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Direito à identidade genética frente ao direito de sigilo do doador em técnicas de reprodução humana assistida

Direito à identidade genética frente ao direito de sigilo do doador em técnicas de reprodução humana assistida

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O presente artigo faz uma análise acerca do conflito entre o direito à identidade genética (biológica), frente ao direito de anonimato do doador em técnica de reprodução humana assistida.

RESUMO

É latente no mundo contemporâneo a aparição de novas tecnologias e recursos com o fim de solucionar os impasses humanos, sejam de ordem jurídica, social, genética ou tecnológica.

Com tais avanços, surgem também os problemas sociais que refletirão no mundo jurídico. Neste cenário, o presente trabalho faz uma análise acerca do conflito entre o direito à identidade genética, isto é, biológica, frente ao direito de anonimato do doador do gameta a ser utilizado na técnica de reprodução.

Da mesma sorte, serão avaliados neste trabalho os reflexos que tais direitos representam na atual ordem jurídica brasileira, tais como no âmbito constitucional, Direito de Família e de Sucessões. Outro ponto importante que será destacado neste instrumento, serão as novas formas de concepção de família.

Palavras-chave: Identidade Biológica. Sigilo do doador. Reprodução Humana Assistida. Direito de Família. Dignidade da Pessoa Humana. Responsabilidade Civil.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Desde a Antiguidade o ser humano está em constante interação com os demais indivíduos que o rodeia, e, cada vez mais, criando novas formas de se relacionar. Formas essas que vem se diversificando consideravelmente nas últimas décadas, essencialmente no que diz respeito ao trabalho dos médicos e cientistas na busca de desenvolvimentos tecnológicos, que podem contribuir e muito para a promoção do bem estar social, moral e psicológico dos indivíduos. Sobretudo, busca-se também a realização pessoal de cada ser. Contudo, deve-se observar que essa busca, não pode de maneira alguma extrapolar os limites da Ética e do Direito existente na sociedade. E, é firmando-se nesse conceito, que se faz necessário uma mediania, entre avanços tecnológicos e direitos individuais e ou personalíssimos. Pensando nisso, fez-se necessário a existência de relacionamento entre Bioética e Direito.

Ao se relacionar Bioética e Direito, surge o que chamamos de Biodireito, e daí a responsabilidade e necessidade do jurista agir com eficiência e equidade ao propor soluções ante os problemas sociais oriundos dos avanços tecnológicos, o que, diga-se de passagem, tem se desenvolvido sobremaneira nos últimos anos.

O Biodireito surge com a finalidade de analisar de forma ampla as teorias, a legislação e a jurisprudência envolvendo o comportamento e conduta humana, primordialmente em se tratando dos avanços tecnológicos ligados à Medicina e à Biotecnologia.

Antes de falar sobre Biodireito, é importante falar um pouco acerca da bioética, uma vez que as técnicas de reprodução humana assistida estão ligadas, atreladas ao direito à vida, à saúde, à procriação.

A bioética é regida por três importantes princípios, os quais são; a autonomia, declaração de vontade livre e esclarecida, ou seja, o paciente deve ser informado de todos os procedimentos a serem por ele submetidos; beneficência, cuja preocupação é a saúde do paciente, avaliar prós e contras e assim decidir o que mais beneficia o paciente, e por fim, princípio da justiça, cuja finalidade é agir com isonomia, tratar com igualdade os iguais e com desigualdade os desiguais.

2. DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

As técnicas de Reprodução Humana Assistida (RHA) foram desenvolvidas com intuito de auxiliar os casais que por motivos adversos não conseguem conceber uma criança. O Doutor Carlos Petta do Centro de Reprodução Humana do Hospital Sírio-Libanês, explica todos os detalhes destes famosos tratamentos.

A inseminação artificial consiste em selecionar os melhores espermas e colocar dentro do útero da mulher na época de ovulação: "Para isso as trompas têm que estar propícias, ou seja, normais. Nesse caso geralmente são utilizados os gametas masculinos dos homens que possuem alterações não muito graves no espermograma e em mulheres que não têm causa específica para não engravidar", explica o médico. Este tratamento apenas tenta devolver para a pessoa a chance natural de reproduzir.

A Fertilização in vitro (FIV) é o tipo mais comum de Técnica de Reprodução Assistida (TRA). O óvulo é fertilizado fora do corpo da mulher, ou seja, o óvulon e o esperma são unidos no laboratório e formam o embrião pronto que é colocado no útero da mulher na esperança de uma gravidez bem sucedida. Neste caso, o óvulo pode ser da mesma mulher ou doado, assim como o esperma.

