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O que Romeu e Julieta têm a ver com a previdência social?

Uma análise econômica da previdência social: verdades e mentiras

O que Romeu e Julieta têm a ver com a previdência social? Uma análise econômica da previdência social: verdades e mentiras

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O presente estudo tem como objetivo realizar uma análise econômica da previdência social brasileira a fim de verificar sua sustentabilidade.

Extremamente polêmico é analisar a previdência social brasileira, ainda mais quanto falamos de equilíbrio financeiro e atuarial. Os autores não parecem chegar a um consenso, ora apontando uma desproporção na relação gasto versus receita, ora visualizando uma situação de equilíbrio. Sobre a primeira concepção, ver Fábio Giambiagi, in Reforma da Previdência, Rio: Campus, 2007, e, em sentido diverso, Denise Lobato Gentil, in A Falsa Crise do Sistema de Seguridade Social no Brasil, Tese (Doutorado em Economia) - UFRJ, 2007. Diante desta celeuma, o presente estudo tem como objetivo realizar uma análise econômica da previdência social brasileira a fim de verificar sua sustentabilidade. 

Análise Histórica - Os Modelos Bismarckiano e Beveridgiano

A previdência social origina-se das lutas por melhores condições de trabalho, as quais resultaram em diferentes sistemas protetivos, de acordo com as situações de cada país envolvido. Alguns limitaram a proteção ao necessário à sobrevivência, enquanto outros foram além, buscando programar substituição relacionada à remuneração. Tais variações colocam em destaque as diferentes estruturas dos sistemas de proteção. Basicamente, todos buscavam uma previdência social como garantia, ao menos, do mínimo vital, de modo viável financeiramente.[1]

Percebe-se em todos os modelos a implementação das ideias keynesianas de intervenção estatal na economia, as quais nortearam, especialmente, o New Deal norte-americano, o Plano Beveridge e as Cartas do Atlântico, que externaram a necessidade da ação estatal concreta como garantidora do bem-estar social.

No modelo bismarckiano, mais primitivo, a proteção não era universal, geralmente limitada aos trabalhadores, rigoroso financiamento por meio de contribuições sociais dos interessados (trabalhadores e empresas), além de restringir sua ação a determinadas necessidades sociais. O modelo beveridgiano tem concepção mais ampla, pois visa a universalidade de atendimento, atendendo a tudo e a todos, com financiamento por meio de impostos, arrecadados de toda a sociedade.

Conforme brilhantemente discorre Fábio Zambitte Ibrahim, no Pós-Guerra, surge uma tendência universalizadora do seguro social, com base nas premissas teóricas do Plano Beveridge. As maiores taxas de natalidade e crescimento econômico geraram a euforia protetora, com a consequente universalização da clientela, sem maiores distinções em razão das atividades econômicas. O financiamento distancia-se da técnica de capitalização, com a repartição simples, trazendo evidente enfraquecimento do aspecto atuarial do sistema protetivo.[2] No sistema beveridgiano, as prestações pagas pelo sistema são desvinculadas da real remuneração do trabalhador, ao contrário do sistema bismarckiano, no qual a prestação é relacionada à cotização.

Estes são, em apertada síntese, os pressupostos históricos que permitiram a formação teórica plena do Welfare State, que se iniciara com Bismarck e tem íntima ligação com a previdência social. Todavia, em razão do excessivo crescimento desordenado dos sistemas protetivos, é com perplexidade que o mundo assiste a um retorno aos modelos bismarckianos de seguro social, haja vista seu maior comprometimento com o equilíbrio financeiro e atuarial.

