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A audiência de custódia e a problemática policial

A audiência de custódia e a problemática policial

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Percebemos no atual momento um debate intenso acerca da audiência de custódia. Iremos procurar, nesse breve artigo, tentar desmistificar e demonstrar a necessidade da audiência buscando a proporcionalidade com a atividade policial.

Percebemos no atual momento um debate intenso acerca da audiência de custódia, com argumentos prós e contras. Iremos procurar, nesse breve artigo, trazer o conceito do que vem a ser esta modalidade de audiência, além de elencar os argumentos prós e contra, de forma desmistificar alguns dogmas do assunto. Fica assim organizado este trabalho: I- Conceito, II- Argumentos contrários à audiência de custódia, III- Argumentos favoráveis à audiência de custódia e IV- Conclusão.

I – CONCEITO

Para Evangelista (2015), a audiência de custódia encontra-se prevista em pactos e tratados internacionais em que o Brasil é signatário, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (este último mais conhecido como Pacto de San Jose da Costa Rica). Como sabemos, a assinatura deste Tratado se deu em 1992, no entanto, foi recentemente, 2015, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) adotou as medidas a fim de colocar a Audiência de Custódia em prática.

Podemos vê-la no artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que diz: “Toda pessoa presa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em um prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.

Araújo (2015) traz o que poderíamos considerar um conceito do que seria esta audiência: “instituto que visa proteger, resguardar os direitos inerentes à pessoa do preso, pois consiste na sua condução, sem demora, à presença de uma autoridade judicial”. Dessa forma, o objetivo da audiência de custódia é verificar a legalidade e a necessidade da prisão, tendo em vista que esta somente pode ser em caráter excepcional, tendo em vista que a pena somente deveria ser aplicada após trânsito em julgado de sentença penal condenatória (Art. 5, LVII da CF), e não logo após cometimento de um crime.

Evangelista (2015) traz ainda a informação de que o procedimento adotado visa o prazo de 24 horas para os juízes ouvirem as pessoas que foram presas em flagrante. Com isto, os juízes podem avaliar se é necessário manter a pessoa presa, se pode sair mediante fiança, se cabe uma medida punitiva de caráter educativo (como, por exemplo, tornozeleiras eletrônicas) ou até mesmo se deve ficar em liberdade, por não ter sua prisão justificada.

A audiência de custódia é presidida por autoridade que detém competências para controlar a legalidade da prisão. Portanto, sabe-se que o delegado lavra e o juiz controla seu funcionamento. Além disto, serão ouvidas também as manifestações de um Promotor de Justiça (Ministério Público), de um Defensor Público (Defensoria Pública) ou de seu Advogado.

É extremamente importante salientar, que o Pacto de San José da Costa Rica, é norma supralegal, e que podemos declarar inválida qualquer lei que vá contra o Pacto, através do controle de convencionalidade das normas. Dessa forma, seu cumprimento é compulsório e não discricionário.

O provimento prevê, ainda, que, durante a audiência, tanto o Ministério Público quanto a defesa poderão se manifestar a respeito da necessidade e pertinência da prisão, em nítido respeito ao princípio constitucional do contraditório. Tudo isso é necessário para que, ao final do ato, o juiz possa decidir, fundamentadamente, se relaxa a prisão manifestamente ilegal, se aplica algumas das medidas cautelares alternativas à segregação cautelar, ou, por fim, se converte o flagrante em preventiva.

Araújo (2015) fala que independentemente do teor do recente provimento, convém destaca que o Código de Processo Penal já determina, em seu artigo 306, que a prisão de um cidadão seja prontamente comunicada ao juiz, o que se dá, na prática atual, com o envio do auto de prisão em flagrante ao magistrado competente. Assim, anteriormente à implantação da audiência de custódia, a comunicação da prisão em flagrante era feita ao juiz em até 24 horas, contudo, não havia previsão legal de qualquer contato pessoal do preso com o magistrado.