Já a ICSI - Injeção Introcitoplasmática esta é uma variação da FIV, empregada quando a situação é mais delicada, por exemplo, quando o homem tem pouquíssimos espermatozóides. Esta técnica faz uso de uma agulha, aproximadamente sete vezes mais fina do que o diâmetro de um fio de cabelo humano, que é injetada por um embriologista diretamente dentro do óvulo.

Nosso enfoque neste trabalho será em maior parte sobre o segundo e terceiro (FIV e ICSI) quando este pode ser realizado utilizando material genético de um doador anônimo para que seja possível a fertilização.

3. COLISÃO DE DIREITOS: IDENTIDADE GENÉTICA x ANONIMATO DO DOADOR

Atualmente, há duas técnicas utilizadas de Reprodução Humana Assistida, a homóloga que consiste na realização da fecundação com o material genético do próprio casal e a heteróloga, no qual o casal recorre a um banco de dados para conseguir a fertilização. Imagine a situação na qual o homem seja infértil e o casal recorra ao banco de sêmen para realizar a fecundação. No ato, o casal declara que jamais buscará saber quem é o doador daquele material. Todavia, a criança tem o direito de buscar tal informação, visto que representa direito personalíssimo.

Concomitantemente, o doador ao ceder material genético ao laboratório, é revestido de sigilo, onde o laboratório garante que não repassará seus dados de identificação para quem quer que seja, haja vista todos os reflexos jurídicos e sociais que tal conduta acarretaria.

Neste interim, cumpre destacar que notadamente vê-se em confronto o direito da criança em conhecer sua genealogia, seus pais biológicos, frente ao direito de anonimato do doador dos gametas. Vislumbra-se em questão, um duelo entre direitos.

Estabelece o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - que o direito à filiação é personalíssimo, indisponível e imprescritível, senão vejamos:

Art. 27 O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.

Observa-se que tal norma faz menção a direito personalíssimo, portanto, ninguém poderá intervir nas decisões acerca dele, senão o próprio titular do direito. Também é descrito como indisponível, sendo, portanto, irrenunciável, até mesmo pelo próprio titular. Isto quer dizer que o titular até tem a faculdade de não exercê-lo, porém, jamais pode declarar renúncia, quiçá terceiros. Por fim é imprescritível, quer dizer, não cabe prescrição ou decadência em decorrência do não exercício em determinado lapso temporal, podendo ser executado a qualquer momento.

Tal dispositivo funda-se no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, insculpido no art. 1º, inciso III, da Constituição da República de 1988. Ora, a família goza de especial proteção do Estado, principalmente as crianças e adolescentes. Psicologicamente, e para o convívio social, o papel dos pais é extremamente importante, até mesmo para a formação da criança e do jovem. Daí a importância de conhecimento de sua real filiação.

Assim dispõem os arts. 226 e 227 da Magna Carta:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Além do desejo de conhecer sua real origem, atendendo aos anseios psicológicos, é importante destacar outros aspectos relevantes para o futuro dessa criança, como cuidados com a saúde e observar os impedimentos matrimoniais.

A descoberta da identidade genética possibilitará acompanhamento médico, de prevenção de doenças hereditárias e tratamento precoce, bem como é importante para observar impedimentos matrimoniais defesos por nosso ordenamento, impedindo por exemplo, que essa criança case-se com seu próprio irmão.

Lado outro, cumpre salientar necessidade de proteção do direito do doador, visto tratar-se de confronto direto de direitos constitucionais.

A Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, na sessão IV, item 2 e 3, posteriormente ratificada pela resolução 2013/2013, sessão IV, item 4, estabelece que, obrigatoriamente, deverá ser mantido sob sigilo os dados do doador, sendo que este não conhecerá os receptores e vice-versa, sendo estes dados apenas de conhecimento da junta médica, conforme abaixo:

2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

Tal disposição é fundamental no processo de Reprodução Humana Assistida, pois, garante a continuidade das doações e realização pessoal dos receptores, de constituírem uma família. Do contrário, restaria prejudicada toda a cadeia, pois os reflexos jurídicos atribuídos ao reconhecimento de uma paternidade são gigantescos, como se verá adiante.

A supra resolução do CFM encontra abrigo constitucional, no art. 5º, inciso X, que dispõe acerca da inviolabilidade do direito de intimidade e privacidade.