Ou seja, com a crise do Welfare State,[3] o que se constata, em âmbito mundial, é uma mescla dos sistemas bismarckiano e beveridgiano, com a adoção recíproca de características até então estranhas, como a securitização do esquema beveridgiano,[4] ou seja, a fixação de benefícios calculados também em relação às contribuições individuais. Tem-se o exemplo da Suécia, que migrou de um sistema original beveridgiano para um modelo híbrido, adotando um segundo pilar estatal compulsório, de repartição e relacionado às remunerações, reduzindo a importância do primeiro pilar, que se limita desde então à garantia do mínimo existencial.[5]

Isto é de especial importância para que se possa entender o motivo de alguns países adotarem um sistema complementar de previdência compulsório - são, em verdade, Estados que adotavam o esquema beveridgiano de proteção social, mas acabaram por migrar, em parte, para o sistema bismarckiano (que seria o 2ª pilar), mantendo o 1ª pilar como valor mínimo assegurado a todos. Até mesmo o Reino Unido, berço da concepção beveridgiana de proteção social, fez tal mutação, sendo, todavia, dada maior ênfase ao sistema privado de previdência complementar.[6]

Países com antiga tradição de seguro social, como o Brasil, encontram, como era de se esperar, grande dificuldade em migrar para um sistema capitalizado e individual de previdência, especialmente devido ao encargo das gerações passadas. Aguardamos esperançosos o dia em que o Brasil irá aplicar ao menos algumas das teorias tão conhecidas pelo Banco Mundial. Infelizmente os diversos textos no BIRD não cabem neste curto texto, são diversas obras de variados autores, em geral defendendo uma participação mínima do Estado. Para uma ideia geral, ver Pension Reform (organizado por Robert Holzmann e Edward Palmer. Washington: The World Bank, 2006).

Pela experiência internacional, percebe-se que reformas bem-sucedidas em contenção de gastos não se originam a partir de cópias de modelos adotados alhures, mas sim dentro das possibilidades políticas existentes, de acordo com o consenso formado. Este consenso pode ser alcançado por meio de uma comissão de reforma, como feito nos EUA (1983), Alemanha (1992) e Suécia (1990), entre outros - permitindo-se o debate técnico e não meramente político da reforma.[7] Esta é uma das questões usualmente mal abordadas nos debates pátrios sobre previdência social, pois qualquer formação previdenciária duradoura carece de um consenso formado democraticamente, de modo a legitimá-lo.


Destinação exclusiva das Contribuições Previdenciárias

Como já se disse, nas contribuições sociais, espécie de contribuições especiais, podemos identificar uma subespécie que seriam as contribuições previdenciárias (art. 195, 1, "a" e I I, da C RFB/88), pois destinadas somente ao pagamento de benefícios do RGPS.

Cabe observar que a destinação ao RGPS é exclusiva, visto que a Constituição afirma ser vedada:

a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, 1, "a", e li para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 (art. 1 67, XI, da C RFB/88) .

 Sendo assim, tem-se entre as contribuições sociais uma espécie com destinação vinculada a um componente da seguridade social, no caso, a previdência social. As demais contribuições sociais (art. 195, 1, "b" e "c", I II, da C RFB/88) podem ser utilizadas em qualquer segmento da seguridade, inclusive na própria previdência social.

Concluindo, todas as contribuições sociais têm sua arrecadação ligada à seguridade social, porém somente as previdenciárias são vinculadas a um único segmento da seguridade, que é a previdência social.

Mesmo assim, o STF, ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 2.556 e 2.568, ajuizadas respectivamente pela CNI e pelo PSL contra a Lei Complementar nº 110/01, a qual instituiu acréscimo de contribuição ao FGTS a título de contribuição social, entendeu liminarmente que tais exações enquadram-se no conceito de contribuições sociais gerais, as quais não são necessariamente vinculadas à seguridade social, devendo também atender ao Princípio da Anterioridade (art. 150, III, b, da CRFB/88).[8]

No entendimento exarado pela Suprema Corte, as contribuições sociais podem subdividir-se em gerais ou da seguridade social, sendo as últimas previstas no art. 195, incluindo as criadas a partir da competência residual da União (art. 195, § 4º, da CRFB/88). Já as gerais, instituídas a partir da previsão genérica do art. 149 da Constituição, podem ser utilizadas para custeio de qualquer ação estatal, desde que compatível com sua natureza social, conceito evidentemente indeterminado.

