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O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância

O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância

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Há a possibilidade do reconhecimento, pelo delegado de polícia, da incidência do princípio da insignificância ou da bagatela aos casos concretos que lhe são submetidos à apreciação no cotidiano policial.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar a possibilidade de aplicação, já na fase pré-processual, do princípio da insignificância pela autoridade policial, que é, em nosso ordenamento jurídico, o delegado de polícia. Tal exame se faz dentro de uma ótica moderna, levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, que vincula todos os envolvidos na persecução penal, os quais devem observância aos direitos e garantias fundamentais dos investigados.

 Ao delegado de polícia, na condição de autoridade estatal, com atribuições bem delineadas na Constituição e em diplomas legais esparsos, incumbe o primeiro contato com fatos supostamente delituosos, o que ocorre quase que de imediato. Sobre ele, por vezes, recai a responsabilidade de decidir acerca da manutenção ou não de alguém no cárcere. Para tanto, deve fazer valer a natureza jurídica de seu cargo, fundamentando suas decisões à luz do arcabouço legal vigente.

Deste modo, o Delegado de Polícia, hodiernamente, não pode mais ser enxergado como aquela autoridade com traços excessivamente inquisitivos, da maneira como atuava no período ditatorial no Brasil. Em verdade, o delegado de polícia, legítima autoridade policial, detentor de carreira jurídica – como já dissemos –, nomeado após concurso público e bacharel em Direito, deve ser compreendido como o primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão, combatendo qualquer abuso contra ele perpetrado e possibilitando o exercício de suas garantias constitucionais.

Utilizando-se do inquérito policial, instrumento legítimo para a formalização das investigações preliminares, o delegado de polícia não deve apenas colher elementos que visem obter à condenação do suspeito.

Ao contrário, fazendo bom uso da discricionariedade que lhe é concedida – sempre nos limites da lei – o Delegado de Polícia deve buscar elementos de informação que objetivem que os fatos apurados no inquérito policial se aproximem, tanto quanto possível, daqueles realmente ocorridos. Para tanto, poderá levantar informações e dados que auxiliem, em eventual e futura ação penal, na defesa do investigado ou que possibilitem, até mesmo, o arquivamento do inquérito policial, evitando um processo-crime desnecessário contra aquele suspeito, que resultaria em marcas indeléveis à dignidade desse sujeito de direitos.

Por todo o exposto, se faz necessária uma detalhada análise do tema em testilha, à luz dessa moderna concepção de delegado de polícia, uma vez que a possibilidade de reconhecimento do princípio da bagatela por parte dessa autoridade estatal, traz inúmeras consequências ao investigado e à sociedade como um todo.


2. BREVES DIGRESSÕES ACERCA DA TEORIA GERAL DO CRIME

2.1. CONCEITOS DE INFRAÇÃO PENAL, CRIME E CONTRAVENÇÃO PENAL

A compreensão dos conceitos abordados no presente tópico é ponto basilar para a análise dos demais institutos jurídicos de Direito Penal, sendo essencial para assimilação da tese aventada neste trabalho. Todavia, cumpre-nos alertar que inexiste, no ordenamento jurídico pátrio, conceito de infração penal, cabendo mormente à doutrina tal definição.

Inicialmente, para Rogério Sanches Cunha (2014, p. 150), faz-se necessário apontar as notas distintivas entre infração penal, crime e contravenção penal. Para o estudioso, infração penal se trata de gênero, o qual se subdivide em crime – também denominado delito – e contravenção penal (ou crime anão, delito liliputiano ou crime vagabundo). Desta feita, conclui o autor que, no Brasil, adotou-se o sistema dualista ou binário relativamente às infrações penais e que a diferenciação entre as citadas espécies é de natureza meramente axiológica, ou seja, de valor:

Conclui-se, com isto, que o rótulo de crime ou contravenção penal para determinado comportamento humano depende do valor que lhe é conferido pelo legislador: as condutas mais graves devem ser etiquetadas como crimes; as menos lesivas, como contravenções penais. Trata-se, portanto, de opção política que varia de acordo com o momento histórico-social em que vive o país, sujeito a mutações.                       

Greco (2009, p. 141), tratando desta matéria, aponta o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal como critério de distinção entre crime e contravenção. De acordo com o dispositivo mencionado, crime é “a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”. De outra ponta, contravenção penal é, conforme o ditame legal, “a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas alternativas ou cumulativamente”.

Tal distinção é apontada por Masson (2013, p. 176) como o denominado critério legal de crime, que se relaciona intimamente com seu enfoque formal. Sob este aspecto, “crime seria toda conduta que atentasse, que colidisse frontalmente contra a lei penal editada pelo Estado” (GRECO, 2009, p. 142).

A doutrina também destaca um critério material ou substancial de crime, para o qual este é “toda ação ou omissão humana que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados” (MASSON, 2013, p. 176). Rogério Sanches Cunha acrescenta a este conceito a ideia de que esta lesão ou perigo de lesão deva ser passível de sanção penal (2014, p. 150).

Greco (2009, pp. 142-143) exterioriza abalizada crítica concernente à insuficiência dos conceitos formal e material de crime:

Na verdade, os conceitos formal e material não traduzem com precisão o que seja crime. Se há uma lei penal editada pelo Estado, proibindo determinada conduta, e o agente a viola, se ausenta qualquer causa de exclusão da ilicitude ou dirimente da culpabilidade, haverá crime. Já o conceito material sobreleva a importância do princípio da intervenção mínima quando aduz que somente haverá crime quando a conduta do agente atentar contra os bens mais importantes. Contudo, mesmo sendo importante e necessário o bem para a manutenção e a subsistência da sociedade, se não houver uma lei pena protegendo-o, por mais relevante que seja, não haverá crime se o agente vier a atacá-lo, em face do princípio da legalidade.

Diante dessa escassez, surge o conceito analítico de crime. Toledo (1994, p. 80) o define como aquele apto “a pôr a mostra os aspectos essenciais ou os elementos estruturais do conceito de crime”. Conforme sua doutrina, a definição analítica de crime abrangeria as três notas fundamentais do fato-crime, a saber, “ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpável (culpabilidade)”. Passaremos a analisar mais detidamente o conceito analítico de crime no tópico a seguir.

2.2. CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

Como visto, o critério analítico de crime, também denominado formal, estratificado ou dogmático, se baseia nos elementos estruturantes do crime. Tem como função a análise destes elementos ou características, as quais integram o conceito de infração penal sem que com isso importe fragmentação, haja vista ser o crime um todo unitário e indivisível; ou o agente comete o delito (fato típico, ilícito e culpável) ou o fato por ele praticado será considerado um indiferente penal (GRECO, 2009, pp. 144-145).

Destaque-se, entretanto, que ainda existe alguma dissonância na doutrina sobre quantos e quais seriam estes elementos.

Para Battaglini (1973, p. 339), o crime se compõe por quatro elementos basilares, quais sejam: fato típico, ilicitude, culpabilidade e punibilidade. Igual posição adota Basileu Garcia (apud MASSON, 2013, p. 181). Todavia, alerta Masson (2013, p. 181), adotando entendimento análogo a Juarez Tavares (1980, p. 1):

Essa posição quadripartida é claramente minoritária e deve ser afastada, pois a punibilidade não é elemento do crime, mas consequência da sua prática. Não é porque se operou a prescrição de determinado crime, por exemplo, que ele desapareceu do mundo fático. Portanto, o crime existe independentemente da culpabilidade.

Diversos autores adotam a teoria tripartida de crime, já exposta anteriormente, para a qual o crime se constitui de fato típico, ilicitude e culpabilidade. Adotam este entendimento, conforme levantamento realizado por Masson (2013, p. 181), entre outros, Nelson Hungria, Aníbal Bruno, Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Cezar Roberto Bittencourt e Luiz Regis Prado. Trata-se, pois, de posição majoritária na doutrina nacional e estrangeira (GRECO, 2009, p. 147). Destaca-se a brilhante explanação de Zaffaroni sobre este conceito de crime (1996, p. 324):

(...) delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária ao ordenamento jurídico (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que atuasse de outra maneira nessa circunstância, é reprovável (culpável).

Em posição oposta, Damásio (1994, p. 94), Dotti (2001, pp. 335-339), Mirabete (1994, p. 94) e Delmanto (1986, pp. 18-19) consideram que o conceito de crime abarca apenas os elementos fato típico e antijuridicidade, sendo a culpabilidade mero pressuposto de aplicação da pena.

    Para os renomados doutrinadores, tal teoria se confirma pela própria redação dos dispositivos do atual Código Penal. Como se vê no mencionado diploma, ao tratar das causas de exclusão da ilicitude, fala-se que “não há crime” (art. 23). De outro modo, quando o Código Penal se refere às causas de exclusão da culpabilidade, diz ser o autor “isento de pena” (MASSON, 2013, p. 183).

 Em abalizada e consistente crítica, Greco (2009, p. 147) afirma que “todos os elementos que compõem o conceito analítico do crime são pressupostos para a aplicação da pena, e não somente a culpabilidade, como pretendem os mencionados autores”. Assevera que se não houver fato típico, será impossível a aplicação de pena; de igual modo, se a conduta não for antijurídica, também não poderá ser infligida pena ao agente.

Greco conclui ainda que, “embora o Código Penal utilize essas expressões quando quer se referir às causas dirimentes de culpabilidade, tal opção legislativa não nos permite concluir que o crime seja tão-somente fato típico e antijurídico”. Para tanto, menciona exemplo em que a expressão “isento de pena” ou alguma outra parecida é, por vezes, utilizada pelo diploma penal para afastar outras características do crime ou mesmo apontar causas que impedem a punibilidade do injusto culpável, a exemplo, respectivamente, do artigo 20, §1º e do art. 181 da legislação aludida.

Acatamos, no presente trabalho, a teoria tripartida do crime, sendo que os seus elementos serão esmiuçados, ainda que de forma sucinta, nos tópicos seguintes.

2.2.1 FATO TÍPICO: O PRIMEIRO ELEMENTO DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

Fato típico é o fato humano que se encaixa com perfeição aos elementos descritos pelo tipo penal (MASSON, 2013, p. 217). Para Rogério Sanches Cunha (2014, p. 163):

(...) pode ser conceituado como ação ou omissão humana, antissocial que, norteada pelo princípio da intervenção mínima, consiste numa conduta produtora de um resultado que se subsume ao modelo de conduta proibida pelo Direito Penal, seja crime ou contravenção penal.

Desta última definição, podemos extrair os elementos do fato típico, a saber: conduta (ou ação), resultado, nexo causal e tipicidade – os quais passaremos a analisar a seguir.

  A despeito de diversas discussões doutrinárias, que permearam a evolução do Direito Penal e as quais não interessam aos limites do presente trabalho, entendemos que o Código Penal brasileiro adotou a teoria finalista da ação. Nesse sentido, Rogério Sanches Cunha (2014, p. 175). Também acolheram a teoria no Brasil, Heleno Cláudio Fragoso, René Ariel Dotti, Damásio E. de Jesus, Julio Fabrini Mirabete e Miguel Reale Júnior (MASSON, 2013, p. 221).

A teoria finalista foi desenvolvida pelo jusfilósofo e penalista alemão Hans Welzel em meados do século XX, concebendo a conduta como “comportamento humano voluntário psiquicamente dirigido a um fim” (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 169). Para Greco (2009, p. 151):

Com o finalismo de Welzel, a ação passou a ser concebida como o exercício de uma atividade final. É a ação, portanto, um comportamento humano voluntário, dirigido a uma finalidade qualquer. O homem, quando atua, seja fazendo ou deixando de fazer alguma coisa a que estava obrigado, dirige a sua conduta sempre a determinada finalidade, que pode ser ilícita (quando atua com dolo, por exemplo, querendo praticar qualquer conduta proibida pela lei penal) ou lícita (quando não quer cometer delito algum, mas que, por negligência, imprudência ou imperícia, causa um resultado lesivo, previsto pela lei penal).

