base física, qual seja, a cidade.

Assim, a ecologia humana se ocupará da análise da interação do homem com o meio no qual vive, mais especificamente, do homem com o meio ambiente urbano com o qual interage, bem como analisará seu relacionamento social com seus semelhantes. O homem, portanto, é o objeto de análise da ecologia humana. 


4. Segregação urbana – dos enclaves fortificados

Analisando a cidade de São Paulo, por exemplo, a antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira constata três formas (que também podem ser vistas como fases) de organização do espaço urbano, que se sucederam ao longo do século XX.

A primeira forma estendeu-se do final do século XIX até os anos 1940, na qual as pessoas estavam comprimidas numa pequena área urbana e estavam segregadas por tipos de moradias. A segunda forma urbana, a centro-periferia, se processou dos anos 40 até os 80. Nesta forma, os diferentes grupos sociais são separados por grandes distâncias. Nas palavras de Teresa Caldeira (2003:211): “(...) as classes média e alta concentram-se nos bairros centrais com boa infra-estrutura, e os pobres vivem nas precárias e distantes periferias”. Já a atual forma de segregação, que se verifica nos dias de hoje, ocorre por meio do que a pesquisadora Teresa Caldeira chamou de “enclaves fortificados”. Nesta forma de definição do espaço urbano, as pessoas até estão próximas, mas separadas por muros. Nas palavras da pesquisadora:

Trata-se de espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento. Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera pública tradicional das ruas para os pobres, os “marginalizados” e os sem-teto. (Caldeira, 2003:211)

Estes muros e estas tecnologias de segurança impedem que as pessoas – especificamente os pobres – circulem ou interajam em áreas comuns. Estes muros delimitam perfeitamente, quem pertence a que ambiente, ou melhor, a que classe social. Referidos muros separam mais do que espaços, separam pessoas e classes sociais também.

Assim, a rua ficou para os pobres, ou seja, os marginalizados, os mendigos, os desabrigados e etc. Isso acaba afetando diretamente a estética, inclusive, dos espaços públicos. Começa-se a perceber que, nos locais onde se enclausuram os ricos, os espaços de competência da administração pública são mais bem cuidados e preservados. Já os espaços públicos, localizados próximos à periferia, ou seja, fora dos “enclaves fortificados”, começam, como decorrência da ausência de manutenção, a se degradarem. A fiscalização do setor público na periferia começa a se ausentar. A ausência dos espaços públicos adequadamente preservados, criando um ambiente urbano saudável, impede as pessoas de se socializarem.

Esta diferenciação de tratamento dos espaços públicos, ou seja, entre os que estão localizados próximos aos enclaves fortificados e os que estão fora de referidos ambientes acastelados, se dá por várias razões.

A primeira e mais evidente é porque há interesses políticos em jogo. Os políticos ou moram nestes enclaves ou possuem parentes e familiares neles, ou ainda porque são influenciados, geralmente por empresários, que residem nestes guetos urbanos.

Se se proceder à uma análise de um espaço urbano, no qual haja condomínios fechados, em confronto com uma área urbana da periferia é patente a diferença da presença do poder público em ambas.

Nas áreas de condomínios fechados há a presença de melhor iluminação pública, rede de água e esgoto, áreas de lazer, asfalto bem conservado. Já na periferia nota-se esgoto a céu aberto, locais onde resta ausente a iluminação, sendo região de maior incidência de crimes, como roubo, furto, crimes sexuais, etc.

O crime surge como decorrência desta segregação, como já ressaltado alhures. Como se nota, a própria sociedade é responsável pelos problemas que enfrenta. Os pobres, abandonados à própria sorte, são obrigados a sobreviver e a criar meios para não serem extintos (ou até mesmo deletados) pela seleção natural[7].

Assim, dentro do ambiente selvagem da cidade, o pobre sobrevive. E o crime tem sido uma forma de sobrevivência. O que se nota dentro de toda esta conjuntura é um desgaste generalizado de todas as estruturas envolvidas.

A degradação do espaço urbano gera a degradação do espaço social e a degradação deste, gera a degradação moral da parte hipossuficiente e marginalizada, ou seja, o pobre, do qual tudo é tirado, inclusive a dignidade.