Como a delimitação deste conceito certamente é de complexa realização, o atual entendimento do Pretório Excelso acaba por dar verdadeira carta branca à União, possibilitando a criação de novas exações em qualquer situação, desde que algo próxima do social.

Hayek condena a palavra social como signo vazio de sentido nos tempos moderno (weasel word), os defensores do Welfare State advogam em nome de uma solidariedade compulsória, uma contradição em termos, afinal, para ser solidariedade ela tem que ser voluntária. Nas palavras do citado autor: “Somente quando somos responsáveis pelos nossos próprios interesses e livres para sacrificá-los é que nossa decisão possui valor moral”.

De qualquer forma, pode-se resumir a questão da destinação das contribuições sociais da seguinte forma: em regra, todas devem ser destinadas, exclusivamente para a seguridade social, mas de acordo com o STF, esta reserva de recursos existe somente para as contribuições sociais da seguridade social, previstas no art. 195 da Constituição, sendo que as novas exações, criadas a partir do art. 149 da Constituição, podem ser utilizadas em qualquer segmento social, ainda que fora dos limites da seguridade.

Importante lembrar também que as contribuições previdenciárias ficam de fora da desvinculação de receitas da União - DRU, a qual permite a utilização de 20% da receita das contribuições sociais em outras ações. A exceção, ainda que criada por emenda constitucional, não tem o condão de excluir a aplicabilidade do art. 167, XI, da Constituição.


A previdência social brasileira e o esquema de pirâmide

A Doutora Denise Gentil propõe com base na análise do fluxo de caixa do INSS que parte dos recursos da Seguridade Social foram desvinculados para além dos 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União). Em seu entendimento há um superávit sendo fundamental para a sustentabilidade do sistema previdenciário o crescimento econômico.[9]

Olha-se só para o tamanho do bolo e para o número de fatias, mas se esquece do número de convidados. Não é assim que se dá uma festa e muito menos se faz políticas públicas.

Ainda que se assuma que há uma desvinculação para além do limite imposto, a questão é que o INSS gastava com aposentadoria e pensões 2,5% do PIB em 1988, quando foi sancionada a nova Constituição. Vinte anos depois já gastava quase 8% do PIB. A velocidade do crescimento da população de idosos no Brasil deve acelerar bastante nos próximos anos, agravando muito o problema.[10]

Segundo o IBGE, existem atualmente quase 12 milhões de idosos no país, pessoas com 65 anos ou mais. Em 2030, esse número deve chegar a quase 25 milhões de pessoas, mais que o dobro.[11]

O problema óbvio desse esquema de pirâmide (Esquema Ponzi) é que ele cresce em progressão geométrica — ou seja, se são necessárias, em tese, seis pessoas para se pagar a quantia acertada para uma pessoa, serão necessárias trinta e seis pessoas para se pagar a quantia acertada para o grupo de seis, e assim por diante.

No sistema previdenciário, um grupo original de aposentados passou a receber uma aposentadoria sem haver pago qualquer quantia[12] à custa do grupo de trabalhadores ativos da época; e esses trabalhadores ativos da época, ao se aposentarem, esperam que os trabalhadores ativos posteriores paguem suas aposentadorias; e esse último grupo te de ser muito grande para poder suportar esse pagamento.

Ora, sem que haja uma progressão geométrica no número de trabalhadores entre uma geração e outra, esse sistema invariavelmente quebrará.  E efetivamente não há como esse sistema não quebrar, por dois motivos: (i) a geração seguinte em regra não cresce suficientemente e (ii) mesmo que crescesse, essa geração precisaria ocupar empregos em uma taxa próxima dos 100%, e a economia de um país pode não crescer o suficiente para absorver toda a mão-de-obra disponível.

Ainda sobre a questão da geração de empregos, o IPEA[13] afirma que, de acordo com os estudos do IBGE, a população brasileira chegará ao seu pico populacional em 2030, com cerca de 206 milhões de habitantes.  A partir dessa data, o país tenderá a possuir uma população estável de cerca de 200 milhões de pessoas, e a sociedade envelhecerá como um todo.  De acordo com essas projeções, em 2030 estima-se que haverá 1,1 trabalhadores economicamente ativos para cada aposentado. 