Em síntese, com base na teoria finalista, a ação deixa de ser concebida como mero processo causal para ser enfocada como exercício de uma atividade finalista Ainda, o dolo e a culpa migram da culpabilidade para o fato típico, inserindo-se, mais especificamente, na conduta (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 170).

Como consequência da conduta do agente, advém o resultado, que pode ser de duas espécies: naturalístico (ou material) e jurídico (ou normativo).

O resultado naturalístico é aquele que se dá com a alteração do mundo exterior, perceptível pelos sentidos, causada pelo comportamento do agente (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 206). De outro lado, o resultado jurídico ou normativo “é a lesão ou exposição a perigo de lesão do bem jurídico protegido pela lei penal” (MASSON, 2013, p. 229).

Insta destacar, todavia, que não são todos os crimes que possuem ou exigem resultado naturalístico. Para compreensão dessa assertiva, se faz necessário apontar as notas distintivas entre crimes materiais, crimes formais e crimes de mera conduta.

Entende-se por crime material aquele em que o tipo penal descreve conduta e resultado naturalístico, cuja ocorrência é indispensável para a consumação do delito (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 206). Em outras palavras, não há consumação do crime se não ocorrida a modificação do mundo exterior. É o que se dá, por exemplo, com o homicídio, previsto no art. 121 do Código Penal.

Já nos crimes formais, também denominados de consumação antecipada, apesar de haver descrição de conduta e resultado naturalístico no tipo penal, este é dispensável para a consumação do delito, servindo como mero fator exaurimento da infração, podendo, pois, interferir no quantum da pena aplicada (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 207). Exemplifica-se com o crime de extorsão (art. 158, CP).

Ainda, nos crimes de mera conduta, há a apenas a descrição da conduta delituosa, sem sequer mencionar o resultado naturalístico, punindo-se pela simples atividade, como ocorre, por exemplo, no crime de violação de domicílio (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 207).

De outra ponta, ressalte-se que “não há crime sem resultado jurídico, pois todo delito agride bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal” (MASSON, 2013, p. 229).

Diante destes conceitos, a doutrina discute qual dos dois resultados – o naturalístico ou o normativo – é integrante do conceito de crime. Resumindo esta celeuma, Gomes e Molina (2007, p. 186) asseveram o que se segue:

Há crime sem resultado? Para a teoria naturalística sim (os crimes formais e os de mera conduta não exigem resultado naturalístico). Para a teoria jurídica ou normativa não (inexiste crime sem ofensa ao bem jurídico protegido – nullum crimen sine injuria). Somos partidários da segunda teoria, ou seja, partimos da premissa que jamais existe delito sem essa ofensa ao bem jurídico (ou seja: sem resultado jurídico desvalioso). Logo, para nós, não há crime sem resultado jurídico. Essa postura dogmática, diga-se de passagem, é a que mais coaduna com o disposto no art. 13 do       CP, que diz: ‘O resultado, de que depende a existência do crime, só é imputável a quem lhe deu causa’. Pela própria literalidade do citado diploma legal nota-se que não há crime sem resultado (jurídico).

A clássica doutrina penal que se contentava (só) com o resultado naturalístico para a existência da tipicidade já não pode prosperar. Era uma doutrina que não distinguia entre causação e imputação do delito ou mesmo entre causação e valoração (desaprovação). Só via o lado ôntico ou naturalístico (formal), não cuidava das questões atinentes à desaprovação ou imputação do fato ao seu agente (como obra dele). Preocupou-se exageradamente com a tipicidade formal, esquecendo-se da material. Atentou-se para o aspecto valorativo da norma, mas não atinou para o seu aspecto valorativo, que contempla a tutela do bem jurídico.

O terceiro elemento do fato típico corresponde ao nexo causal, também denominado relação de causalidade. Trata-se, na lição de Greco (2009, p. 217), do “elo necessário que une a conduta praticada pelo agente ao resultado por ela produzido”. Afirma o doutrinador que, caso inexistente esse vínculo, não se pode falar em relação de causalidade e, assim, o resultado não será atribuído ao agente, haja vista não ter sido ele o seu causador.

O nexo causal encontra previsão no artigo 13, caput, do Código Penal vigente, que assim dispõe:

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

A parte final do dispositivo mencionado revela a adoção, pelo Código Penal, da teoria da equivalência dos antecedentes causais (teoria da equivalência das condições, teoria da condição simples, teoria da condição generalizadora ou da conditio sine qua non). Para os defensores desta tese, todos os fatos que antecedem ao resultado se equivalem, desde que sejam indispensáveis a sua ocorrência (GRECO, 2009, p. 220).

Entretanto, existindo inúmeros fatos anteriores a um resultado, Rogério Sanches Cunha (2014, p. 211) alerta faz um alerta acerca da aplicação prática da teoria da equivalência das condições:

Deve-se somar à teoria da conditio sine qua non o método ou teoria da eliminação hipotética dos antecedentes causais. Idealizado pelo professor sueco Thyrén, em 1894, este método é empregado no campo mental da suposição ou da cogitação: causa é todo fato que, suprimido mentalmente, o resultado não teria ocorrido como ocorreu ou no momento em que ocorreu.

No mesmo sentido, Greco (2009, p. 220) assevera que “se, suprimido mentalmente o fato, vier a ocorrer uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último”.

Por fim, Rogério Sanches Cunha (2014, p. 212) afirma que a teoria em estudo tende a regressar ao infinito na busca das causas, sendo, por isso, objeto de críticas. Entretanto, assevera que para se chegar à imputação do crime, se faz indispensável perquirir a causalidade psíquica, indagando-se se o agente agiu com dolo ou culpa para a produção do resultado delituoso.

Destaque-se que há diversos outros aspectos que poderiam ser analisados acerca do nexo de causalidade. Todavia, para direcionamento do tema da presente pesquisa, consideramos suficientes este breve escorço, sem qualquer objetivo de esgotamento da matéria.

Partimos, neste momento, para uma breve análise do último elemento do fato típico, a saber, a tipicidade, cuja compreensão é essencial para a validação da tese defendida no presente trabalho.

Para Rogério Sanches Cunha (2014, p. 224), a compreensão acerca da tipicidade penal tem evoluído conjuntamente com o Direito Penal.

Destaca o professor que a teoria tradicional concebia a tipicidade sob o aspecto meramente formal – deste modo, a tipicidade era definida como a mera subsunção do fato à norma penal.

Continua afirmando que, dentro de uma perspectiva moderna, a tipicidade penal passou a se compor pela tipicidade formal e pela tipicidade material. Assim, deixou de ser apenas a subsunção do fato à norma, “abrigando também juízo de valor, consistente na relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado”.

Mais modernamente, surge a teoria da tipicidade conglobante, desenvolvida por Zaffaroni. Como explica Masson (2013, p. 255), para essa teoria, a tipicidade penal resulta na soma da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante. Para o autor:

(...) a tipicidade conglobante (antinormatividade) é a comprovação de que a conduta legalmente típica está também proibida pela norma, o que se afere separando o alcance da norma proibitiva conglobada com as demais normas do sistema jurídico.

(...)

Não basta, pois, a mera tipicidade legal, isto é, a contrariedade do fato à lei penal. É necessário mais. A conduta do agente, contrária à lei penal, deve violar todo o sistema normativo. Em suma, deve ser antinormativa.

Estes são os principais aspectos do fato típico cuja análise é necessária para o desenvolvimento do presente trabalho. Ressalte-se, mais uma vez, a falta de intenção de esgotar o assunto, o que fugiria dos limites desta pesquisa.

2.2.2. ANTIJURIDICIDADE: O SEGUNDO ELEMENTO DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

A antijuridicidade ou ilicitude deve ser concebida como a relação de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico como um todo (não somente em relação ao direito penal), conforme lição de Greco (2009, p. 157).

Zaffaroni e Pierangeli (2009, pp. 540-541), em acertada explanação acerca do tema, aduzem:

Devemos ter presente que a antijuridicidade não surge do direito penal, mas de toda a ordem jurídica, porque a antinormatividade deve ser neutralizada por uma permissão que pode provir de qualquer parte do direito: assim, o hoteleiro que vende a bagagem de um freguês, havendo perigo na demora em acudir a justiça, realiza uma conduta que é típica do art. 168 do CP [apropriação indébita], mas que não é antijurídica, porque está amparada por um preceito permissivo que não provém do direito penal, mas sim do direito privado (art. 1470 do CC/02).

A antijuridicidade é, pois, o choque da conduta com a ordem jurídica, entendida não só como uma ordem normativa (antinormatividade), mas como uma ordem normativa de preceitos permissivos.

O método, segundo o qual se comprova a presença da antijuridicidade, consiste na constatação de que a conduta típica (antinormativa) não está permitida por qualquer causa de justificação (preceito permissivo), em parte alguma da ordem jurídica (não somente no direito penal, mas tampouco no direito civil, comercial, administrativo, trabalhista, etc.).

Insta destacar que, conforme doutrina majoritária, em relação à antijuridicidade, o Brasil adotou a teoria da indiciariedade ou da ratio cognoscendi. Para esta tese, provada a tipicidade, há indícios de ilicitude. Deste modo, em matéria probatória, o ônus sobre a existência da causa de exclusão da ilicitude é, em regra, da defesa, salvo se houver dúvida razoável sobre a existência desta, quando o réu deverá ser absolvida, nos termos do artigo 386, VI, parte final do Código de Processo Penal (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 233).

Conforme lição de Olivé (2011, pp. 385-386), as causas excludentes da ilicitude se encontram espalhadas por todo o ordenamento jurídico. Entretanto, suas regras básicas estão anotadas no Código Penal, especialmente (e não exclusivamente), no artigo 23, que assim anuncia: “não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”.

Também é possível se falar em causas supralegais de excludente da ilicitude, a despeito de algumas divergências doutrinárias. No Brasil, aceita-se, pacificamente, apenas o consentimento do ofendido como espécie desta categoria (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 235).

A seguir, passaremos a analisar, de forma resumida, as descriminantes previstas no artigo 23 do Código Penal, bem como o consentimento do ofendido.

O estado de necessidade encontra conceituação legal no artigo 24 do Código Penal, consoante transcrição literal abaixo:

Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fasto para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Segundo Rogério Sanches Cunha (2014, p. 235), o estado de necessidade remete à ideia de sopesamento de bens diante de uma situação adversa de risco de lesão. Desta feita, se houver dois bens em perigo, “permite-se que seja sacrificado um deles, pois a tutela penal, nas circunstâncias do caso concreto, não consegue proteger a ambos”.

O doutrinador enumera os requisitos objetivos para que seja constatado o estado de necessidade, a saber: perigo atual; que a situação de perigo não tenha sido voluntariamente causada pelo agente; a salvaguarda de direito próprio ou alheio; a inexistência de dever legal de enfrentar o perigo; a inevitabilidade do comportamento lesivo e a inexigibilidade de sacrifício do interesse ameaçado. Acresce também o requisito subjetivo de conhecimento da situação de fato justificante.