Informa ainda que é evidente que uma situação é encaminhar um calhamaço de papel ao juiz, apenas contendo documentos juntados pela Autoridade Policial, para haja análise preliminar e conclusão se a manutenção da prisão é necessária, ou não. Outra situação, bem diferente, é apresentar o próprio preso ao magistrado, assim lhe permitindo narrar, sem receios, a sua versão defensiva preliminar, bem como quaisquer abusos e arbitrariedades eventualmente cometidas no momento da prisão. Até porque, como normalmente acontece na prática, abusos ou desvios de conduta praticados dificilmente são detalhados no corpo do auto de prisão em flagrante, ainda que pelo próprio preso em seu interrogatório policial.

O CNJ (2016) afirma que a audiência tem como finalidade a adoção, pelo magistrado, de uma medida judicial ou não judicial. Consiste a medida judicial em:

  1. Relaxamento da prisão ilegal;
  2. Concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança;
  3. Substituição da prisão em flagrante por medidas cautelares diversas;
  4. Conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva;

Por sua vez, constitui medida não judicial:

  1. Mediação Penal (extinção do procedimento);
  2. Medidas sociais ou assistenciais;

Podemos, assim, conceituar a audiência de custódia, como sendo instituto que visa proteger, resguardar os direitos inerentes à pessoa do preso, consistente na sua condução, sem demora, à presença de uma autoridade judicial para, de imediato, verificar a necessidade, adequação e legalidade da prisão, possibilitando aplicação de medidas judiciais ou não judiciais.

II – ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

            As maiores argumentações contrárias à audiência de custódia vem dos órgãos policiais, alguns membros do Ministério Público e de uma parcela inferior de magistrados.  Silva (2016) informa que em Mato Grosso, a Promotora de Justiça Lindinalva Rodrigues traçou publicamente seu posicionamento sobre a realização das audiências de custódia: é preciso mudanças e aperfeiçoamento na lei. Na rede social Facebook, a representante do Ministério Público de Mato Grosso avisou: “Tranquem suas casas cidadãos de bem, construam suas prisões, que a ordem do judiciário a princípio é liberar o máximo de acusados possível. Dá Medo”.

            Afirmou ainda que segundo a Promotora “A audiência de custódia é um avanço, mas são necessários muitos ajustes para que possa realmente trazer segurança. Do jeito que está sendo aplicada, pela experiência que eu tenho, está sendo assustador. Nós do Ministério Público estamos assustados. As pessoas que estão sendo liberadas, autores de furtos e roubos, com problemas com álcool e drogas, estão sendo devolvidas da mesma forma que foram presas, desestimulando o trabalho do Ministério Público e da Polícia. Do jeito que está, não dá segurança à sociedade, a lei proíbe a internação compulsória, mas eles não vão se tratar por contra própria”.

Ainda, sobre os casos de violência doméstica, a promotora demonstra ainda mais preocupação. “Eles estão liberando os autores no momento da violência, no momento que preso está mais agressivo”. Complementando o contexto problemático, segundo Lindinalva, é um “absurdo” as audiências de custódia serem conduzidas por quem não tem conhecimento sobre violência de gênero. Para aperfeiçoar o mecanismo, segundo a representante do MPE, é preciso um trabalho em conjunto. “As leis precisam de aperfeiçoamento. Nós temos que corrigir essas falhas para que a audiência de custódia sirva realmente à sociedade".

Quanto aos policiais, a maior crítica advém do fato, que, segundos alguns policiais, alegam que alguns magistrados não estariam analisando todos os aspectos que envolvem a audiência de custódia, qual seja, a análise da necessidade e legalidade da prisão provisória até sentença final, ficando adstritos, tão somente, no depoimento do preso quanto a possíveis torturas praticadas pelos policiais.