Ou seja, praticamente haverá um trabalhador por aposentado.  Isso significa, de fato, que uma pessoa terá de trabalhar por duas, o que inviabiliza qualquer sistema previdenciário, concebido originalmente para funcionar em um sistema de dois trabalhadores por aposentado.

Cabe ressaltar que algumas vozes[14] argumentam que o desvio de recursos é motivado pelo lobby de grandes corporações do setor financeiro que lucram com os juros da dívida pública e que é urgente uma auditoria.

O problema é bem maior e devemos deixar o misticismo de lado. Em “O ajuste inevitável,”[15] Mansueto Almeida Jr., Marcos Lisboa e Samuel Pessôa tentam quantificar, pela primeira vez, o aumento do gasto público já contratado para os próximos 15 anos. Até 2030 o gasto anual do Estado brasileiro terá subido 300 bilhões de reais, um aumento de 20 bilhões de reais por ano. Para neutralizar este aumento de despesas, será preciso criar um imposto equivalente a uma nova CPMF a cada mandato presidencial de quatro anos (entre 2015 e 2030). Para ficar claro: não se trata de renovar a CPMF a cada quatro anos, e sim de cobrar uma nova CPMF em cima da anterior, sucessivamente, a cada novo governo.

Este aumento de 300 bilhões é a soma apenas dos aumentos nos gastos com previdência, educação e saúde já contratados por conta da legislação vigente.

Em outras palavras, se a cultura de “taxar e gastar” não for mudada, daqui a 15 anos o Estado brasileiro estará demandando da sociedade 500 bilhões de reais a mais — por ano — para honrar com suas obrigações.

Por todo o exposto, o atual sistema brasileiro não é sustentável por mais que se promova o crescimento econômico, a uma pelos riscos de ciclos econômicos que colocam em cheque a aceleração do crescimento, a duas porque com o consequente envelhecimento da população e diminuição da população ativa se torna inevitável à falência.


A Teoria da Janela Quebrada                                

No entendimento da Doutora os recursos da Previdência são muito mais que uma transferência de renda vez que retornam ao mercado por meio de gastos incrementando assim a economia.

Na verdade, esta falácia é bem antiga, e já tinha sido refutada por Bastiat em seu exemplo da janela quebrada. Algum vândalo joga uma pedra que estilhaça a janela de uma loja. Em seguida, algumas pessoas tentam consolar o dono da loja alegando que, ao menos, ele estará gerando emprego ao consertar a janela. Afinal, se janelas nunca fossem quebradas, de que iriam viver os reparadores de janelas?

Esta linha de raciocínio ignora aquilo que não se vê de imediato. Sim, o conserto da janela iria propiciar um ganho para o vidraceiro. Mas o que seria feito desse dinheiro gasto caso a janela não tivesse sido quebrada? Eis a pergunta que nem todos fazem, porém crucial para o entendimento da economia. Trata-se do custo de oportunidade.

Existem várias alternativas de uso que o dono da loja poderia dar ao dinheiro. Ele poderia investi-lo para aumentar a produção, poderia poupá-lo ou poderia gastar com qualquer outra coisa. Supondo que ele gastasse a mesma quantia na compra de um terno, o alfaiate teria sido beneficiado, mas agora que o dinheiro foi usado para consertar a janela, esse terno deixou de ser vendido.

Isso é aquilo que não se vê, ao menos de imediato. O alfaiate do exemplo é ignorado, é o homem esquecido na análise superficial da coisa. Parece ridículo de tão óbvio este caso, mas o leitor mais leigo ficaria chocado com os demais casos, que são apenas variações dessa mesma falácia.

O grande economista Milton Friedman, da Escola Econômica de Chicago, em grande ensaio[16], prova que o sistema previdenciário redistribui dinheiro dos pobres para os ricos.  De fato, pessoas das camadas mais pobres da sociedade tendem, na média, a viver menos que os mais ricos, pois em regra vivem em condições mais insalubres e têm menos acesso a medicamentos, serviços de saúde e alimentos.  Como visto, pobres e ricos proporcionalmente pagam a mesma coisa, mas como o dinheiro pago não retorna diretamente para o pagador, e sim vai para o sistema, só retornando caso o pagador envelheça ou tenha algum tipo de sinistro, em média pessoas mais ricas tendem a se beneficiar da previdência por mais tempo que pessoas pobres.