A legítima defesa também possui conceituação legal, desta vez no artigo 25 do Código Penal, como se vê:

Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Greco (2009, p. 340), explorando o conceito de legítima defesa, ressalta que para que se possa alegar a legítima defesa, faz-se necessário que o agente se veja diante de uma situação de total impossibilidade de se recorrer ao Estado, bem como esteja presentes os requisitos legais objetivos e subjetivos. Se de outro modo ocorrer, não há que se falar em legítima defesa, mas sim, em vingança privada.

A doutrina, quase que reproduzindo o dispositivo legal, elenca como requisitos objetivos e cumulativos da legítima defesa: a ocorrência de agressão injusta; que tal agressão seja atual ou iminente; que esta agressão seja contra direito próprio ou alheio; que sejam empregados os meios necessários para repelir esta agressão e que estes meios sejam moderadamente empregados (MASSON, 2013, p. 414).

Rogério Sanches Cunha (2014, p. 244) acrescenta ainda um requisito subjetivo, qual seja, que o agente conheça as circunstâncias do fato justificando, demonstrando ter ciência de que está agindo diante de um ataque atual ou iminente.

Ao contrário do que se dá com o estado de necessidade e a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal não possui conceituação legal, apesar de expressamente previsto no art. 23 do diploma penal. Deste modo, cabe à doutrina a sua definição.

Greco (2009, p. 370), em brilhante explanação acerca da excludente do estrito cumprimento do dever legal, assevera:

Primeiramente, é preciso que haja um dever legal imposto ao agente, dever este que, em geral, é dirigido àqueles que fazem parte da Administração Pública, tais como os policiais e oficiais de justiça, pois que, conforme preleciona Juarez Cirino dos Santos, “o estrito cumprimento de dever legal compreende os deveres de intervenção do funcionário na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei ou de ordens de superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais, como a coação, privação de liberdade, violação de domicílio, lesão corporal, etc.”. Em segundo lugar, é necessário que esse dever se dê nos exatos termos impostos pela lei, não podendo em nada ultrapassá-los.

Também inexiste conceito legal para a excludente do exercício regular de direito. Rogério Sanches Cunha (2014, p. 246) afirma que esta causa “compreende condutas do cidadão comum autorizadas pela existência de direito definido em lei e condicionadas à regularidade do exercício desse direito”. O autor apresenta como requisitos desta justificante a proporcionalidade, a indispensabilidade e o conhecimento do agente de que atua concretizando seu direito previsto em lei.

Por fim, cumpre-nos analisar o consentimento do ofendido, como causa supralegal de excludente de ilicitude, amplamente aceita pela doutrina e pela jurisprudência. Para que este tenha aplicabilidade, Rogério Sanches Cunha (2014, pp. 248-249) apresenta seus requisitos, de forma extremamente didática: a) o dissentimento não pode ser elementar do tipo (assim como ocorre no crime de violação domicílio, e.g.); b) o ofendido tem que ser capaz; c) o consentimento deve ser válido; d) o bem deve ser disponível; e) o bem deve ser próprio; f) o consentimento deve ser prévio ou simultâneo à lesão ao bem jurídico; g) o consentimento deve ser expresso; h) o agente deve ter ciência da situação de fato que autorize a justificante.

2.2.3. CULPABILIDADE: O TERCEIRO ELEMENTO DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

Conforme Cury Úrzua (1992, p. 7), “a culpabilidade deve ser concebida como reprovação, mais precisamente, como juízo de reprovação pessoal que recai sobre o autor, por ter agido de forma contrária ao Direito, quando podia ter atuado em conformidade com a vontade da ordem jurídica”.

Imperioso se faz relembrar que, para a corrente bipartida, a culpabilidade não é substrato do crime, mas mero pressuposto de aplicação da pena. É a posição adotada por Masson, por exemplo (2013, p. 454).

De outro lado, cumpre-nos repisar que adotamos, no presente trabalho, a corrente tripartida, que considera a culpabilidade como terceiro elemento do conceito analítico de crime.

Superando eventuais discussões acerca das teorias da culpabilidade, as quais não interessam aos limites desta pesquisa, passaremos a analisar os quatro elementos que compõem a culpabilidade, a saber: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 258).

A imputabilidade deve ser compreendida como a possibilidade de se atribuir, imputar fato típico e ilícito ao agente; a imputabilidade deve ser regra, enquanto a inimputabilidade exceção (GRECO, 2009, p. 395). Para Sanzo Brodt (1996, p. 46):

A imputabilidade é constituída por dois elementos: um intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato), outro volitivo (capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento). O primeiro é a capacidade (genérica) de compreender as proibições ou determinações jurídicas. Bettiol diz que o agente deve poder ‘prever as repercussões que a própria ação poderá acarretar no mundo social’, deve ter, pois, ‘a percepção do significado ético-social do próprio agir’. O segundo, a ‘capacidade de dirigir a conduta de acordo com o entendimento ético-jurídico. Conforme Bettiol, é preciso que o agente tenha condições de avaliar o valor do motivo que o impele à ação e, do outro lado, o valor inibitório a ameaça penal.

O Código Penal, a despeito de deixar a cargo da doutrina a conceituação de imputabilidade, enumera hipóteses de inimputabilidade, que estudaremos a seguir. Tais hipóteses são causas excludentes da culpabilidade, também denominadas dirimentes.

A inimputabilidade pode se dar por anomalia psíquica, conforme previsto no art. 26, caput, do diploma penal. Deste modo, se impossibilita a imputação daquele que “por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

Adota-se, na hipótese supra, o critério biopsicológico, ou seja, não basta ser portador de anomalia psíquica para ser inimputável, devendo esta anomalia se manifestar de maneira a comprometer a autodeterminação ou a capacidade intelectiva do agente (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 259).

Também são inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, consoante redação do art. 27 do Código Penal e previsão no art. 228 da Constituição Federal. Aqui, trabalha-se com o critério biológico, que leva em conta apenas o desenvolvimento mental do agente, dispensando-se a análise da capacidade de entendimento ou autodeterminação.

Trata-se, pois, de uma presunção absoluta de que o menor de dezoito anos possui desenvolvimento mental incompleto, motivo pelo qual se submete ao Estatuto da Criança e do Adolescente. (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 261).

Por fim, a embriaguez também pode levar à inimputabilidade do agente. Entretanto, para que isto ocorra, esta deve ter se dado por caso fortuito ou força maior, ser completa ao tempo da ação ou da omissão, bem como retirar inteiramente a capacidade intelectiva ou volitiva do agente (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 263). Atendidos estes requisitos, a embriaguez isenta o agente de pena, nos termos do art. 28, §1º, do Código Penal.

O segundo elemento da culpabilidade denomina-se potencial consciência da ilicitude e representa, segundo Rogério Sanches Cunha (2014, p. 266), a possibilidade que tem o agente imputável de compreender a reprovabilidade da sua conduta. Bittencourt (2012, p. 463), explorando o conceito, expõe o que se segue:

Com a evolução do estudo da culpabilidade, não se exige mais a consciência da ilicitude, mas sim a potencial consciência. Não mais se admitem presunções irracionais, iníquas e absurdas. Não se trata de uma consciência técnico-jurídica, formal, mas da chamada consciência profana do injusto, constituída do conhecimento da antissocialidade, da imoralidade ou da lesividade da conduta.

A dirimente da potencial consciência da ilicitude é o denominado erro de proibição, que encontra guarida legal no art. 21, do Código Penal. Segundo o dispositivo, “o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.

Rogério Sanches Cunha (2014, p. 267) apresenta duas situações em que incidem o erro de proibição e, consequentemente, afastam a potencial consciência da ilicitude, quais sejam: a) o agente ignora a lei e a ilicitude do fato e b) o agente, apesar de conhecer a lei, ignora a reprovabilidade da conduta. Em ambas as hipóteses, se o erro foi inevitável, excluir-se-á a culpabilidade; se evitável, reduzir-se-á a pena.

O último elemento da culpabilidade é a exigibilidade de conduta diversa. Pedroso (2008, p. 569) traz à baila breve explanação acerca do tema:

O cometimento de fato típico e antijurídico, por agente imputável que procedeu com dolo ou culpa, de nada vale em termos penais se dele não era exigível, nas circunstâncias em que atuou, comportamento diferente. Não se pode formular um juízo de censura ou reprovação, destarte, se do sujeito ativo era inviável requestar outra conduta.

Como causas excludentes ou dirimentes deste elemento da culpabilidade, o art. 22 do Código Penal traz a coação irresistível e a obediência hierárquica. Se a coação for moral e irresistível ou o agente obedecer ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, em seus estritos termos, restará descaracterizada a exigibilidade de conduta diversa e, por isso, inexistirá culpabilidade (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 272-4).


3. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO CAUSA EXCLUDENTE DA TIPICIDADE

3.1. INTRODUÇÃO

A doutrina afirma que a origem do princípio da insignificância (ou da criminalidade de bagatela) se encontra no Direito Civil, por conta do brocardo romano minimus non curat praetor. Entretanto, a introdução do referido princípio ao Direito Penal teria se dado por intermédio dos estudos de Claus Roxin, nos idos de 1970 (MASSON, 2013, p. 25).

Luiz Flávio Gomes (2009, p. 15), neste contexto, traz à baila o conceito de crime insignificante:

[...] infração bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignificante expressa o fato de ninharia, de pouca relevância. Em outras palavras, é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita) da intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras áreas do Direito (civil, administrativo, trabalhista, etc).

Rogério Sanches Cunha (2014, p. 71-2) relaciona as infrações bagatelares ao princípio da intervenção mínima, mais precisamente ao caráter fragmentário do Direito Penal. Segundo o doutrinador, o princípio da intervenção mínima revela que o Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, se fracassadas as demais esferas de controle – o que denota o caráter subsidiário deste ramo do Direito –, sendo observado, para sua aplicação, apenas os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado (caráter fragmentário do Direito Penal).

Arremata Francisco de Assis Toledo (1994, p. 133):

[...] segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.

Nesta senda, o crime de bagatela surge quando a ofensa perpetrada não é capaz de atingir materialmente e de forma relevante e intolerável o bem jurídico protegido.

3.2. A RELAÇÃO ENTRE TIPICIDADE MATERIAL E PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Como visto em tópico anterior, a concepção de tipicidade tem evoluído ao longo do tempo. Em um primeiro momento, entendia-se a tipicidade como mera subsunção da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal, o que se denominava tipicidade formal (GRECO, 2009, p. 65).

Ocorre, entretanto, que conforme uma perspectiva mais atualizada, a tipicidade penal deve ser compreendida como a soma do seu aspecto formal aliado à tipicidade conglobante, conforme ensinamento de Rogério Sanches Cunha (2014, p. 72).

Conforme Greco (2009, p. 65), para que esteja presente a tipicidade conglobante, necessário se faz verificar dois aspectos fundamentais: “a) se a conduta do agente é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico”. Ressalta que a análise do princípio da insignificância reside na última vertente da tipicidade conglobante, ou seja, na chamada tipicidade material. E explica:

Além da necessidade de existir um modelo abstrato que preveja com perfeição a conduta praticada pelo agente, é preciso que, para que ocorra essa adequação, isto é, para que a conduta do agente se amolde com perfeição ao tipo penal, seja levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção. Quando o legislador penal chamou a si a responsabilidade de tutelar determinados bens – por exemplo, a integridade corporal e o patrimônio -, não quis abarcar toda e qualquer lesão corporal sofrida pela vítima ou mesmo todo e qualquer tipo de patrimônio, não importando o seu valor.

Prossegue o doutrinador, asseverando que se a lesão sofrida pelo bem jurídico foi irrelevante, em falta estaria a tipicidade material, excluindo-se, consequentemente, a tipicidade conglobante e, também, a tipicidade penal.