Sabemos que muitas vezes é necessário o uso progressivo da força como forma de contenção no momento da voz de prisão dada pelos policiais. Os magistrados, obviamente, devem repelir toda e qualquer forma de abuso e prática de tortura, pois este também é um dos aspectos e fundamentos da audiência. Porém, deve haver proporcionalidade na referida análise, levando em conta que a resistência à voz de prisão é quase certa, fazendo necessário o uso progressivo para obtenção de sucesso na abordagem.

Mas também, não se pode permitir que policiais abusem de sua autoridade para consecução de seu objetivo. Portanto, o magistrado deve levar em conta em sua análise esses fatores, de modo que não se pode, por exemplo, configurar abuso, uma simples marca nos braços frutos da contenção e, tampouco, se pode permitir a alegação do uso progressivo da força do preso que chega na audiência “quase desfigurado” tamanha violência praticada em seu desfavor.

Deve, portanto, o magistrado levar em conta estes fatores, analisando não somente eventuais abusos praticados, mas, além disso, a necessidade da prisão. Quanto a uma parcela dos magistrados insatisfeitos, Felix (2016) traz a informação que os juízes, através Associação Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES ajuizaram uma ação no Supremo Tribunal Federal para discutir a constitucionalidade da resolução n. 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça.

A ANAMAGES alega a inconstitucionalidade formal com o argumento que o CNJ ao editar uma resolução cometeu um vício de iniciativa, visto que, segundo a entidade as audiências de custódia estão relacionadas ao Direito Processual Penal, dessa forma, sua regulamentação deve ser feita por via de lei com iniciativa da União.

Um dos argumentos da ANAMAGES é de que as audiências de custódia são “extremamente retrógradas”. Felix (2016) contra-argumenta afirmando que é um absurdo o argumento apresentado, se existe algo que a audiência de custódia não possui é o caráter retrógrado, estamos falando de uma das maiores medidas já implantadas na politica criminal brasileira, um avanço nas garantias fundamentais do preso em flagrante, garantias essas inclusive que o Brasil ratificou em 1992 através do Pacto de San Jose da Costa Rica, porém não às colocou em prática.

Percebemos, portanto, que a maior argumentação policial contra a audiência de custódia, se dá pelo fato que muitos magistrados estão sancionando os policiais por qualquer argumentação levantada pelo infrator, que muitas vezes sem provas, acusa ter direitos violados.

III – ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A audiência de custódia tem como pressuposto inicial, corrigir um dos maiores absurdos praticados no Brasil atualmente, qual seja, a superlotação do sistema prisional com um número assustador de presos provisórios. Francesco (2015) informa que, segundo dados do CNJ de 2015, a população carcerária no Brasil é de, pasmem, 711.463 presos. Para ficar pior, Galli (2016) informa que 40% dos presos são provisórios e, para corroborar a total discrepância do sistema, hoje, o número de mandados de prisão em aberto, de acordo com o Banco Nacional de Mandados de Prisão é de 373.991 mil.

Ou seja, quase 400 mil autores de delitos com sentença penal condenatória transitada em julgado estão soltos, enquanto 40% de quase 800 mil presos são provisórios, que deveriam em regra estar soltos respondendo em liberdade até transitar em julgado, salvo as exceções previstas na legislação processual penal. Dessa forma, quem deveria estar preso, está solto, e quem deveria responder solto, está preso. É essa discrepância que a audiência de custódia procura corrigir.

As exceções, previstas no Código de Processo Penal, está assim disposta:

Art. 312: A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da     ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.

            Há, ainda, as hipóteses previstas na lei de prisão temporária, sendo esta, adstrita à fase inquisitorial (enquanto o Delegado formula o Inquérito Policial), restando prejudicada logo após o término do inquérito. Dessa forma, somente poderá excepcionalmente ficar preso, quem, respondendo em liberdade, prejudicar as investigações (ameaçando testemunhas, destruindo provas, por exemplo), ou ainda, quando houver receio iminente de fuga, sendo então a prisão, meio eficaz para garantir que o suposto autor do delito não fuja e, assim, reste inexitosa a aplicação da lei penal.