Além disso, servidores públicos, que já recebem — em virtude de sindicatos e grupos de pressão — salários mais altos por menos trabalho, recebem aposentadoria muito superior à do setor privado contribuindo muito menos para o sistema.


Os direitos de primeira geração e a crise do Welfare State

Em sua clássica obra A Lei, Frédéric Bastiat, ainda no Século XIX, descrevera de maneira quase profética um dos grandes males de nosso tempo. Segundo Bastiat, a lei deveria ter como única função a “proteção das pessoas, de todas as liberdades e de todas as propriedades” [17], sob pena de, ao exceder esses limites, promover a espoliação da propriedade alheia.

Assim, Bastiat defende que uma lei que excede seus limites deve ser imediatamente revogada, pois, caso contrário, a consequência seria a contaminação do sistema jurídico:

Se essa lei — que deve ser um caso isolado — não for revogada imediatamente, ela se difundirá, multiplicará e se tornará sistemática.

Sem dúvida, aquele que se beneficia com essa lei gritará alto e forte. Invocará os direitos adquiridos. Dirá que o estado deve proteger e encorajar sua indústria particular e alegará que é importante que o estado o enriqueça, porque, sendo rico, gastará mais e poderá pagar maiores salários ao trabalhador pobre.[18]

O trecho acima nada mais é do que uma perfeita descrição de muitas discussões jurídicas da atualidade. Confundem-se direitos, benefícios e serviços e defendem-se privilégios com base no argumento do “direito adquirido”.

Em meio a discussões dessa natureza, surgiu uma ficção jurídica das mais abjetas: o princípio “constitucional” da vedação ao retrocesso. É mais um fruto do pan-principiologismo, conceito cunhado por Lênio Streck para retratar o péssimo costume nacional de criar “princípios despidos de normatividade” [19] - tais como o princípio da confiança no magistrado da causa e o princípio da felicidade (!).

Embora o princípio “constitucional” da vedação ao retrocesso não tenha nenhum respaldo na Constituição, é estudado e levado a sério, tanto pela academia quanto por operadores do Direito. Segundo Ingo Sarlet, esse “princípio” é “a proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)” [20].

O Direito Brasileiro consagrou na Constituição Federal de 1988 um extenso rol de direitos fundamentais. Entre eles, estão os chamados direitos fundamentais de primeira geração, que, em suma, são “postulados de abstenção dos governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal de cada indivíduo” [21], como, por exemplo, o direito a vida, o direito de propriedade e o direito de livre manifestação do pensamento. Portanto, a proteção aos direitos fundamentais de primeira geração cumpre justamente a função que Bastiat atribui à lei: a proteção das pessoas, das liberdades e das propriedades.

No entanto, estão inseridos também no rol dos direitos fundamentais da Constituição brasileira os direitos de segunda geração, que, ao invés de estabelecerem uma abstenção estatal, são “prestações positivas por parte do Estado” [22]. São os chamados direitos sociais, nos quais se incluem os direitos a “assistência social, saúde, educação, trabalho, lazer, etc.” [23].

A Constituição Federal prevê ainda os direitos fundamentais de terceira geração, também conhecidos como coletivos e difusos, que são o “direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural”.[24]

Curioso notar que, na produção acadêmica brasileira, em geral, pouco se contesta o status dos direitos de segunda e terceira geração como direitos fundamentais e muitos menos como direitos propriamente ditos, pois, no senso comum, há a ideia de que quanto mais direitos, melhor.

Isso se deve ao fato de que as faculdades de Direito brasileiras são em sua maioria verdadeiras fábricas de estatólatras e burocratas, que são por anos ensinados que se algo está escrito em um papel com um carimbo de algum órgão público é porque é verdadeiro.