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;


 

Tal circunstância refere-se ao íntimo da pessoa humana, sendo claro que ferir o anonimato da doação atinge a privacidade e intimidade do doador, vez que será identificado, e, portanto, tornar-se-á pública sua identidade.

Destarte, ante o exposto, há uma colisão direta entre direitos constitucionalmente preservados. Neste cenário, é imperioso destacar a discricionariedade do juízo julgador em cada caso, pois, é necessário julgar com razoabilidade, princípio este que permeia toda a ordem jurídica.

Além disso, pode ainda o doador, encontra-se no seio de sua família, constituída após a doação, e o fato de um filho biologicamente comprovado fora do casamento atual, poderia abalar a relação de toda a família do doador, mesmo que a prática tenha ocorrido via RHA, fruto de uma doação pretérita, não caracterizar uma traição, por exemplo, ou poderia por outro lado, despertar um sentimento altruísta nos demais membros dessa família, como o do doador.

É importante lembrar que estamos falando de seres humanos, dotados de sentimentos e emoções, sentimentos esses que podem ser manifestos das mais diversas formas. Até mesmo a criança poderia sofrer ou sentir incômodo com a situação. Há uma linha muito tênue entre dois polos, quais sejam, as consequências morais, sociais, psicológicas e emocionais de ambas as partes. Fica claro que apenas especula-se algumas possíveis reações, pois, em se tratando de um assunto tão complexo, só mesmo o caso concreto é que poderia dizer qual rumo tomar.

O fato é que, de uma forma ou de outra isso afetará a intimidade, privacidade e honra do doador, assim como afetará os direitos da criança advinda por essa forma de reprodução. Tratando-se de direito indisponível e personalíssimo da criança, é de se resguarda-lo, não em detrimento do outro, mas preservando ambos.

4. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AO DOADOR E PARTERNIDADE SOCIOAFETIVA

Nas relações comuns, se considerado o reconhecimento de paternidade biológica, o genitor deverá arcar com todas as obrigações impostas pelo atual ordenamento jurídico, principalmente no que se refere ao Direito de Família, em especial aos alimentos e herança.

O Judiciário tem decidido que a paternidade afetiva, nos dias atuais, tem se sobreposto à biológica, visto que este vínculo é essencial para formação da criança e do adolescente, portanto, se sobrepõe ao mero reconhecimento genético, consanguíneo entre ascendente e descendente. Tanto é que a jurisprudência também é maciça ao afirmar que a paternidade voluntária é irrenunciável, mesmo que futuramente se comprove que esta não o é biologicamente. Neste sentido:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. DISPUTA DA PATERNIDADE ENTRE O AUTOR E O PAI REGISTRAL. NEGATIVA DE SUBMISSÃO AO EXAME DE DNA. PREVALENCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.

PRELIMINAR. A impressão manifestada pelo magistrado na sentença, sobre a semelhança física entre autor – pretenso pai biológico – e o menor demandado, reforçada por outras provas, firmando convicção de procedência da ação, não constitui nulidade do julgado ao fundamento de se basear em “impressões pessoais”. Preliminar rejeitada.

MÉRITO. A recusa dos demandados – pai registral e criança investigada – em se submeter a exame de DNA, pleiteado pelo autor para ver declarada sua paternidade sobre o infante, pode constituir presunção da paternidade, mas não o suficiente para ensejar sua declaração se a manifesta relação sócio afetiva existente entre o pai registral e a criança está demonstrada na prova dos autos – estudo social e prova testemunhal –. Posse de estado de filho caracterizada, independente da presumida paternidade biológica. Recurso acolhido para ensejar a improcedência da ação. (TJRS. Apelação Cível n.º 70043391887. Sétima Câmara Cível. Relator Dr. André Luiz Planella Villarinho. Julgamento em 14/12/2011) (grifo nosso)


 

APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE FILHO. VÍCIO DE VONTADE NÃO COMPROVADO. IRREVOGABILIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONFIGURADA. 1. O reconhecimento voluntário de paternidade é irrevogável e irretratável, e não cede diante da inexistência de vínculo biológico, pois a revelação da origem genética, por si só, não basta para desconstituir o vínculo voluntariamente assumido. 2. A relação jurídica de filiação se construiu também a partir de laços afetivos e de solidariedade entre pessoas geneticamente estranhas que estabelecem vínculos que em tudo se equiparam àqueles existentes entre pais e filhos ligados por laços de sangue. Inteligência do art. 1.593 do Código Civil. 3. O reconhecimento voluntário de paternidade, com ou sem dúvida por parte do reconhecente, é irrevogável e irretratável (arts. 1609 e 1610 do Código Civil), somente podendo ser desconstituído mediante prova de que se deu mediante erro, dolo ou coação, vícios aptos a nulificar os atos jurídicos em geral. Considerando que a instrução não trouxe qualquer elemento que corroborasse a tese de erro, ou outro vício qualquer de vontade, prevalece a irrevogabilidade do reconhecimento voluntário de paternidade, que, no caso, corresponde a uma "adoção à brasileira". Precedentes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.” (Apelação Cível Nº 70040743338, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 12/05/2011) (grifo nosso)