Em resumo: “se não há tipicidade material, não há tipicidade conglobante; por conseguinte, se não há tipicidade penal, não haverá fato típico; e, como consequência lógica, se não o fato típico, não haverá o crime” (MASSON, 2009, p. 66).

3.3. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELOS TRIBUNAIS PÁTRIOS

A jurisprudência brasileira tem admitido, em larga escala, a aplicação do princípio da insignificância. Para tanto, em entendimento já pacificado no Supremo Tribunal Federal (vide HC 109.363/MG, j. 11/10/2011 e HC 92.961/SP, j. 11/12/2007) e no Superior Tribunal de Justiça (vide HC 205.730/RS, j. 23/08/2011 e RHC 24.326/MG, j. 17/03/2009), para o reconhecimento do princípio estudado, alguns requisitos de ordem objetiva devem estar presentes, a saber: a) mínima ofensividade da conduta; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica causada (MASSON, 2013, p. 25).

Paulo Queiroz (2008, p. 53) considera tais requisitos tautológicos, conforme explanação abaixo:

Sim, porque se mínima é a ofensa, então a ação não é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e a ação não perigosa, em consequência, mínima ou nenhuma é a reprovação, e, pois, inexpressiva a lesão jurídica. Enfim, os supostos requisitos apenas repetem a mesma ideia por meio de palavras diferentes, argumentando em círculo.

Em algumas decisões, entretanto, nota-se a exigência de que estejam presentes certos requisitos subjetivos para o reconhecimento do crime de bagatela. É a orientação, por exemplo, do Superior Tribunal de Justiça, no HC 60.949/PE, julgado em 20/11/2007:

Há que se conjugar a importância do objeto material para a vítima, levando-se em consideração a sua condição econômica, o valor sentimental do bem, como também, as circunstâncias e o resultado do crime, tudo de modo a determinar subjetivamente se houve relevante lesão.

Ressalte-se que, para a Suprema Corte, nos mesmos moldes do entendimento adotado neste trabalho, o princípio da insignificância tem o condão de descaracterizar a tipicidade penal, em seu plano material, estando intimamente relacionado com os princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima, como se viu no HC 92.463/RS, julgado em 16/10/2007, de relatoria do Ministro Celso de Mello, in verbis:

O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada- apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

Tal compreensão tem possibilitado a concessão de habeas corpus de ofício pelo Poder Judiciário, quando reconhecido o crime de bagatela (STF: HC 97.836/RS, j. 19/05/2009). Além disso, o Supremo admite a incidência do princípio da insignificância até mesmo após o trânsito em julgado da condenação, como se decidiu no HC 95.570/SC, j. 01/06/2010.

Masson (2014, p. 26) destaca que inexiste, na jurisprudência, valor máximo para parametrizar a aplicação do princípio da bagatela. Levando isso em conta, o Superior Tribunal de Justiça não admitiu o princípio da insignificância na tentativa de furto de um cartucho de tinta para impressora, avaliado em R$ 27,50, haja vista ter o delito sido praticado no interior de penitenciária onde o agente cumpria pena por crime anterior, o que revela o alto grau de reprovação da conduta (HC 163.435/DF, j. 28/09/2010).

O princípio da insignificância pode ter aplicação a qualquer espécie de delito com ele compatível e não somente em relação aos crimes contra o patrimônio (MASSON, 2013, p. 27).

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal admitiu a incidência do princípio a crime de responsabilidade do Decreto-lei nº 201/67 cometido por ex-prefeito (HC nº 104286, 2ª Turma, DJe 20/05/2011). Ainda, o mesmo tribunal aplicou o princípio ao crime de peculato-furto, cometido por carcereiro que se apropriara de farol de milha de motocicleta apreendida (HC nº 112.388, 2ª Turma, DJe 14/09/2012).

Em sentido diverso, no entanto, o Superior Tribunal de Justiça não aplica o princípio da bagatela aos crimes contra Administração Pública, mesmo que o valor da lesão seja ínfimo, sob o argumento de que “a norma visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a moral administrativa (REsp 1275835, Quinta Turma, DJe 01/02/2013).

O Supremo Tribunal Federal também entende incidir o princípio da insignificância no delito de descaminho, como se vê na decisão abaixo, referente ao HC 100942 da Primeira Turma, publicada em 08/09/2011:

1. O princípio da insignificância incide quando o tributo iludido pelo delito de descaminho for de valor inferior a R$ 10.000,00, presentes o princípio da lesividade, da fragmentariedade, da intervenção mínima e ante o disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02, que dispensa a União de executar os créditos fiscais em valor inferior a esse patamar.

O teto de R$ 10.000,00 também é utilizado como parâmetro pelo Superior Tribunal de Justiça, que aceita a aplicação da insignificância nos crimes de apropriação indébita previdenciária, quando o valor suprimido não ultrapassa o citado limite (REsp 121486, Sexta Turma, DJe 22/02/2012). De outro lado, a Suprema Corte rechaçou a aplicação do princípio da insignificância aos crimes de apropriação indébita previdenciária, tendo em conta o valor supraindividual do bem jurídico tutelado, independentemente do valor das contribuições desviadas (HC 100938/SC, Primeira Turma, j. 22/06/2010).

Em relação aos crimes cometidos com emprego de violência ou grave ameaça, Masson (2013, p. 29) alerta que o princípio em tela não se aplica, “pois os reflexos daí resultantes não podem ser considerados insignificantes, ainda que a coisa subtraída apresente ínfimo valor econômico”. Neste sentido, já decidiu o STJ, no HC 60.185/MG (Quinta Turma, j. 03/04/2007).

No que se refere aos crimes previstos na Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas, a Suprema Corte sempre se posicionou desfavoravelmente à incidência do princípio em estudo, como já decidido no HC 91759/MG, julgado em 09/10/2007. O Superior Tribunal de Justiça também tem posição contrária a aplicação do princípio nos crimes da Lei de Drogas, tendo já publicado que a sua incidência, em especial em relação ao crime de porte de drogas para uso próprio, “seria equivalente a liberar o porte de pequenas quantidades de droga contra legem” (STJ: HC 130677/MG, j. 04/02/2010).

Destaca, entretanto, Masson (2013, p. 30) que o STF, em situação isolada, já admitiu a aplicação da bagatela ao crime de porte de drogas para uso próprio, quando do julgamento do HC 110475/SC, datado de 14/02/2012.

Também não é possível a incidência do princípio da bagatela nos crimes militares, “sob pena de afronta à autoridade e à hierarquia”, conforme decidido pelo Pretório Excelso no HC 108512/BA, julgado em 04/10/2011.

De igual modo, inadmissível a aplicação do postulado em estudo no tocante ao crime de tráfico internacional de armas, por se tratar de crime de perigo abstrato e atentatório à segurança pública (STF: HC 97777/MS, j. 26/10/2010).  Ainda, incabível o princípio ao crime de moeda falsa, uma vez que “esse tipo penal tem como pressuposto (...) a proteção de um bem intangível, que corresponde à credibilidade do sistema financeiro, sem prejuízo da confiança que a população deposita em sua moeda” (MASSON, 2013, p. 32).

Ressalte-se que o cabimento do postulado da bagatela deve ser analisado no caso concreto, e não abstratamente, devendo ser levadas em conta as especificidades da situação fática (MASSON, 2013, p. 31). Neste sentido, a Suprema Corte decidiu, no HC 109183/RS, de 12/06/2012:

(...) o princípio da insignificância não haveria de ter como parâmetro tão só o valor do bem, devendo ser analisadas as circunstâncias do fato e o reflexo da conduta do agente no âmbito da sociedade, para decidir sobre seu efetivo enquadramento na hipótese de crime de bagatela.

Deste modo, as condições pessoais da vítima, a extensão do dano e o valor sentimental do bem tendem a influenciar a avaliação do cabimento do princípio em estudo (MASSON, 2013, p. 32).

Com base nestes critérios, o Pretório Excelso afastou a alegação de incidência do princípio da insignificância em relação a furto ocorrido contra vítima analfabeta e de idosa, que teve seu dinheiro subtraído do bolso de sua calça, em via pública, em plena luz do dia, “por existir interesse estatal na repressão de condutas desse quilate” (STF: REsp 835553/RS, j. 20/03/2007).

No habeas corpus nº 96003/MS, julgado em 02/06/2009, a Suprema Corte deixou de reconhecer a bagatela no furto de uma bicicleta que, embora de valor ínfimo, havia sido subtraída de pessoa de poucas posses, que a utilizava para se deslocar ao seu trabalho, o que demonstraria “a relevância do bem para seu proprietário e a repercussão extensiva da conduta em seu patrimônio”.

De maneira semelhante, entendeu o Pretório Excelso pela inaplicabilidade do princípio da insignificância em subtração de um “Disco de Ouro” de consagrado músico brasileiro, levando-se em conta a infungibilidade da res e o seu valor sentimental (STF: HC 107615/MG, j. 06/09/2011).

Em relação ao criminoso reincidente, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu o cabimento do princípio da insignificância, “por se tratar de causa de exclusão da tipicidade, que em nada se relaciona com a dosimetria da pena” (MASSON, 2013, p. 33), como se viu no HC 96929/MS, julgado em 08/04/2008:

O ora paciente subtraiu um boné avaliado em R$ 50,00, o qual foi devolvido à vítima. Porém, diante da comprovação de seus maus antecedentes e de sua reincidência, foi condenado, por furto simples, à pena de um e seis meses de reclusão. Diante disso, é certo não se lhe aplicar a benesse do furto privilegiado. Contudo, o delito pode ser considerado como de reduzido potencial ofensivo, a merecer a incidência do princípio da insignificância, que não pode ser obstado por sua reincidência ou maus antecedentes, visto que apenas jungido ao bem jurídico tutelado e ao tipo do injusto. Com este entendimento, que prevaleceu em razão do empate na votação, a Turma, ao prosseguir o julgamento, concedeu a ordem de habeas corpus.

O Supremo Tribunal Federal também já se manifestou no mesmo sentido (STF: HC 104468/MS, j. 26/10/2010). Masson releva, no entanto, que essa linha de reflexão não é pacífica, havendo decisões em sentido contrário em ambas as cortes superiores (STF: HC 100367/MS, j. 09/08/2011 e STJ: HC 195178/MS, j. 07/06/2011).

Nesse mesmo diapasão, o Tribunal da Cidadania (STJ) entendeu ser a habitualidade criminosa circunstância impeditiva para a incidência da insignificância. Neste sentido, o HC 150236/DF, julgado em 06/12/2011, noticiado no Informativo 489 daquela Corte:

Asseverou-se não ser possível reconhecer como reduzido o grau de reprovabilidade na conduta do agente que, de forma reiterada e habitual, comete vários delitos. Ponderou-se que, de fato, a lei seria inócua se tolerada a reiteração do mesmo delito, seguidas vezes, em frações que, isoladamente, não superassem certo valor tido por insignificante, mas o excedesse na soma. Concluiu-se, ademais, que, qualquer entendimento contrário seria um verdadeiro incentivo ao descumprimento da norma legal, mormente tendo em conta aqueles que fazem da criminalidade um meio de vida.

Partindo para a análise da seara dos interesses metaindividuais, o Superior Tribunal de Justiça não admitiu o reconhecimento da bagatela em ato de improbidade administrativa – que não possui natureza penal (STJ: REsp 892818/RS, j. 11/11/2008). Isto porque a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8429/1992) visa resguardar a moralidade administrativa, de modo que não comporta relativização a ponto de permitir “só um pouco” de ofensa (MASSON, 2013, p. 35).