            Portanto, quando um policial leva um suposto autor de um delito a uma delegacia de polícia (suposto, pois, somente com sentença penal condenatória transitada em julgado, é que podemos afirmar que o sujeito é culpado), em regra este presta os depoimentos e deve ser posto em liberdade.

            Constitui uma violação ao sistema acusatório vigente no Brasil quando, ao ser encaminhado pelo policial à delegacia, o suposto autor fique preso. Somente como exceção isso deve ocorrer. Importante isso, pois, poucos conhecem ou parecem conhecer como funciona o sistema democrático acusatorial. Cada órgão tem sua função constitucional bem definida e delineada. Segundo dispositivos do art. 144 da CF percebemos as funções.

             Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (art. 144 §5º CF).

Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. (art.144 §4º CF).

Ora, perfazendo um caminho das devidas funções, percebemos que a função da polícia ostensiva é de policiamento prevenindo crimes. Quando um policial prende em flagrante delito alguém, sua função é encaminhar este até a delegacia de polícia. Acaba aqui a função da Polícia Administrativa (Polícia Militar, PRF, Guarda Municipal).

Neste momento começa a função da Polícia Judiciária (Policia Civil em regra, mas pode ser competência da Polícia Federal também), tendo como função institucional apuração do fato criminoso. Termina, em regra, com o Inquérito Policial formulado pelo Delegado de Polícia. Acaba aqui a função da Polícia Judiciária.

Agora começa a função do Ministério Público que, com base nas provas colhidas pela Polícia Judiciária (em regra, pois esta não é obrigatória à acusação, já que o inquérito é dispensável se o órgão acustorial já dispuser de provas suficientes), fará a Denúncia (peça processual que dará início ao Processo). Acolhida esta pelo Juiz, começa o Processo.

Agora, o suposto autor do delito constituído de seu advogado ou Defensor Público, buscará provar sua inocência (ou ao menos procurar desqualificar para um crime menor, ou o que for mais favorável ao réu dentro das possibilidades reais), enquanto o Ministério Público buscará formar a convicção do Juiz pela culpa do agente.

Somente com a sentença judicial transitada em julgado é que agora sim, poderemos dizer que houve o cometimento de um crime e que o autor é culpado, merecendo, portanto, a aplicação de uma pena.

Este é o modelo acusatório de um Estado Democrático. Querer antecipar a pena sem sequer ter havido processo, é uma violação total ao sistema Democrático, corroborando um modelo autoritário, que pugna pela presunção de culpabilidade.

Somente deve haver uma prisão provisória em casos excepcionalíssimos, caso contrário, estaremos buscando vingança, e não justiça, e, como sabemos, o Direito jamais pode buscar vingança, mas apenas punir devidamente por fatos criminosos que restem comprovados, através de um processo cujos direitos e garantias sejam plenamente observados.

Vemos então, que a audiência de custódia, tem como fundamento alguns princípios constitucionais, tais como: a Presunção de Inocência (ou não-culpabilidade), onde, em regra, deve o suposto autor responder em liberdade, sendo a prisão uma exceção, garantindo, dessa forma, que na audiência de custódia, somente se estiver dentro das exceções previstas na legislação processual penal, o suposto autor poderá ficar preso antes de sentença penal condenatória transitada em julgado.

Ainda o princípio da verdade real, cuja definição trata-se de essência na função punitiva do Estado que se traduz na busca pelo que verdadeiramente ocorreu, impondo dever ao magistrado de não se limitar ao conjunto dos “papéis” que formam os autos de um processo.

Outro princípio é o da garantia da ampla defesa, previsto no artigo 5º, LV da CF. através deste princípio, ver-se conferir à defesa a prerrogativa de produzir todas as provas necessárias para o exercício do seu direito. Inclusive, a ampla defesa se relaciona com o princípio da verdade real, uma vez que se assegura ao preso o direito de esclarecer o que realmente ocorreu, ou seja, a verdade dos fatos de modo a beneficiar a defesa.