Colocados em lados opostos e impedidos de circular pelas mesmas áreas comuns, os ricos, por terem medo da periferia, e os pobres, por não poderem adentrar nos ambientes fechados nos quais residem as elites, sob pena de serem alvo de represália e violência “legítima”, faz com que, estes grupos comecem a tomar, um ao outro, como rivais.


5. Degradação humana e criminalidade 

Como se pôde perceber de maneira muito clara, a degradação do espaço urbano gera, de maneira inegável, a degradação da pessoa humana.

Quanto mais as pessoas forem expurgadas para longe do centro, indo para as bordas da cidade, ou seja, a periferia, e, consequentemente, este processo de segregação criar muros entre as diferentes classes sociais, sejam muros físicos, por meio da construção de “enclaves fortificados”, ou seja, os condomínios fechados, constantemente monitorados, seja a criação de muros culturais, e até poderíamos dizer, ideológicos, com a colocação das pessoas em lados diametralmente opostos, mais haverá um processo de degradação da condição humana.

Isso porque, a segregação, a discriminação, que nada mais é do que o ato de separar, de apartar as pessoas, ou melhor, as classes sociais, umas das outras, faz com que o ideário social de agremiação, de aglutinação entre referidas pessoas comece a se rarefazer. Fica patente a competição violenta entre os membros da sociedade, em detrimento do processo ecológico da simbiose que deveria se fazer presente para a busca da harmonia social.

O que realmente faz uma sociedade ser forte é o espírito de cooperativismo entre seus membros, de simbiose, como acima dito. É a idéia de que cada pessoa, da sua forma, deve desempenhar um determinado papel, e o desempenho deste papel deve ser em prol do todo e não, egoisticamente, em prol de cada um. Um organismo biológico apenas consegue sobreviver, quando cada uma de suas células trabalha em benefício do todo, posto que, a partir do momento em que uma célula ou um grupo de células passa a trabalhar e a desempenhar suas funções individualmente, em prol de si mesmas, temos o surgimento do câncer. Fisiologicamente, o câncer surge por meio de um processo denominado oncogênese, no exato momento em que uma célula ou grupo de células passa a trabalhar em prol de si mesmas e não do todo. Tendo que trabalhar apenas para si, este conjunto de células cancerígenas passa a exercer suas atividades em detrimento do organismo, tentando matá-lo.

Todavia, este processo de metástase, ou seja, de disseminação do câncer é tão irracional, que este mesmo conjunto de células não percebe que, matando o organismo no qual vivem, matarão a si mesmas, posto que, com a morte do organismo não terão mais onde subsistir.

Este o fenômeno que vem ocorrendo com a sociedade moderna. Ricos de um lado, lutando e cuidando apenas de seus próprios interesses (núcleo oncogênico), e de outro, um exército de miseráveis que sobrevive, dia após dia, sob a pressão da dominação da classe abastada. Neste processo alucinado de “salve-se quem puder”, a sociedade vem se afundando em profundo abismo, de dimensões dantescas.

Os miseráveis, humanamente degradados, formam a massa delinquencial que declara guerra, todos os dias, aos seus opressores. Estes algozes (opressores) tomam a forma de patrões, que os exploram no ambiente de trabalho, do poder constituído, que os trata como escória (faça-se referência aqui, à forma como a polícia trata muitos pobres nos bairros da periferia, com truculência e boçalidade), o Estado que os deixa no mais completo abandono, não cumprindo com seu dever institucional de zelar pelos mesmos, oferecendo moradia digna, saúde, trabalho e lazer.

Um ser humano degradado, ocupando os piores locais urbanos para moradia, sem saúde, infra-estrutura, higiene, residindo em cortiços, que, como já dito, são uma mistura amorfa de gente e concreto, deixa de ser um ser humano, uma pessoa com dignidade e se transforma em um espectro, ou seja, uma sombra de si mesmo. Sem dignidade, não há como referida pessoa reconhecer dignidade em seus pares.

Quando o respeito acaba, as transgressões e os desrespeitos começam. Foi quando o ser humano passou a inobservar o outro como limite e pilar da atitude ética, que os problemas tiveram sua gênese. Sem respeito não há impedimento a que as pessoas cometam os mais variados ilícitos. Quem não respeita rouba, violenta, mata. Atitudes difíceis de serem perpetradas por pessoas que amam seu semelhante e que reconhecem no mesmo o limite de seu poder de agir.