No que concerne aos crimes ambientais, ambas as cortes superiores já reconheceram a incidência da insignificância, em especial, em relação ao crime de pesca proibida (STF: HC 112563, DJe 10/12/2012 e STJ: HC 178208, DJe 01/07/2013).

A despeito de o Pretório Excelso já ter admitido, de forma excepcional, a aplicação da insignificância para o crime de rádio comunitária clandestina, previsto no art. 183 da Lei 9472/97 (HC 104530/RS, j. 28/09/2010), as posições mais recentes, tanto do Supremo, quanto do STJ, são no sentido de inadmitir a incidência do postulado (STF: HC 111518, DJe 26/03/2013 e STJ: AgRg no AResp 108176/BA, DJe 09/10/2012). Segundo o Tribunal da Cidadania, na decisão mencionada, a instalação de estação clandestina já é, “por si só, suficiente a comprometer a regularidade e a operabilidade do sistema de telecomunicações, o que basta à movimentação do sistema repressivo penal”.

Sublinhe-se que a Suprema Corte também aceita a utilização do princípio da insignificância nos atos infracionais, isto é, crimes e contravenções penais cometidas por crianças ou adolescentes, nos termos do art. 103 da Lei 8069/1990. Tal entendimento já foi decidido no HC 112400/RS, julgado em 22/05/2012, por exemplo.

Analisando essas decisões judiciais, Greco (2009, p. 2009), em acertada conclusão, assevera:

Alguns poderão dizer que é muito subjetivo o critério para que se possa concluir se o bem atacado é insignificante ou não. E realmente o é. Teremos, outrossim, de lidar ainda com o conceito de razoabilidade para podermos chegar à conclusão de que aquele bem não mereceu a proteção do Direito Penal, pois que inexpressivo.

E arremata, em posição acompanhada por este trabalho:

Concluindo, entendemos que a aplicação do princípio da insignificância não poderá ocorrer em toda e qualquer infração penal. Contudo, existem aquelas em que a radicalização no sentido de não se aplicar o princípio em estudo nos conduzirá a conclusões absurdas, punindo-se, por intermédio do ramo mais violento do ordenamento jurídico, condutas que não deviam merecer a atenção do Direito Penal em virtude da sua inexpressividade, razão pela qual são reconhecidas como de bagatela.

Deste modo, a incidência ou não do princípio da insignificância deve ser avaliada casuisticamente, utilizando, o operador do Direito, das balizas estabelecidas pela jurisprudência e pela doutrina, analisadas no presente tópico, sempre com escora no conceito de razoabilidade.

3.4. A INSIGNIFICÂNCIA IMPRÓPRIA

A doutrina tem trazido à baila o que se denomina princípio da insignificância imprópria, ou ainda, infração bagatelar imprópria.  Apresentando as diferenciações, explica Sannini Neto (2014, p. 48) que, enquanto na infração bagatelar própria, o fato é irrelevante desde sua origem e exclui a tipicidade material; na infração bagatelar imprópria, “o fato nasce relevante, ou seja, há crime, mas ao longo do processo, a aplicação de uma pena se mostra totalmente desnecessária”.

Alice Bianchini, Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2007, p. 305), aprofundado esta definição, asseveram:

Infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o Direito penal (porque há desvalor da conduta bem como desvalor do resultado), mas depois se veria que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária (princípio da desnecessidade da pena conjugado com o da irrelevância penal do fato).

Pode-se exemplificar a incidência da insignificância imprópria com a hipótese do homicídio culposo, cujas consequências da infração atingem o agente de forma grave, nos termos do art. 121, §5º, do Código Penal, o que possibilita ao julgador a concessão do chamado “perdão judicial”. Aqui, vê-se claramente que o fato tem relevância para o Direito, verificando-se, no curso do processo, a desnecessidade de aplicação da pena ao agente, vez que as próprias consequências do ocorrido já lhe são penosas.


4. A ATIVIDADE DO DELEGADO DE POLÍCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

4.1. A POLÍCIA JUDICIÁRIA E O DELEGADO DE POLÍCIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Conforme ensina Mirabete (2006, p. 57), “a Polícia, instrumento da Administração, é uma instituição de direito público, destinada a manter e a recobrar, junto à sociedade e na medida dos recursos que dispõe, a paz pública ou a segurança individual”.

Tradicionalmente, a doutrina majoritária atribui à Polícia duas funções precípuas, quais sejam, a de Polícia Administrativa e a de Polícia Judiciária. Enquanto a primeira se relaciona à atividade de cunho preventivo e ostensivo, a qual objetiva evitar a prática de infrações penais, a Polícia Judiciária, no escólio de Brasileiro (2014, p. 110):

(...) cuida-se de função de caráter repressivo, auxiliando o Poder Judiciário. Sua atuação ocorre depois da prática de uma infração penal e tem como objetivo precípuo colher elementos de informação relativos à materialidade e à autoria do delito, propiciando que o titular da ação penal possa dar início à persecução penal em juízo. Nessa linha, dispõe o art. 4º, caput, do CPP, que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Ressalte-se que, a despeito desta definição, Feitoza (2011, pp. 202-203), em posição adotada por este trabalho, entende que a Constituição Federal faz distinção entre as funções de Polícia Investigativa e de Polícia Judiciária. Isto porque, ao fazer referência às atribuições da Polícia Federal, a Carta Magna, no art. 144, §1º, I e II, outorga ao mencionado órgão atribuições para apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser na lei, bem como prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e descaminho. De outro lado, o inciso IV do mesmo dispositivo, estabelece que a Polícia Federal destina-se a exercer, com exclusividade, as funções de Polícia Judiciária da União.

De igual modo, quando a Carta Magna se refere à Polícia Civil, atribui a esta as funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, nos termos de seu art. 144, §4º. Analisando esta diferenciação, Brasileiro arremata (2014, p. 111):

Como se percebe, a própria Constituição Federal estabelece uma distinção entre as funções de polícia judiciária e as funções de polícia investigativa. Destarte, por funções de polícia investigativa devem ser compreendidas as atribuições ligadas à colheita de elementos informativos quanto à autoria e materialidade das infrações penais. A expressão polícia judiciária está relacionada às atribuições de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandados de prisão, busca e apreensão, condução coercitiva de testemunhas, etc. Por se tratar de norma hierarquicamente superior, deve, então, a Constituição Federal, prevalecer sobre o teor do Código de Processo Penal (art. 4º, caput).

Extrai-se, pois, do texto constitucional, que as funções de polícia judiciária no Brasil são exercidas, em regra, pela Polícia Federal e pelas Polícias Civis dos Estados, estando as atribuições de cada uma delas bem delineadas pela Carta Magna, em seu artigo 144. Em relação às Polícias Civis, a Constituição exclui, expressamente, do âmbito de infrações por ela apuradas, as de natureza militar, nos termos do §4 do já mencionado dispositivo.

Do mesmo dispositivo constitucional, por fim, se conclui que as Polícias Civis dos Estados devem ser dirigidas por delegados de polícia de carreira, ou seja, que tenham ingressado na carreira de delegado de polícia por intermédio de concurso público de provas e títulos, tornando-se ocupantes de cargo efetivo.

4.2. A POLÍCIA CIVIL E O DELEGADO DE POLÍCIA NA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO

A Constituição Estadual de São Paulo trata da Polícia Civil em seu artigo 140 e páragrafos, inserindo-a no Título destinado à organização do Estado e em seção especialmente relacionada à Segurança Pública. O caput do dispositivo basicamente repete o dispositivo da Constituição Federal que versa sobre as polícias civis dos Estados, ressalvando, entretanto, que os delegados de polícia devem ser bacharéis de direito – o que demonstra, prima facie, a natureza jurídica do cargo –, como se vê in verbis:

Artigo 140 - À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Entre os parágrafos subsequentes, devem ser destacados aqueles inseridos pela Emenda Constitucional nº 35, promulgada em abril de 2012, os quais analisaremos, um a um, a seguir.

O §3º reconhece a atividade de polícia judiciária como essencial à justiça, reconhecendo a importância do Delegado de Polícia, colocando em patamar igual ao dos Advogados, Defensores públicos, Promotores e Juiz diante do sistema de persecução penal. Ademais, estabelece que essa mesma atividade serve de instrumento para a propositura de ações penais. Abaixo, a transcrição do dispositivo:

§ 2º – No desempenho da atividade de polícia judiciária, instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica.

No entanto, a alteração constitucional mais substancial para a polícia judiciária bandeirante foi consagrada no §3º do artigo em comento. Conforme esse dispositivo, assegura-se ao delegado de polícia independência funcional e livre convicção nos atos de polícia judiciária, como se depreende pelo que se segue:

§ 3º – Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.

A independência funcional deve ser compreendida como uma garantia ao Delegado de Polícia de que, no exercício de suas atividades rotineiras, possa atuar sem qualquer ingerência hierárquica ou política em suas decisões, de modo que tenha relativa discricionariedade (nos limites da lei) para tomá-las. Para tanto, o delegado de polícia também tem garantida a livre convicção quando pratica atos de polícia judiciária. Ressalte-se que, a despeito da omissão do texto, essa livre convicção deve ser motivada e fundamentada à luz do Direito vigente, nos mesmos termos da livre convicção motivada deferida aos magistrados.

As alterações analisadas também incluíram no texto constitucional estadual a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases do concurso para ingresso na carreira de Delegado de Polícia e, ainda, a exigência de que o candidato, bacharel em Direito, tenha, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, em dispositivo semelhante ao requisito para ingresso nas carreiras da Magistratura e Ministério Público. Sublinhe-se que tal requisito, no concurso para Delegado de Polícia do Estado de São Paulo, pode ser substituído pela comprovação de dois anos de efetivo exercício em carreira policial-civil, como se depreende dos dispositivos abaixo transcritos:

§ 4º – O ingresso na carreira de Delegado de Polícia dependerá de concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.§ 5º – A exigência de tempo de atividade jurídica será dispensada para os que contarem com, no mínimo, dois anos de efetivo exercício em cargo de natureza policial-civil, anteriormente à publicação do edital de concurso.

Verifica-se, destarte, que a reforma em tela consagrou, na Constituição Estadual de São Paulo e por meio de todos os dispositivos alterados, o reconhecimento de que a carreira de Delegado de Polícia possui natureza jurídica, assim como as decisões técnicas tomadas pela autoridade policial, que devem ser pautadas e fundamentadas no Direito.

4.3. LEI 12.830/2013: A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL CONDUZIDA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Em 20 de Junho de 2013, após aprovação pelo Congresso Nacional, a Presidente da República Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.830, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia. O referido diploma trouxe importantes dispositivos para o aperfeiçoamento da investigação criminal, os quais passaremos a analisar a seguir.

O art. 2º da mencionada Lei estabelece o seguinte:

Art. 2o  As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. 

Como se vê, o dispositivo em comento repete a distinção feita pela Constituição Federal em funções de polícia judiciária (polícia judiciária stricto sensu) e de apuração de infrações penais (polícia investigativa). Para aprofundamento do tema, remetemos o leitor ao tópico anterior, no qual analisamos a mencionada diferenciação.

Ainda, verifica-se que o legislador reconhece a natureza jurídica das atividades capitaneadas pelo Delegado de Polícia, sejam elas no exercício de suas funções de polícia judiciária ou na apuração de infrações penais. No escólio de Sannini Neto (2014, p. 45), “em outras palavras, o legislador reconhece que a autoridade de polícia judiciária é essencial para a Justiça, assim como os juízes, promotores e advogados/defensores públicos”.