Do ponto de vista teórico, no entanto, como é possível defender a existência de um direito “à paz”? No que consiste o direito “ao lazer”? Significa, por exemplo, que o Poder Público deve financiar desfiles de carnaval? A verdade é que nem mesmo a chancela constitucional é capaz de transformar em direito aquilo que na verdade não o é. Ou, como diria Julieta: "Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume".[25]

O fornecimento de transporte coletivo não deixa de ser um serviço sob o nome de “direito ao transporte”, assim como o privilégio de receber salário sem trabalhar, gerando prejuízo para o empregador, não deixa de ser um privilégio com a alcunha de “direito de greve”. Serviços e privilégios não são direitos.

Nesse sentido, convém novamente mencionar outra passagem bastante marcante da obra de Bastiat:

Temos todos forte inclinação a considerar o que é legal como legítimo, a tal ponto que são muitos os que falsamente consideram como certo que toda a justiça emana da lei. Basta que a lei ordene e consagre a espoliação para que esta pareça justa e sagrada diante de muitas consciências.[26]

O curioso é que, no trecho acima, Bastiat estava se referindo a “direitos” que hoje, em nossa sociedade, seriam considerados completamente torpes, como o direito de possuir escravos. No entanto, os argumentos na defesa de tais “direitos” eram os mesmos que são usados para defender os mais diversos serviços e privilégios travestidos de “direitos”, pois, como afirma o próprio Bastiat, a espoliação legal tem muitos nomes.[27]

O que pouco se percebe é que quando o Estado reconhece como direito algo que na verdade é um serviço ou um benefício, alguém está necessariamente sendo subtraído, pois o Estado não fornece nada sem subtrair (ou espoliar, como caracterizaria Bastiat) de particulares os meios para custear suas ações por meio de tributos. É daí que surge a famosa frase do economista Milton Friedman: “Não existe almoço grátis”.

O problema é que a pessoas geralmente só veem o benefício gerado pelo suposto direito; veem, por exemplo, apenas o estudante orgulhosamente graduado em uma universidade pública gratuita, mas não veem os milhares de espoliados (que no Brasil são sadicamente chamados de “contribuintes”) que a financiam sem às vezes sequer terem tido a oportunidade de lá pisarem.

Tal fenômeno, inclusive, foi tratado por Bastiat em outra obra, intitulada “O que se vê e o que não se vê”, na qual o autor destaca a dificuldade da humanidade em perceber as consequências que não são imediatas:

Assim, quando um homem é atingido pelo efeito do que se vê e ainda não aprendeu a discernir os efeitos que não se veem, ele se entrega a hábitos maus, não somente por inclinação, mas por uma atitude deliberada.

Isso explica a evolução fatalmente dolorosa da humanidade. A humanidade se caracteriza, em seus primórdios, pela presença da ignorância. Logo, está limitada às consequências imediatas de seus primeiros atos, as únicas que, originalmente, consegue enxergar. Só com o passar do tempo é que aprende a levar em conta as outras consequências.[28]

Portanto, a imposição de que um “direito” consistente em uma prestação estatal - que, por consequência, implica na espoliação de outrem - não pode ser suprimido nada mais é do que a fixação da espoliação legal como cláusula pétrea constitucional. Curioso notar, no entanto, que o que a Constituição Federal certamente estabelece como cláusula pétrea não são todos os direitos fundamentais, mas sim somente “os direitos e garantias individuais” – ou seja os direitos fundamentais de primeira geração –, o que demonstra a total ausência de fundamento constitucional para o dito princípio.


Conclusão

É justamente nesse momento de grave crise econômica que é necessário que os juristas, que durante muitos anos entenderam o Direito como um fim em si mesmo, passem a perceber que o Direito é apenas um instrumento, que não pode ser pensado de forma descolada da realidade. E a realidade no mundo inteiro e no Brasil é a absoluta falência do modelo do Welfare State e das políticas públicas assistencialistas economicamente insustentáveis.