Um ser humano degradado destrói a si mesmo, e como exemplo disso, podemos citar a atitude de se usar substâncias entorpecentes (tóxicos dos mais variados), e destrói, também, os que se encontram próximos a ele, como seus familiares.

E este nível de degradação humana, tem crescido a ritmo vertiginoso no presente século. Cite-se como exemplo, as pessoas que vivem abaixo da linha da miséria, sobrevivendo nos lixões (imensos aterros sanitários) das grandes cidades. Estas pessoas têm sobrevivido com os restos de seus semelhantes, economicamente melhor posicionados na sociedade. Muitas destas pessoas comem alimentos podres, ou misturados com detritos dos mais variados. Não raro, os alimentos excedentes de uma feira estão mesclados ao lixo biológico dos hospitais. E mesmo assim, sem ter como prover a própria subsistência, bem como da família, estas pessoas procedem à uma delicada separação entre alimentos e lixo, consumindo da melhor maneira possível aqueles.

Estamos ou não diante de um quadro da mais absoluta degradação humana? A resposta não pode ser outra que não seja a afirmativa: sim, estamos diante de um quadro deplorável de degradação humana. E este quadro de degradação humana tem sido resultado da degradação dos espaços urbanos nos quais se vive.

E esta degradação da personalidade leva à criminalidade, posto que, ecologicamente, o crime é uma forma de adaptação ao meio no qual se vive. Se uma pessoa desempregada não tem como sobreviver dignamente, bem como prover ao sustento de sua família, uma vez que a sociedade na qual vive não lhe proporciona emprego, evidente que o mesmo irá furtar ou roubar, porque este procedimento é uma forma de se adaptar ao meio ambiente do qual faz parte. Se a pessoa não consegue comprar o alimento, uma vez que não tem dinheiro, irá adquiri-lo de outra forma, seja furtando (subtraindo para si coisa alheia móvel – geralmente gêneros alimentícios – sem violência ou grave ameaça), seja roubando (subtraindo para si coisa alheia móvel, só que se valendo da violência ou da grave ameaça à pessoa), ou ainda, matando outrem para obter aquilo de que necessita, o que configura a conduta do latrocínio, que, diga-se de passagem, é crime hediondo na legislação penal brasileira (inciso II, art. 1º da Lei 8.072 de 1990).

Portanto, a criminalidade tem suas raízes profundas (mas não exclusivas) na degradação da pessoa humana (muito embora existam outros fatores que possam condicionar a prática de um crime), sendo, referida degradação, resultado de vários fatores, dentre os quais, o meio ambiente no qual se vive. Estes ambientes, dentro das cidades, são os espaços urbanos. Logo, espaço urbano (ambiente) degradado, personalidade degradada. Personalidade degradada, maior propensão à prática de atos antissociais, que, esculpidos em atos legislativos, tomam a designação dogmática de “crimes”.


6. Conclusão 

Diante da exposição tecida no presente trabalho, foi possível constatar a fundamental importância do estudo da cidade, enquanto unidade geo-espacial e importante ecossistema, na formação da personalidade humana. Foi possível perceber também, o quanto o fenômeno ecológico se processa de forma evidente nas interações humanas, tanto do homem com o meio ambiente no qual vive, quanto nas interações entre os membros da sociedade.

A contribuição da Escola sociológica (e criminológica) de Chicago foi ímpar na análise do fenômeno criminal, notadamente no estudo científico do ambiente no qual o mesmo se processa, demonstrando de forma evidente e sem rodeios, qual o impacto que o ambiente urbano tem nas pessoas, principalmente o ambiente degradado e esquecido pelo poder público. Os estudos da Escola de Chicago permitiram a compreensão mais lúcida da realidade criminal no ambiente urbano, e referidos estudos servem, assim como serviram nos estados estadunidenses, consoante relata o professor Davi Tangerino (2007:22), como base das reformas legislativas e elaboração de programas de intervenção social tendentes a minimizar esta mazela denominada crime.