 

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) entende que as relações socioafetivas são cercadas de amor e afeto, cuidados que são indispensáveis para o bem estar da criança. Isso porque em muitos casos, o(s) pai(is) biológico(s), apesar do lastro genético, não demonstrar amar, nem cuidar da criança. Assim, a garantia da filiação socioafetiva, visa assegurar os próprios interesses da criança, salvo o caso do próprio filho querer o pai biológico, conforme voto da Ministra Nancy Andrighi, no REsp 1274240/SC e REsp 1401719/MG.

Discussão relativa à possibilidade do vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o reconhecimento da paternidade biológica.

A maternidade/paternidade socioafetiva tem seu reconhecimento jurídico decorrente da relação jurídica de afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam uma criança por escolha própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filho.

A prevalência da paternidade/maternidade socioafetiva frente à biológica tem como principal fundamento o interesse do próprio menor, ou seja, visa garantir direitos aos filhos face às pretensões negatórias de paternidade, quando é inequívoco (i) o conhecimento da verdade biológica pelos pais que assim o declararam no registro de nascimento e (ii) a existência de uma relação de afeto, cuidado, assistência moral, patrimonial e respeito, construída ao longo dos anos.

Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão.

O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros.

A paternidade traz em seu bojo diversas responsabilidades, sejam de ordem moral ou patrimonial, devendo ser assegurados os direitos sucessórios decorrentes da comprovação do estado de filiação.

Todos os filhos são iguais, não sendo admitida qualquer distinção entre eles, sendo desinfluente a existência, ou não, de qualquer contribuição para a formação do patrimônio familiar.

(REsp 1274240/SC. Superior Tribunal de Justiça. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Data de Julgamento: 08/10/2013.)


 

Disciplina o Código Civil no art. 1.597, inciso V, que se presume concebido na constância do casamento, aquele concebido mesmo que através de técnica de reprodução assistida heteróloga, desde que haja prévia autorização do marido. Ou seja, se o marido concordou, é visível o desejo de ser pai e de dar amor, pois do contrário, o mesmo não teria anuído, corroborando a tese do STJ, seguida pelos Tribunais.

Sendo assim, a criança que cresce no seio de uma família afetiva, principalmente se oriunda de técnica de RHA, é facilmente percebível que a mesma goza de amor, carinho, afeto, e está cercada de pessoas que a desejam bem, e que fizeram de tudo para que ela viesse ao mundo.

Fato é que não há como se obrigar uma pessoa a amar outra pelo simples fato de haver entre elas o vínculo biológico. Para tanto, construir um ordenamento sobre o alicerce do liame biológico é simplesmente desprezar todo conjunto que representa a figura paterna.

(CLEMENTE. MOREIRA. 2004, pág. 33)

Insta salientar que tramita na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 5.682/2013, de autoria do Deputado Newton Cardoso (PMDB/MG), que visa alterar o disposto no art. 27 do ECA, para assegurar à criança a busca não só pelo reconhecimento da filiação genética, como também pela socioafetiva.

Na justificativa, o deputado assevera que:

A filiação deixa também de fundamentar-se na existência de vínculo estritamente genético para se amparar nas relações afetivas existentes entre pais e filhos. Hoje, grande parte da doutrina reconhece a existência do estado de filiação socioafetiva, o qual decorre da própria vontade de amar e de exercer a condição paternal. Em outras palavras, ser pai não é apenas possuir vínculo genético com o filho; significa estar presente no cotidiano, instruindo, amparando, dando carinho, protegendo, educando e preservando os interesses da criança.

Ora, se a família afetiva quis, veementemente, conceber a criança, inconteste é o dever de cuidar e de responsabilidade civil para com esta, eis que o doador não desejava conceber uma criança, ou por descuido, fez com a criança fosse gerada. Ao contrário, apenas contribuiu para a realização de um sonho que era impossível para outros. Além disso, ante o sigilo, ele nem ao menos sabia quem seria o receptor do gameta.