O presidente norte-americado John F. Kennedy certa vez afirmou que “quando escrita em chinês, a palavra crise compõe-se de dois caracteres: um representa perigo e o outro representa oportunidade”. Para os juristas, a crise econômica deverá servir como oportunidade para repensar o Direito e, principalmente, os “direitos”, para que passemos a proteger apenas os verdadeiros direitos, e não a espoliação legal, assim como Bastiat já havia nos ensinado no Século XIX.


Notas

[1] Cf. Walter Korpi. Contentious lnstitutions: An Augmented Rational-Action Ana/ysis of the Origins and Path Dependency of Welfare State lnstitutions in the Western Countries. Rationality and Society, vol. 13 (2) , 2001 , p. 3. Disponível em http://www.sofi .su.se/4-2000.pdf, acessado em 24/01/2016, às 14:11h.

[2] Cf. Ilídio das Neves. Ressalte-se que a questão do regime de financiamento da previdência pública é problemática, pois há quem entenda, com alguma razão, que o Estado, por ser, em regra, um mau alocador de recursos, dificilmente administraria de modo competente um sistema capitalizado, justificando a primazia da sistemática de repartição simples, em que há o pacto intergeracional - a geração presente contribui e sustenta a geração passada, já aposentada. Neste sentido, ver http://www.bresserpereira.org.br/papers/1 995/98. ReformaAparelhoEstado&Constituicao.pdf, acessado em 24/01/2016, às 14:47h. Da mesma forma, os benefícios financiados por repartição simples são de extrema relevância para a concessão de benefícios de risco, como incapacidades derivadas de doenças ou acidentes.

[3] Por todos, ver a clássica obra de Pierre Rosanvallon, A Crise do Estado-Providência, Goiânia: UnB, 1997.

[4] Cf. Karl Hinrichs, in Ageing and Public Pension Reforms in Western Europe and North America: Patterns and Politics. What Future for Social Security? Debates and Reforms in National and Cross-National Perspective. Bristol: Policy Press, 2001 . Jochens Clasen (org.), p. 1 58.

[5] Sobre o tema ver Swedish Social lnsurance Agency. Social lnsurance. Disponível em < http://www.forsakringskassan.se/sprak/eng/engelska.pdf>, acessado em 24/01/2016, às 15h.

[6] Sobre o tema, ver The Pension Service. A Guide to Your Pension Options. Disponível em , acessado em 24/01/2016, às 15h.

[7] A importância do consenso democrático tem sido bem desenvolvida na doutrina pátria, como se percebe na obra de Cláudio Pereira Souza Neto. A Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa - Um Estudo sobre o Papel do Direito na Garantia das Condições para a Cooperação na Deliberação Democrática. Rio: Renovar, 2006. No mesmo sentido, Karl Henrich.

[8] ADI 2.556-DF, Rei. Min. Moreira Alves, Informativo 291 do STF.