Destaque-se, também, que o dispositivo legal em tela estabelece que as funções exercidas pelo Delegado de Polícia são exclusivas de Estado. De acordo com Sannini Neto (2014, p. 45):

Isso significa que o Estado chamou para si a responsabilidade pela investigação de infrações penais. Nada mais lógico e oportuno, afinal, a investigação criminal, por vezes, acaba restringindo direitos fundamentais, o que demanda a atuação de agentes estatais, que pautam suas ações pelo princípio da legalidade pública, só podendo fazer aquilo que está previsto em lei. Dessa forma, investigações realizadas por particulares são absolutamente ilegais, não podendo ser toleradas em nosso ordenamento jurídico, principalmente por não contarem com qualquer previsão legal. Reforçando esse entendimento, consignamos que procedimentos investigativos que não possuem perfeita regulamentação podem acarretar em abusos e violações aos direitos do investigado, prejudicando, inclusive, a correta apuração do crime.

O §1º do art. 2º do diploma analisado estabelece o que se segue:

§ 1o  Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Verifica-se, da interpretação deste dispositivo, que a expressão “autoridade policial” se refere ao delegado de polícia. Para Cabette (2013), o parágrafo em tela “reforça esse entendimento, impedindo que o Inquérito Policial ou o Termo Circunstanciado sejam presididos por outros policiais como, por exemplo, as Polícias Militares, Rodoviárias etc”.

Interpretando o dispositivo, Sannini Neto (2014, pp. 46-47) assevera:

[...] podemos afirmar que cabe ao delegado de polícia a condução da investigação criminal, que, via de regra, se materializa por meio do inquérito policial, que, por sua vez, é o único procedimento de investigação criminal com regulamentação legal.

E arremata:

[...] insistimos que em se tratando de procedimento cujo objetivo exclusivo seja a apuração de infrações penais, essa atividade deve, por força de lei, ser conduzida por delegado de polícia. Desse modo, numa interpretação a contrario sensu, seria ilegal a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público. A uma, porque ela é desenvolvida sem participação do delegado de polícia. A duas, porque essa investigação não possui qualquer previsão legal.

Da mesma forma, considerando que interceptações telefônicas e mandados de busca e apreensão têm por objetivo a apuração das circunstâncias, materialidade e autoria de infrações penais, tais procedimento, que são essencialmente investigativos, não podem ser conduzidos pela polícia militar, salvo em se tratando de crimes militares.

O dispositivo seguinte versa sobre o poder requisitório do delegado de polícia, como se vê, in verbis:

 § 2o  Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.

Este dispositivo autoriza que o delegado de polícia, na condição de presidente da investigação criminal determine as providências necessárias para cabal elucidação dos fatos. Como bem explica Cabette (2013):

Esse § 2º. não traz nenhuma grande novidade ao mundo jurídico, pois que trata da atividade de investigação já comumente e tradicionalmente deferida às Autoridades Policiais, inclusive nos termos dos artigos 6º.  e 7º., CPP até mais detalhadamente. O dispositivo, por óbvio, não vem a excepcionar as chamadas reservas de jurisdição constitucional e legalmente previstas. Por exemplo, continua o Delegado necessitando de ordem judicial para a realização de busca e apreensão domiciliar fora das exceções constitucionalmente previstas; o mesmo se pode dizer das interceptações telefônicas, quebras de sigilos bancário e fiscal etc.

Segundo Sannini Neto (2014, p. 48), ainda sobre o dispositivo, este possibilita às autoridades policiais a requisição de informações, por exemplo, às operadoras telefônicas, instituições financeiras, provedoras de internet e administração de cartão de crédito, desde que o conteúdo verse sobre a qualificação pessoal do investigado, filiação ou endereço. Entretanto, conforme o doutrinador, as informações protegidas pela cláusula de reserva de jurisdição continuam dependendo de autorização judicial, tais como quebra de sigilos bancários ou telefônicos.

O §3º do diploma legal estudado recebeu veto presidencial, sendo que dispunha, no projeto de lei, da seguinte redação:

 § 3o  - O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.

As “razões do veto” foram expostas na Mensagem Presidencial nº 251/2013, in verbis:

Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico – jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Dessa forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícia e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução penal.

No entanto, em nossa visão, tal argumentação não merecia prosperar, já que o dispositivo em comento apenas consolidaria a tão necessária imparcialidade que deve reger o trabalho da autoridade policial, baseada em seu livre convencimento jurídico, sem que existam influxos e ingerências políticas nas decisões do delegado de polícia. Como bem explica, mais uma vez, Sannini Neto (2014, p. 49):

Considerando que o Delegado de Polícia possui uma formação essencialmente jurídica, devendo ser bacharel em Direito, sendo submetido a concursos públicos extremamente rígidos, assim como Juízes, Promotores, Defensores Públicos etc., é dever da Autoridade de Polícia Judiciária analisar o fato criminoso sob todos os aspectos jurídicos. Mais do que isso, na condução da investigação, que objetiva a perfeita elucidação dos fatos, o Delegado de Polícia pode coordenar as diligências de maneira discricionária, de acordo com a necessidade para a formação do seu convencimento sobre o caso. No mesmo sentido e reforçando o exposto nesse ponto, lembramos que a Constituição do Estado de São Paulo garante em seu artigo 140, §3°, que “aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária”.

Isso não significa, todavia, que a Autoridade Policial possa se eximir de atender uma requisição feita pelo Ministério Público. Muito pelo contrário. Como titular da ação penal, o Ministério Público pode requisitar diligências que sejam imprescindíveis para o exercício desse mister. O Delegado de Polícia, por sua vez, deve acatá-las não por subordinação ao Ministério Público, mas por respeito ao princípio da legalidade, que deve pautar toda a investigação criminal.

O §4º representa importante garantia ao trabalho do delegado de polícia, como se pode depreender da literalidade do texto legal:

§4º. O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.

No escólio de Cabette (2013), o parágrafo em questão, além de representar uma garantia ao delegado de polícia, também “é uma garantia da sociedade, contra eventuais manipulações na fase investigatória”. Para o doutrinador, o dispositivo consolida o “princípio do delegado natural”, nos mesmos termos do “princípio do juiz natural”. E continua:

A partir de agora a avocação ou redistribuição discricionária, sem qualquer justificativa, não pode ser levada a efeito pela hierarquia superior da Polícia Civil ou Federal. A avocação ocorre quando uma Autoridade Policial hierarquicamente superior àquela que dá andamento ao feito por atribuição natural, chama para si o Inquérito ou outro procedimento (v.g. Termo Circunstanciado) e ela mesma (autoridade superior) passa presidi-lo. Na redistribuição essa autoridade superior irá retirar do Delegado Natural o procedimento e repassá-lo a outro Delegado designado para prosseguir nas apurações. Tudo isso, a partir de agora, somente pode ser levado a termo mediante a devida fundamentação, ou seja, a indicação transparente dos motivos que levam a essa alteração da atribuição natural. 

Prosseguindo na interpretação dos dispositivos da Lei 12.830/2013, passaremos à análise do §5º do mesmo artigo, que estabelece o seguinte: 

§ 5o  A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.

O parágrafo em tela também traz importante garantia ao delegado de polícia, a qual Sannini Neto (2014, p. 51) nomina de “inamovibilidade relativa”. De acordo com a redação, a autoridade policial não poderá ser removida de sua lotação sem prévia justificativa. Tal medida visa, mais uma vez, proporcionar isenção ao trabalho do delegado de polícia, evitando interferências externas e remoções políticas, que objetivem, por exemplo, tão-somente prejudicar o andamento de alguma investigação presidida por aquela autoridade.

O último parágrafo do dispositivo em testilha versa sobre o formal indiciamento. Vejamos:

§ 6o  O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

Na lição de Cabette (2013), o indiciamento é a exteriorização da convicção da autoridade policial quanto às suas suspeitas em relação à autoria delitiva. Segundo o professor, o mencionado ato não possui qualquer carga acusatória, já que nem o Ministério Público e muitos menos o Judiciário estão atrelados à convicção do delegado de polícia.

Examinando especificamente o dispositivo em tela, Sannini Neto (2014, p. 51) declara:

Com a inovação legislativa, o indiciamento deve, necessariamente, ser precedido de um despacho fundamentado em que o delegado de polícia exponha todos os aspectos jurídicos utilizados na formação de seu convencimento. Demais disso, a autoridade policial deverá indicar a autoria, os indícios de materialidade do crime e todas as suas circunstâncias.

Verifica-se também que o indiciamento se torna, expressa e legalmente, ato privativo do delegado de polícia. Isso significa dizer que nem o membro do Ministério Público nem o magistrado podem determinar o formal indiciamento de determinado investigado, sob pena de interferência no convencimento técnico-jurídico da autoridade policial. Acerca do indiciamento, analisaremos o instituto mais detidamente no tópico subseqüente, ao qual remetemos o leitor.

Por fim, o art. 3º do novel diploma estabelece o seguinte:

Art. 3o  O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.

Como se conclui deste dispositivo, a lei 12.830/2013 exige que o ocupante do cargo de delegado de polícia seja bacharel em Direito, em consonância com o art. 2º do mesmo diploma, o qual prevê que as atividades exercidas pelo delegado possuem “natureza jurídica”. Ademais, tal requisito para ingresso do cargo vem ao encontro dos dispositivos já analisados na Constituição do Estado de São Paulo, que exigem, além de o delegado de polícia ser bacharel em Direito, que possua dois anos de atividades jurídicas.

No que concerne ao “tratamento protocolar”, apesar de desnecessária a previsão, por não trazer qualquer melhoria à eficiência da atividade policial, essa visa a corrigir antiga distorção, uma vez que, todas as demais carreiras jurídicas eram tratadas com o pronome “Excelência”, o que não se dava com o delegado de polícia.

4.4. O INDICIAMENTO E A PRESIDÊNCIA DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE: ATOS PRIVATIVOS DO DELEGADO DE POLÍCIA

Como vimos no tópico anterior, a recente Lei 12.830/2013 trouxe tímida regulamentação acerca do instituto do indiciamento, como se repete a seguir:

Art. 2º, §6º - O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

Conforme se nota, a lei em questão não trouxe qualquer definição do ato indiciamento, cabendo a sua conceituação à doutrina processual penal. Neste sentido, Távora e Alencar (2013, p. 126), entendem que o indiciamento:

[...] é a informação ao suposto autor de um fato objeto das investigações. É a cientificação ao suspeito de que ele passar a ser o principal foco do inquérito. Saímos do juízo de possibilidade para o de probabilidade e as investigações são centradas em pessoa determinada. Logo, só cabe falar em indiciamento se houver um lastro mínimo de prova vinculando o suspeito à prática delitiva. Deve a autoridade policial deixar clara a situação do indivíduo, informando-lhe a condição de indiciado sempre que existam elementos para tanto.

Trata-se, pois, de um ato de atribuição privativa da autoridade policial, por ela formalizado quando, ao longo da investigação, se convence no sentido de que há indícios mínimos de que um suspeito tenha praticado determinado crime (SANNINI NETO, 2014, p. 92). Constitui também garantia ao investigado, de modo que possa se defender das suspeitas que sobre ele recaem. Ainda, segundo este doutrinador, analisando o instituto do ponto de vista pragmático:

[...] durante a persecução penal, a certeza sobre a autoria de um crime varia de acordo com suas fases. Para que seja instaurado o inquérito policial, basta que se vislumbre a possibilidade de ter havido um fato punível, independentemente do conhecimento de sua autoria, já que uma das funções da investigação preliminar é descobrir seu autor.