Nesse sentido:

Pensar no doador de gametas, no entanto, como réu na ação de investigação de paternidade parece absurdo. Isso porque é indiscutível que, ao doar seu material genético, não quis ou sequer cogitou que essa doação o fizesse pai.

(CLEMENTE. MOREIRA. 2004, pág. 32)

Dispõe o art. 1.694 e seguintes do código civil de 2002 que, é dever dos parentes prestar alimentos uns aos outros, conforme transcrito abaixo:

Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

De semelhante forma, os filhos são legítimos herdeiros dos genitores, conforme interpretação simples da lei civil:

Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.


 

Apesar dos dispositivos supra, trazidos a lume por amor ao debate, os mesmos não podem ser aplicados nos casos de reprodução humana assistida. Entendemos que a método de reprodução em epígrafe, exclue a responsabilidade civil do doador, porque este não almejava a concepção de filhos, não possuía intenção de concebe-los, mas tão somente ser solidário àqueles que de forma ou de outra não podem, contribuindo para a formação de uma sociedade livre, justa e solidária.

Do exposto, mesmo que permitido a quebra do sigilo do doador, e exercido o direito de busca da identidade genética, inviável se torna o reconhecimento da paternidade ou maternidade para fins de registro civil, e suas consequências no mundo jurídico, no tocante a alimentos, herança ou qualquer outra obrigação acessória ao reconhecimento de paternidade.

5. LIMITAÇÃO DE DIREITOS

Pois bem, conforme já explanado neste trabalho, os direitos em debate se chocam ao garantir à criança o direito de investigação de sua filiação e ao assegurar o anonimato do doador de gametas para fins de reprodução assistida.

O Judiciário, todavia, está sujeito a receber demandas desta espécie e, como consagrado no Código Processual, nos termos do art. 126, o juiz não poderá alegar, no exercício da jurisdição, lacuna ou obscuridade na lei, devendo recorrer à analogias, princípios e/ou costumes para solucionar a lide. O ordenamento jurídico brasileiro não se posicionou acerca do tema em questão, portanto, caberá ao Judiciário apresentar a solução nos casos concretos.

Defende Jackeline de Melo da Silva, que o direito ao sigilo do doador não é absoluto, e que, frente ao direito da criança, o mesmo deve ser quebrado para que a dignidade humana da criança seja alcançada:

Assim, com base na dignidade da pessoa humana, na proporcionalidade, na adequação, entre outros princípios que vão ponderar os interesses em conflito, pode-se concluir que, a não satisfação do direito da personalidade de conhecer a origem genética seria mais lesivo que a violação do sigilo dos doadores de gametas, já que, a identificação dos mesmos, não revelaria a paternidade/maternidade, apenas revelaria a genealogia do ser humano concebido por inseminação heteróloga.

Noutro giro, para Juliane Fernandes Queiroz, citada por Priscila Caroline Greuel, o direito ao anonimato deve ser preservado, em detrimento do direito de conhecimento da identidade biológica:

Queiroz discorre acerca do assunto: “A supressão do anonimato, ao revelar-se à criança a sua origem genética, instauraria uma situação ambivalente, com a descoberta de uma multiparentalidade, o que só geraria conflitos altamente prejudiciais à pessoa” (QUEIROZ, 2001, p. 126).

Para a referida autora, o conhecimento da sua identidade genética causaria à pessoa prejuízos pessoais, diante da presença, em tese, de dois vínculos, o biológico e o afetivo, por exemplo. A origem do indivíduo não se limita a sua identidade genética, mas no seu desenvolvimento afetivo e este deverá ser prevalente (QUEIROZ, 2001, p. 126).

A doutrinadora, ao analisar o confronto entre o anonimato do doador e o direito à identidade genética, frisa que “Não se pode, portanto, reconhecer o direito ao conhecimento dos genitores como fundamental ao ser humano, no caso em questão” (QUEIROZ, 2001, p. 126).

O direito, como instrumento de justiça, mormente nos casos de omissão na legislação, deve buscar o equilíbrio das relações e de garantias a todos os envolvidos. Neste diapasão, pode-se concluir que tais garantias não são absolutas, sobretudo quando postas em confronto.

No caso dos direitos em análise, o clássico ensinamento aristotélico é fundamental neste aspecto: mediania. A busca pelo meio termo é essencial para que ambas partes fiquem satisfeitas, e que os direitos sejam garantidos.