[9] Denise Lobato Gentil, in A Falsa Crise do Sistema de Seguridade Social no Brasil, Tese (Doutorado em Economia) - UFRJ, 2007. “Antes de se recorrer a soluções que implicam no corte do valor das aposentadorias – que já estão, em sua maioria, no patamar do salário mínimo49 –, 49 O valor médio das aposentadorias do RGPS é de R$ 609,69. É necessário ainda considerar que, do número total de benefícios concedidos (incluindo-se os assistenciais), 53% têm um valor de até um salário mínimo e 78% têm valor de até dois salários mínimos (BOLETIM ESTATÍSTICO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, vol. 11, n° 07, julho/2006). 179 na criação de dificuldades para o acesso a direitos ou na elevação indiscriminada de contribuições previdenciárias, outros mecanismos e variáveis econômicas, que têm repercussão positiva sobre o resultado financeiro da previdência, podem ser acionados. Conforme sugere Eatwell (2002), a melhor solução para o desequilíbrio que possa existir em sistemas previdenciários está numa política econômica contracíclica. Pode-se, como exemplo, apontar algumas medidas que garantiriam melhor desempenho financeiro ao sistema previdenciário: promoção de maior crescimento no nível de produção e do emprego formal, pois na fase ascendente do ciclo crescem as receitas tributárias e de contribuições, além de os gastos sociais se reduzirem; estímulo ao crescimento da produtividade, derivado de incrementos na taxa de investimento e de melhoramentos da qualidade da força de trabalho, pois assim poder-se-ia atender a demanda crescente por bens de consumo; ampliação da progressividade do sistema de contribuições previdenciárias, para que os salários mais altos possam pagar mais e, assim, permitir a incorporação de filiados de baixa renda, em condições especiais; e, a adoção de medidas para elevar taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho. Estas seriam algumas estratégias que atingiriam favoravelmente a seguridade social, mas que decorrem, necessariamente, do dinamismo econômico. Na ausência de um processo longo e vigoroso de crescimento, o resultado financeiro deste sistema tende a ser inevitavelmente atingido, porque suas receitas, que têm base de incidência no salário, lucro, faturamento e movimentação financeira, são dependentes do ciclo econômico, assim como suas 180 despesas, que estão ligadas às condições de empregabilidade, saúde e padrão mínimo de sobrevivência da sociedade. A análise dos números da seguridade, portanto, não pode ser feita de forma dissociada do conjunto das estratégias políticas do governo que interferem no ritmo de crescimento da economia e na geração de emprego. A política econômica no Brasil dos anos 1990, por sua vez, é influenciada por um ambiente internacional substancialmente diferente de períodos anteriores, que afetou em muito a economia brasileira. É pela interação entre a conjuntura internacional e as respostas das políticas domésticas que se pretende explicar como a seguridade social foi afetada, e, assim, compreender a trajetória de reformas e mudanças freqüentes em sua concepção original, bem como para interpretar os desvios sistemáticos de suas fontes de receita para outras aplicações.”

[10] Para análise detalhada sobre aspectos demográficos, ver Camarano e Kanso (2009), Tafner (2005, Cap. 2) e Beltrão et al. (2004)

[11] IBGE, Projeção de População — Brasil (revisão 2008).

[12] Apenas à guisa de exemplo, a primeira aposentada pelo sistema previdenciário americano foi Ida May Fuller. Ela pagou apenas US$ 24,75 em três anos de contribuição, e seu primeiro contra-cheque de aposentadoria foi de US$ 22,54. Após o segundo cheque, no mês seguinte, ela já tinha recebido mais do que pagou para entrar no sistema. Ela viveu até 100 anos e recebeu US$22.888,92. Dados extraídos de http://en.wikipedia.org/wiki/Social_Security_%28United_States)

[13] Comunicado nº 64 - PNAD 2009 - Primeiras Análises: Tendências Demográficas.

[14] Por todos ver Maria Lucia Fattorelli, Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida. www.auditoriacidada.org.br

[15] https://mansueto.files.wordpress.com/2015/07/o-ajuste-inevitc3a1vel-vf_2.pdf

[16] Milton Friedman & Rose Friedman, "Free to Choose", (New York: Harcout, Brace, Jovanovich, 1980), pg. 102-107

[17] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 18.

[18] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 21.

[19] STRECK, Lênio. O pan-principiologismo e o sorriso do lagarto. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, mar. 2012. Disponível em:http://www.conjur.com.br/2012-mar-22/senso-incomum-pan-principiologismo-sorriso-lagarto

[20] SARLET, Ingo Wolfgang. A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latinoamericano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 3, n. 11, jul./set. 2009.

[21] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 267.

[22] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 344.

[23] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 268.

[24] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 268.

[25] SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. 2ª Edição. São Paulo: LL Library, 2015, p. 40.

[26] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 16.

[27] BASTIAT, Frédéric. A Lei. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 21.

[28] BASTIAT, Frédéric. O que se vê e o que não se vê. In: BASTIAT, Frédéric. Frédéric Bastiat. 2ª edição. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010, p. 19


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REGAZI, Diego. O que Romeu e Julieta têm a ver com a previdência social? Uma análise econômica da previdência social: verdades e mentiras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4819, 10 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51053. Acesso em: 26 abr. 2024.