O inquérito policial, portanto, nasce da possibilidade de autoria, mas busca a probabilidade. Constatada essa probabilidade, deve ser efetivado o formal indiciamento. A partir desse momento, o status do sujeito passivo da investigação criminal passa de suspeito/investigado para indiciado. Notem que nesse instante a certeza em relação à autoria já é maior que no início da persecução penal.

Entretanto, o formal indiciamento não vincula quaisquer das demais autoridades envolvidas na persecução penal, uma vez que deve ser respeitado o livre convencimento técnico-jurídico de cada um destes. Nada impede, por exemplo, que o membro do Ministério Público proponha o arquivamento de inquérito policial em que haja sujeito indiciado. De igual modo, se denunciado, o magistrado pode absolvê-lo ou condená-lo. Consoante ensinamento de Sannini Neto (2014, p. 94), “nenhum desses atos viola o princípio da presunção de inocência”, já que nessas fases vigora o princípio do in dubio pro societates.

Do art. 6º, §2º, da Lei 12.830/2013, se inferem três premissas básicas. A primeira delas se refere ao fato de que o indiciamento é ato privativo do delegado de polícia. Deste modo, em consonância com decisões dos Tribunais Superiores, não se revela possível que o membro do Ministério Público ou autoridade judiciária requisitem ao delegado de polícia o formal indiciamento do investigado, caso a autoridade policial não o tenha realizado, sob pena de interferência indevida no convencimento e nas atribuições deste. Nesse sentido, opinam Távora e Alencar (2013, p. 126):

[...] não é adequado que o ato de indiciar seja requisitado pelo juiz ou pelo Ministério Público. Tais autoridades podem determinar a instauração da investigação. Todavia, a definição subjetiva do foco investigativo é de atribuição do titular do inquérito.

Em segundo plano, o ato de indiciamento deve ser precedido de despacho fundamentado da autoridade policial. Esta exigência praticamente repete normativa interna da Polícia Civil do Estado de São Paulo (Portaria DGP nº 18/1998) e da Polícia Federal (Instrução Normativa nº 11/2011). Ademais, revela consonância com o princípio da publicidade, que deve reger todos os atos administrativos, previsto no art. 37 da Constituição Federal.

Por fim, ao determinar o indiciamento, o delegado de polícia deve apontar as razões jurídicas de seu convencimento, bem como indicar a suposta autoria, a materialidade e as circunstâncias do ocorrido.

De igual modo, a prisão em flagrante é regulamentada pelo Código de Processo Penal nos artigos 301 e seguintes, o qual impõe, sem qualquer sombra de dúvida, a necessidade de apresentação de qualquer indivíduo surpreendido em situação de suposto flagrante delito à autoridade policial. Sannini Neto (2014, p. 160), analisando a natureza jurídica da prisão em flagrante, entende que:

Trata-se de um ato jurídico-administrativo efetivado pelo delegado de polícia, que, analisando o caso concreto, ouvindo as testemunhas, a vítima e o conduzido (imputado), forma seu convencimento jurídico e, de maneira fundamentada, determina a formalização da prisão em flagrante ou não.

A jurisprudência também é remansosa no sentido de que a lavratura do auto de prisão em flagrante não deve ocorrer de forma automática, possuindo o delegado de polícia certo grau de discricionariedade. Deste modo, analisará os elementos que lhe são trazidos, sem prejuízo de outras diligências investigatórias que julgar necessárias e decidirá, fundamentadamente, pela lavratura ou não do auto flagrancial. Abaixo, algumas decisões sobre o tema, as quais, inclusive, afastam eventual incidência do crime de prevaricação quando a autoridade policial decide, de forma justificada, pela não lavratura do auto:

A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. (RT, 679/351).

A autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente. (RJTACRIM, 39/341).

Compete privativamente ao delegado de polícia discernir, dentre todas as versões que lhe sejam oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrência de conflito, qual a mais verossímil e, então, decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou atuação em flagrante. Somente pode ser acusado de se deixar levar por sentimentos pessoais quando a verdade transparecer cristalina em favor do autuado ou indiciado e, ao mesmo tempo, em desfavor daquele que possa ter razões para ser beneficiado pelos sentimentos pessoais da autoridade. (RT, 622/296-7; RJTACRIM, 91/192).

Para configuração do crime previsto no art. 319 do CP é indispensável que o ato retardado ou omitido se revele contra disposição expressa de lei. Inexistindo norma que obrigue o Delegado de Policia autuar em flagrante todo cidadão apresentado como autor de ilícito penal, considerando seu poder discricionário não há se falar em prevaricação. (RT 728/540).

Inocorre o delito do art. 319 do CP, na conduta de Delegado de Polícia que deixou de lavrar auto de prisão em flagrante de acusado que nessa situação se encontrava, iniciando somente o Inquérito Policial, pois a regra da lavratura do auto de prisão em flagrante em situações que o exijam, não é rígida, sendo possível certa discricionariedade no ato da Autoridade Policial, que pode deixar de fazê-lo em conformidade com as circunstâncias que envolvem cada caso. (RDJTACRIM, 51/193).

O Delegado de Polícia não tem função robotizada. É bacharel em Direito. Submete-se a concurso público. Realiza, na própria Instituição, cursos específicos. Tem, na estrutura de sua função, chefias hierárquicas e órgão correcional superior. Não se pode, pois, colocar seu agir sempre sob a suspeita de cometimento de crime de prevaricação, caso não lavre o flagrante, principalmente quando esse seu agir pressupõe decisão de caráter técnico-jurídico, como o é no caso do auto de flagrante. Está na hora, pois, mormente neste momento em que se procura alterar o Código de Processo Penal, de se conferir ao Delegado de Polícia regras claras e precisas para que o exercício de sua função não seja um ato mecânico, burocrático, carimbativo, dependente, amedrontado ou heróico, enfim, não condizente com a alta responsabilidade e dever que a função exige, até para que se possa cobrar plenamente essa responsabilidade que lhe é conferida e puni-lo pelos desvios praticados. (TJSP, HC 370.792).

Ressalte-se que, de forma excepcional, permite-se que outras autoridades, que não o delegado de polícia, lavrem autos de prisão em flagrante. Sannini Neto (2014, p. 240) aponta quatro dessas hipóteses especiais, a saber: a) a mesa diretora da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal ou o parlamentar previamente indicado conforme o regimento interno, nos crimes praticados nas dependências destas Casas, nos termos da Súmula 397 do STF; b) as comissões parlamentares de inquérito nos crimes praticados durante suas sessões; c) o oficial militar indicado para função, quando se tratar de crime militar; d) a autoridade judiciária, quando o crime for cometido em sua presença ou contra sua pessoa, desde que esteja no exercício de suas funções, nos moldes do art. 307, CPP.

Arrematando este raciocínio, deve-se ter em conta que, ao dar voz de prisão em flagrante a determinado ou ratificar voz de prisão anteriormente dada por outro agente da autoridade ou qualquer do povo, o delegado de polícia, além de determinar a lavratura do auto de prisão respectivo, determinará o formal indiciamento do investigado, uma vez que, se há elementos que possibilitem o encarceramento do sujeito, presentes estão, ao menos, elementos mínimos de sua autoria, o que ensejará o seu indiciamento.


5. O DELEGADO DE POLÍCIA COMO GARANTIDOR DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

5.1. O INVESTIGADO COMO SUJEITO DE DIREITOS

Como bem acentua Sannini Neto (2014, p. 74), os tipos penais objetivam proteger os diversos direitos fundamentais previstos na Constituição da República. Considerando que a autoridade policial, centrada na figura do delegado de polícia, é quem comanda, no sistema processual brasileiro, as investigações preliminares que visam à apuração da ocorrência destes tipos penais, ele deve atuar como o garantidor dos direitos do investigado durante essa frase pré-processual.

De forma brilhante, ao tratar sobre o tema, Cabette (2013) expõe o que se segue:

[...] a figura do delegado de polícia como bacharel em Direito, constituindo-se em uma vantagem qualitativa da polícia brasileira em relação às alienígenas. O delegado de polícia com formação jurídica, além de possibilitar uma competente investigação no aspecto jurídico, pode funcionar como uma autoridade capaz de possibilitar uma “paridade de armas” entre acusação e defesa, pois que não será necessária a intervenção do órgão estatal acusador nessa fase, ao contrário de outros sistemas de direito comparado.

Deste modo, as investigações levadas a efeito pelo delegado de policia não podem mais ser vistas como instrumento a ser utilizado apenas para a condenação do suspeito. Pelo contrário, a autoridade policial deve atuar de maneira imparcial, buscando elementos que possam auxiliar tanto na defesa quanto na acusação, sempre com o fito de que a apuração pré-processual chegue o mais próximo possível da verdade dos fatos, garantindo-se os direitos de todos os envolvidos na investigação.

Não em outro sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, nos ED. Caut. MS 25.617-6/DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello:

[...] a unilateralidade desse procedimento investigatório não confere ao Estado o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias – como a prerrogativa contra a auto-incriminação – que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais: (...) O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.

Além disso, os tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos dispõem, como garantia do cidadão, que quando de sua detenção, este deva ser levado, de imediato, a presença de um juiz ou outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais, o que, no ordenamento jurídico brasileiro, equivale ao Delegado de Polícia. Isto é o que dispõe, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 9º, §3º:

Art. 9º

 §3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença. (grifo nosso).

De igual modo, estabelece o artigo 7.5 da Convenção Americana dos Direitos (Pacto de San Jose da Costa Rica), in verbis:

Artigo 7º

5. "Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo." (grifo nosso)

Raciocinando sobre o tema, Ruchester Marreiros Barbosa (2014) assevera que caso os tratados não reconhecessem a legitimidade de órgãos não jurisdicionais de exercerem a função jurídica de prender ou soltar, não iriam dispor sobre o direito dos presos de se socorrerem a juízes ou tribunais se as decisões daqueles órgãos em não soltar fossem arbitrárias, conforme estabelece o artigo seguinte do Pacto de San Jose da Costa Rica:

Artigo 7º

6. "Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa." (grifo nosso)

O mesmo autor cita ainda o “Conjunto de Princípios para Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão – 1988” das Nações Unidas apresenta interpretação acerca do alcance da expressão “ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, como se transcreve, respectivamente, de seu anexo e de seu princípio 11.3, in verbis:

Para los fines del Conjunto de Principios:

a) Por "arresto" se entiende el acto de aprehender a una persona con motivo de la supuesta comisión de un delito o por acto de autoridad; b) Por "persona detenida" se entiende toda persona privada de la libertad personal, salvo cuando ello haya resultado de una condena por razón de un delito; c) Por "persona presa" se entiende toda persona privada de la libertad personal como resultado de la condena por razón de un delito; d) Por "detención" se entiende la condición de las personas detenidas tal como se define supra; e) Por "prisión" se entiende la condición de las personas presas tal como se define supra; f) Por "un juez u otra autoridad" se entiende una autoridad judicial u otra autoridad establecida por ley cuya condición y mandato ofrezcan las mayores garantías posibles de competencia, imparcialidad e independencia." (grifo nosso)

Princípio 11

1. Ninguém será mantido em detenção sem ter a possibilidade efetiva de ser ouvido prontamente por uma autoridade judiciária ou outra autoridade. A pessoa detida tem o direito de se defender ou de ser assistida por um advogado nos termos da lei.