Araújo (2015) informa ainda que a realização de audiência de custódia imediatamente após a prisão em flagrante é iniciativa que encontra respaldo em normas internacionais, sendo mecanismo de prevenção e de combate à tortura, visando também à humanização e à garantia de efetivo controle judicial das prisões provisórias. Dessa forma, alguns entendem, que a principal e mais elementar finalidade da implementação da audiência de custódia no Brasil é ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

Outra finalidade da audiência de custódia se relaciona com a prevenção da tortura policial, assegurando, pois, a efetivação do direito à integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade. Nessa esteira, prevê o art. 5.2. Da Convenção Americana de Direitos Humanos que “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desunamos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratado com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.

Observa Araújo (2015) que nessa oportunidade, saliente-se que, obviamente, não se pode esperar que a audiência de custódia, sozinha, elimine por completo a tortura policial, uma prática que não apenas atravessou todo o período ditatorial, mas continua presente na democracia pós-Constituição Federal de 1988. Malgrado os esforços do constituinte originário em estancar as feridas da referida prática, há aprovação de parte considerável da opinião pública e de agentes de segurança do Estado em defender a tortura policial. É uma subdivisão do velho ditado popular “bandido bom é bandido morto”.

Entretanto, a implantação da audiência de custódia tem como uma das suas finalidades, sem qualquer dúvida, reduzir a tortura policial num dos momentos mais cruciais para a integridade física do cidadão recluso, que corresponde às primeiras horas após a prisão, quando o detido fica absolutamente fora de custódia diante de eventual violência e abusos policiais.

Assim, constitui um dos fundamentos da audiência de custódia, buscar ajustar o modelo policial no Brasil aos ditames de um policiamento democrático, de acordo com a Constituição Federal, procurando, “passar uma borracha” no modelo policial herdado da Ditadura Militar, opressora e violenta, para uma Polícia que busca assegurar a boa convivência pacífica em sociedade, prendendo quem cometer crimes, nos limites da legalidade.

Ainda, assegurar que somente ficará preso, provisoriamente, quem estiver estritamente enquadrado nas hipóteses previstas na lei processual penal, para assim, cumprir os princípios constitucionais da presunção de inocência (ou não-culpabilidade), sendo a liberdade a regra, constituindo exceção a prisão provisória, e o cumprimento de pena somente após sentença condenatória transitada em julgado, salvo as hipóteses previstas no CPP.

Por fim, garantir que, autores de delitos com sentença penal transitada em julgado que cumpram suas penas devidamente, pois o número absurdo de presos provisórios (40% do total de presos no Brasil) compromete o sistema prisional. É incabível que 373.991 mil pessoas com sentença transitada em julgado estejam impunes (soltos), enquanto quase metade dos presos deveria estar respondendo em liberdade, provocando uma explosão e contradição no sistema. A audiência de custódia é uma necessidade para um país que pretenda ser verdadeiramente democrático.

IV – CONCLUSÃO

Um dos argumentos sobre a audiência de custódia é a alegação policial que seu trabalho resta infrutífero. Na verdade, estamos acostumados a ter uma legislação com base constitucional num sentido, mas a realidade sempre foi diversa. Por mais que a prisão provisória, pela legislação, deveria ser uma exceção, na prática sempre foi a regra. É absurdo o número de prisões provisórias existentes em nosso país.

Estamos acostumados a ver determinada prisão em flagrante converter-se em prisão provisória, o que não deveria acontecer em regra, mas esta mudança de paradigma, para adequar a prisão aos preceitos constitucionais e convencionais (Tratados Internacionais que versam sobre Direitos Humanos), está gerando este conflito inicial que já era de se esperar, frente a uma mudança total de paradigma.

Basta lembrarmos que, por exemplo, a Polícia Federal, criada no período da ditadura com a finalidade de perseguir adversários políticos, hoje, segundo a lei 10.446/02, tem como uma de suas funções, a intervenção quando houver violação a Direitos Humanos, ou seja, de uma policia torturadora, a uma policia protetora de direitos fundamentais.