Pessoas mais abastadas conquistam os melhores espaços, ou seja, aqueles que são servidos com a melhor infra-estrutura (água, esgoto, iluminação, lazer e etc.), enquanto a ampla parcela da população, composta de pessoas trabalhadoras e humildes são obrigadas a se encalacrar em minúsculos e imundos espaços, denominados cortiços. Enquanto este jogo de empurra-empurra se processa, num cenário mesclado de homens e concreto, a elite, a grande responsável por este processo de segregação social, se acastela em suntuosas mansões e sofisticados condomínios fechados, constantemente vigiados por sistema de segurança privado.

A construção destes espaços de segregação, ou guetos sociais, apenas faz aumentar ainda mais as diferenças sociais.

Estes enclaves fortificados impedem o convívio humano. Convívio este fundamental para o estreitamento dos laços de amizade, respeito mútuo e solidariedade entre as pessoas, ou ecologicamente falando, de simbiose. A impossibilidade “legalizada” do trânsito livre em certos espaços públicos só faz aumentar a rixa entre pobres e ricos. Estes passam a ter medo daqueles, que geralmente reagem à opressão, principalmente à opressão institucionalizada, ou seja, exercida pelo próprio Estado, de maneira violenta, com reivindicações e protestos. Já os pobres nutrem grande raiva pelos ricos, porque estes os impedem de exercer plenamente seus direitos fundamentais, dentre os quais, o de existirem e viverem dignamente, haja vista que são também constantemente explorados pelos mesmos.

A criação de espaços privados lança os pobres para as linhas fronteiriças da cidade, ou seja, a periferia, último reduto de uma possível existência, ainda que não tão digna. Estes espaços distantes não possuem a adequada infra-estrutura, o que o torna de uma ocupação e permanência sofrível. Some-se a isso a circunstância da ausência do poder público, em referidos espaços urbanos, o que vai aumentando ainda mais o nível de degradação do mesmo.

Esta degradação do espaço urbano acaba refletindo na personalidade humana, degradando-a também. Diante da perda de sua identidade, e da identidade com o meio no qual se vive, outro caminho não resta ao homem, dentro de uma visão da seleção natural, consectário do evolucionismo, do que se adaptar ao meio inóspito, no qual se está inserido, e uma das formas que o homem tem encontrado para se adaptar é o crime.

Portanto, quanto mais os espaços urbanos forem deixados de lado, quanto maior for o descaso das autoridades constituídas em atender às necessidades dos humildes e não fazer valer os princípios constitucionais protetivos da pessoa humana e de sua dignidade, maiores e mais violentas serão as reações desta população esquecida.


Referências bibliográficas

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª edição. São Paulo: Editora Edusp, 2001

CHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia integrada. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Crime e cidade – violência urbana e Escola de Chicago. Editora Lumen Juris, 2007.

VISENTINI, José William. Brasil – sociedade e espaço. 21ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1994.


Notas

[2] Fonte: dicionário Aurélio, versão digital.

[3] DALANK, Omar. Cidade: qual a definição? Resgatado do site <http://www.cefle.org.br/LE/C-urbanus/Urbanus-001.shtm> em 1 de fevereiro de 2007.

[4] Estas informações foram extraídas da enciclopédia eletrônica Wikipédia, versão em português, no site <http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade> resgatado em 20 de fevereiro de 2007, às 18h05.

[5] Idem.

[6] Numa definição mais técnica: Força centrípeta é a força que puxa o corpo para o centro da trajetória em um movimento curvilíneo ou circular.

[7] Seleção natural – mecanismo do processo evolutivo, descrito pelo biólogo Charles Darwin, por meio do qual espécies mais aptas sobrevivem enquanto as menos aptas tendem a desaparecer.


Autor

  • Rodrigo Mendes Delgado

    Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

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Informações sobre o texto

Trabalho de conclusão, na modalidade “artigo científico”, do curso de Pós-Graduação (Lato sensu) – Título de Especialista - em Ciências Criminais, módulo ‘Criminologia’, apresentado ao Instituto UNAMA e UVB. O presente artigo científico foi apresentado como pré-requisito para obtenção do Título de “Especialista” em Ciências Criminais, na pós-graduação ministrada pela UNAMA – Universidade do Amazonas, em parceria com o instituto LFG – Luiz Flávio Gomes de ensino.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Rodrigo Mendes. Espaços urbanos e criminalidade: um estudo do ambiente urbano como fator criminogênico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4770, 23 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35064. Acesso em: 28 mar. 2024.