Para assegurarmos todos os direitos, sem ferirmos totalmente os preceitos constitucionais e infraconstitucionais, a criança só poderá investigar a filiação quando atingir a maioridade, isto porque, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, o menor será representado ou assistido em juízo por seu representante/assistente legal. Uma vez que os pais declaram que jamais irão investigar a real filiação, a busca pela identidade genética ainda na menoridade é inviável e impossível, vez que somente a criança pode exercê-lo.

Quanto ao doador, também é injusto deixá-lo sem nenhuma proteção, pois, permitir a ampla e irrestrita investigação pela real filiação, bem como conceder o reconhecimento jurídico da filiação, é colocar em xeque todo o processo de reprodução assistida, pois, inibirão novas doações, eis que torna instável a garantia de sigilo.

Assim, caso queira, o mesmo poderá manter o relacionamento com a criança. Caso contrário, não se pode obrigar ninguém a gostar de outra, nem a conviver com ela, isso até mesmo nos casos de paternidade/maternidade biológica, à luz do princípio da legalidade, insculpido no art. 5º, II, da CR/88. Assim, o doador poderia ingressar com medida judicial para coibir os incômodos e lesão à intimidade e vida privada, haja vista a insistência de aproximação de um indivíduo para com outro.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O assunto tratado nas linhas acima é muito polêmico. Ainda carente de regulamentação, vez que o confronto direto entre direitos é de notório conhecimento. É se reconhecer que ambos os direitos são fundamentais para manutenção da ordem e paz social, principalmente para manutenção dos processos de reprodução humana atuais.

Neste contexto, entendemos que apesar de ambos os lados possuírem fundamentos constitucionais, o direito de busca e conhecimento da origem genética da criança deve ser preservado, relativizando o anonimato do doador.

Entendemos que, quando o interesse de investigação de filiação brota da criança, e tão somente dela, a mesma tem assegurado o direito de busca, porém, será vedado pedido de reconhecimento de paternidade, e seus acessórios: registro civil, prestação de alimentos e herança.

Ante o exposto, entendemos ainda, que tal investigação só pode ocorrer quando atingida a maioridade civil da pessoa, bem como pode o doador, caso considere violada sua intimidade, honra ou sua vida privada, usar de meios legais para preservar a paz, harmonia, sossego e vida social, tanto do doador quanto de sua família.

Nesse interim, acreditamos que assim, asseguramos inicialmente o direito da criança previsto do art. 27 do ECA, fundado na dignidade da pessoa humana, em detrimento parcial do sigilo do doador, tendo a possibilidade de manter convívio social e amizade com o doador. Porém, após a identificação, e caso o doador, de fato, não queira conviver ou se relacionar com a criança, agora já adulta, o mesmo terá a possibilidade de seguir sua vida da maneira como estava, sem que ninguém o incomode.

Por fim, esperamos que o impasse seja solucionado com brevidade, para evitarmos transtornos maiores para qualquer dos envolvidos no processo de RHA, mantendo regular os procedimentos clínicos, convívio social, garantias jurídicas e os relacionamentos interpessoais.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 5.682/2013. Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=579023> Acesso em: 26/10/2014.

BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm> Acesso em 23/09/2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 23/09/2014.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 23/09/2014.

CLEMENTE, Ana Paula Pacheco. MOREIRA, Thais Pimenta. Bioética: um olhar transdisciplinar sobre os dilemas do mundo contemporâneo. Belo Horizonte. Bioconsulte, 2004.

GREUEL. Priscila Caroline. Doação de material genético: confronto entre o direito ao sigilo do doador, direito à identidade genética e eventual direito de filiação. Disponível em: <http://proxy.furb.br/ojs/index.php/juridica/article/view/1888/1253> Acesso em 13/09/2014.

PORTAL MÉDICO. Conselho Federal de Medicina, Resolução CFM n.º 1.358/1992. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1992/1358_1992.htm>. Acesso em 23/09/2014.

SILVA. Jackeline de Melo da; Inseminação Heteróloga: Direito a identidade genética x Direito ao Sigilo do doador. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=13192> Acesso em 13/09/2014.


 

VILA MULHER. Reprodução Assistida – Entenda quais são os tipos de tratamento. Disponível me: <http://www.vilamulher.com.br/familia/planejamento/reproducao-assistida-entenda-quais-sao-tipos-de-tratamentos-8-1-52-77.html>. Acesso em 13/09/2014.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Jurisprudências. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site/> Acesso em 23/09/2014.


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