Da mesma forma, a grade de formação policial da Polícia Militar de quase todos os Estados, passaram por uma adequação há alguns anos, exigindo em muitos Estados o ensino superior para soldado além de formação em disciplinas como direito constitucional, direitos humanos e polícia comunitária no decorrer do curso de formação, tudo para aos poucos mudar a forma de policiamento herdada da ditadura: uma polícia violadora de Direitos Humanos a uma polícia voltada para proteção de tais direitos e liberdades públicas.

O CNJ calcula ter evitado ao menos 15 mil ingressos de presos no já tão conturbado e crítico sistema carcerário brasileiro, isso sem falar em uma economia de R$40 milhões aos cofres do Estado, certamente em época de contenção de gastos públicos essa economia trouxe sim uma grande vantagem a uma das partes, que é o próprio Estado. A audiência também serviu para dar voz ao preso quanto ao registro de casos de tortura e abuso policial, pois com uma rápida apresentação ao juiz às agressões ficam mais nítidas e são confirmadas facilmente.

Porém, os magistrados não podem deixar a proporcionalidade de lado, pois, há que se verificar que resistência à prisão quase sempre ocorre, o que gera o uso progressivo da força como meio para contenção do infrator, de modo que os abusos praticados devem ser devidamente punidos, mas a atividade policial também deve ser levada em conta, para não acabar configurando abuso qualquer alegação sem provas.

Para Felix (2016), se faz necessária a reflexão do correto papel do magistrado dentro de um Estado Democrático de Direito, possuímos uma Constituição construída para proteger direitos e garantias fundamentais, nosso Estado é fundado na proteção da dignidade da pessoa humana, pelo menos em tese. Mas qual dignidade existe para uma pessoa que é presa, torturada pela polícia, em muitos casos não possui ao menos condições para pagar os honorários de um advogado e estará na presença do juiz somente após 180 dias (sendo otimista quanto à morosidade do judiciário)?

Qual a função de um magistrado que simplesmente com o famigerado fundamento de garantir a ordem pública converte uma prisão em flagrante em prisão preventiva sem ao menos analisar o caso exposto a sua frente?

Podemos concluir que tal medida tem a finalidade de evitar prisões ilegais, feitas de maneira arbitrária ou desnecessária e, além de desafogar o atual sistema carcerário, produz uma maneira de dignificar a pessoa humana, dando-a chances de ter sua prisão revista.

Por fim, nas 956 audiências de 2015, 34% dos presos em flagrante tiveram a prisão convertida em preventiva. Ou seja, pouco mais de um terço ingressou no sistema carcerário do Estado. Outros 49% foram liberados provisoriamente com aplicação de medida cautelar, 12% conseguiram liberdade provisória plena e 5% tiveram o relaxamento da prisão (quando o fato não configura crime).

REFERÊNCIAS

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EVANGELISTA, Israel. Você sabe o que é – e como funciona – a Audiência de Custódia? Disponível em: http://jurisrael.jusbrasil.com.br/artigos/218131081/voce-sabe-o-que-e-e-como-funciona-a-audiencia-de-custodia. 2015. Acesso Julho 2016.

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FELIX, Leonardo Martins. Por que os magistrados estão descontentes com a audiência de custódia? Disponível em: http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/por-que-os-magistrados-estao-descontentes-com-a-audiencia-de-custodia/. 2016. Acesso Julho 2016.

GALLI, Marcelo. 40% dos presos no Brasil são provisórios, aponta levantamento oficial. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-abr-26/40-presos-brasileiros-sao-provisorios-aponta-levantamento. 2016. Acesso Julho 2016.

SILVA, Arthur dos Santos. Promotora critica audiências de custódia e avisa: “tranquem suas casas cidadãos de bem”. Disponível em: http://www.olhardireto.com.br/juridico/noticias/exibir.asp?id=31097. 2016. Acesso Julho 2016.


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