2. A pessoa detida e o seu advogado, se o houver, devem receber notificação, pronta e completa da ordem de detenção, bem como dos seus fundamentos. (Grifo nosso) 

3. A autoridade judiciária ou outra autoridade devem ter poderes para apreciar, se tal se justificar, a manutenção da detenção. (grifo nosso)

Ora, que autoridade é essa, no ordenamento jurídico brasileiro, se não o delegado de polícia, que reúne as características da imparcialidade e independência e que tem poderes para manter ou não alguém no cárcere, quando este sujeito lhe é apresentado após a sua detenção, apresentando-lhe, se for o caso, notificação com os fundamentos de sua prisão (nota de culpa)?

Por fim, Ruchester Marreiros Barbosa analisa o Caso Vélez Loor Vs. Panamá, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, objetivando demonstrar que a interpretação aqui exposta tem consonância com a hermenêutica daquela Corte. Aqui, transcreve-se trecho da sentença, em que o Estado do Panamá foi condenado por violação a direitos humanos:

"108. Este Tribunal considera que, para satisfacer la garantía establecida en el artículo 7.5 de la Convención en materia migratoria, la legislación interna debe asegurar que el funcionario autorizado por la ley para ejercer funciones jurisdiccionales cumpla con las características de imparcialidad e independencia que deben regir a todo órgano encargado de determinar derechos y obligaciones de las personas. En este sentido, el Tribunal ya ha establecido que dichas características no solo deben corresponder a los órganos estrictamente jurisdiccionales, sino que las disposiciones del artículo 8.1 de la Convención se aplican también a las decisiones de órganos administrativosToda vez que en relación con esta garantía corresponde al funcionario la tarea de prevenir o hacer cesar las detenciones ilegales o arbitrarias, es imprescindible que dicho funcionario esté facultado para poner en libertad a la persona si su detención es ilegal o arbitraria." (grifo nosso)

Conforme o autor, o caso tratava de um imigrante equatoriano, que havia ingressado ilegalmente no Panamá, onde foi preso pela “Polícia Nacional de la Zona”. Ocorre, entretanto, que a autoridade administrativa competente para verificar a legalidade da prisão, com funções análogas a do delegado de polícia brasileiro, ratificou a condução do preso apenas 25 (vinte e cinco) dias depois, sem nenhuma fundamentação, nem comunicação ao juiz ou defensor público no período em que ficou encarcerado.

Arremata Barbosa que a Corte, ressaltou, conforme o trecho transcrito acima, “a importância da autoridade administrativa exercer a função materialmente jurisdicional de forma imediata para que o judiciário e a defensoria pudessem atuar, bem como sua prisão pelo Diretor (Delegado) fosse necessariamente fundamentada”.

Assim, verifica-se, no cotejo da legislação pátria já analisada e dos tratados e convenções internacionais, que o Delegado de Polícia é a autoridade incumbida pelo Estado para ter o primeiro contato com os fatos eventualmente delituosos, analisando-os sob a ótica jurídica, com respeito às garantias fundamentais do suspeito, possibilitando a este o seu exercício e tratando-lhe como verdadeiro sujeito de direitos.

5.2. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Sendo o delegado de polícia bacharel em Direito, que se submete a concurso público de provas e títulos com diversas fases – tais como os de ingresso à magistratura e ao ministério público –, detentor de cargo de natureza jurídica, não há qualquer óbice a sua análise acerca da incidência ou não do princípio da insignificância aos casos que são submetidos a sua apreciação, no cotidiano policial.

Ademais, por ser a autoridade que primeiro tem contato com os supostos fatos delituosos, a atuação do delegado de polícia deve se dar de forma imparcial, garantindo-se os direitos fundamentais dos sujeitos investigados (SANNINI NETO, 2014, P. 202). Possuem ainda certa margem de discricionariedade, a ser utilizada para formação de seu convencimento jurídico, como ensina Roger Spode Brutti (2013):

As autoridades policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência de suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da Lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso.

Em obra doutrinária, o promotor de justiça Cléber Masson (2013, p. 36), discordando de vozes em sentido contrário, assevera ser possível a aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial, já que o princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. E conclui: “Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial”.

No mesmo sentido, com maestria, ensina o magistrado carioca André Nicolitt (2010, p. 130):

Com efeito, quando o Delegado de Polícia se depara com um fato que, aprioristicamente, é insignificante, verificado que a notícia de crime não procede (verifica a improcedência das informações - § 3º do art. 5º do CPP) está autorizado a deixar de lavrar o flagrante ou, simplesmente, deixar de instaurar o inquérito.

Isto ocorre porque a função do Delegado de Polícia é fazer o primeiro juízo (provisório) sobre a tipicidade. A função do Delegado de Polícia não pode resumir-se a um juízo de tipicidade legal ou formal, tendo que ser alargada ao juízo de tipicidade material e, mesmo, conglobante. Entendimento diverso retira o significado e a importância que a Constituição deu à atividade de polícia judiciária, cujas atribuições foram definidas por ela, que exigiu, inclusive, a estruturação em carreira do cargo de Delegado de Polícia.

Ainda, o desembargador e professor paulista, Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 601) defende a mesma posição, como se vê, in verbis:

Acrescentamos, ainda, o importante aspecto relativo à constatação da tipicidade, que inspira a autoridade policial a lavrar o auto de prisão em flagrante. Prevalece, hoje, o entendimento doutrinário e jurisprudencial de ser admissível o uso do princípio da insignificância, como meio para afastar a tipicidade. Ora, se o delegado é o primeiro juiz do fato típico, sendo bacharel em Direito, concursado, tem perfeita autonomia para deixar de lavrar a prisão em flagrante se constatar a insignificância do fato. Ou, se já deu início à lavratura do auto, pode deixar de recolher ao cárcere o detido. Lavra a ocorrência, enviando ao juiz e ao Ministério Público para a avaliação final, acerca da existência – ou não – da tipicidade.

Conforme se percebe, é matéria assente na doutrina pátria a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pelo delegado de polícia. Destaque-se, entretanto, que o reconhecimento de tal princípio não se dá apenas nas situações de suposto flagrante delito. Nada impede que a autoridade policial, após instaurar o respectivo inquérito, reconheça, no curso deste, a incidência da bagatela, deixando de indiciar o investigado.

5.3. FORMALIZAÇÃO DO RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Analisando eventual hipótese de incidência do princípio da insignificância quando de prisão-captura em flagrante, Sannini Neto (2014, p. 205) traz à baila duas formas de se formalizar o reconhecimento do princípio a tela, como se vê a seguir:

1) Ao tomar ciência dos fatos e formar o seu convencimento, a autoridade policial deve instaurar inquérito policial por meio de portaria, ouvir as testemunhas em assentada, a vítima e o conduzido em declarações; após, deve elaborar auto de exibição/apreensão/entrega, auto de avaliação de objeto e juntar uma cópia dos antecedentes criminais do imputado; a fundamentação deve ser feita de maneira simplificada no histórico do boletim de ocorrência e de forma mais detida no relatório final do procedimento investigativo.

2) Após formar seu convencimento, o delegado de polícia ouve todos os envolvidos da mesma forma adrede mencionada, mas não instaura inquérito policial (uma vez que não há crime); em seguida, todo o expediente elaborado deve ser encaminhado ao fórum por meio de ofício como peças de informação.

Entendemos ser mais adequada a segunda opção, uma vez que, ao reconhecer a atipicidade do fato, o delegado de polícia conclui pela inexistência de crime, o que inviabiliza a instauração de inquérito policial, já que este não pode servir à apuração de fato atípico. Caso haja instauração de procedimento, é possível o seu trancamento via habeas corpus.

Adicionalmente, pensamos que as peças de informação, além de serem encaminhadas ao juiz de direito, também devem ser remetidas ao Ministério Público, por ser este o titular da ação penal. Caso haja discordância do promotor quanto à incidência do princípio da insignificância, nada impede que este ofereça denúncia contra o suspeito, com base nas peças de informação remetidas ou, até mesmo, requisite ao Delegado de Polícia a instauração de inquérito policial para auxiliá-lo na formação de sua opinio delicti, sem que isto importe desrespeito ao convencimento jurídico da autoridade policial.

Por fim, há hipóteses em que afastada a situação flagrancial, a autoridade policial, ao tomar conhecimento de fato supostamente criminoso, instaura o respectivo inquérito policial e, no decorrer deste, percebe que a conduta perpetrada pelo investigado é insignificante. Nesses casos, a autoridade policial deve dar regular andamento ao feito, ouvindo os envolvidos, requisitando perícias e realizando outras diligências que julgar necessárias. Ao final da apuração, deve, fundamentadamente e diante da incidência do princípio da insignificância, deixar de indiciar o investigado, incidência do princípio da insignificância, relatando o inquérito policial e remetendo ao juízo.


6. CONCLUSÃO

Como visto no curso deste trabalho, o Delegado de Polícia deve ser visto como o primeiro garantidor dos direitos do cidadão. Isso porque se trata da autoridade estatal que primeiro tem contato com o crime e, por possuir formação jurídica, pode analisar todos os contornos do Direito relacionados ao fato que lhe é apresentado.

Deste modo, o trabalho do Delegado de Polícia deve estar longe de ser mecânico, de mero chancelador de ocorrências. Trata-se de um trabalho que demanda a utilização de raciocínio e, em especial, de seus conhecimentos jurídicos em prol do cidadão e de toda a coletividade. Se assim não o fosse, o Estado poderia economizar substanciais recursos financeiros substituindo os delegados de polícia por computadores.

O fato típico é o primeiro elemento do crime e, dentro de seus subelementos se encontra a tipicidade. À autoridade policial, aqui reconhecida como o delegado de polícia, não basta a mera avaliação da tipicidade formal – ou seja, a simples subsunção do fato à norma – para a caracterização do crime, sob pena – repetimos – de se tornar a atividade do delegado de polícia robotizada. Incumbe a ele também a avaliação da tipicidade material, fartamente exposta ao longo do trabalho.

Disso, se conclui, portanto, que o Delegado de Polícia pode e deve analisar eventual incidência do princípio da insignificância quando da apresentação de indivíduo preso à sua presença. De igual modo, no curso do inquérito policial, pode deixar de indiciar o suspeito sob o mesmo fundamento. Tudo, entretanto, deverá ser devidamente fundamentado, à luz do arcabouço legal vigente e dos parâmetros estabelecidos pela doutrina e pela jurisprudência para a aplicação do princípio em tela.

Entretanto, o ideal seria que isto, apesar de amplamente aceito pela doutrina – como já expusemos – fosse expressamente previsto no ordenamento jurídico pátrio, como forma de verdadeiro respeito ao livre convencimento motivado da autoridade policial e como meio de se evitarem possíveís punições de índole administrativa aos delegados de polícia que ousaram reconhecer a incidência de tal princípio, as quais são, ainda e infelizmente, muito recorrentes no âmbito das Corregedorias das polícias judiciárias.

Ademais, a previsão desta possibilidade em texto legal daria vazão ao princípio da duração razoável do processo, previsto como direito fundamental em nossa Carta Magna e evitaria o encarceramento e o processamento desnecessário de milhares de sujeitos de direitos, que, por vezes, necessitam de atenção de ramos sociais e educacionais da sociedade muito mais do que dos órgãos de persecução penal, que deveriam se ocupar de casos mais graves, que causem verdadeira lesão a bem jurídicos.


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Autor

  • Rafael Faria Domingos

    É Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processo Penal com Capacitação para Docência no Ensino Professor. Professor do Centro Universitário UNIFAFIBE (Bebedouro/SP) e do Centro Universitário UNIFEB (Barretos/SP), onde ministra a disciplina de Direito Penal.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGOS, Rafael Faria. O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4947, 16 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55049. Acesso em: 25 abr. 2024.