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Introdução ao criminal compliance

Introdução ao criminal compliance

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Duas áreas evoluem essencialmente em parceria, a área penal e a área econômica, e é importante que os empresários tenham conhecimento dessa evolução para não serem surpreendidos pelas novidades legais sancionadoras, nacionais ou internacionais.

No atual contexto de globalização, de negócios e interesses transnacionais, o direito tem acompanhado as mudanças e buscado se adequar às novas realidades nacionais e internacionais, principalmente no direito penal. A comunicação entre os sistemas jurídicos internacionais tornou-se indispensável, e nesse tom passamos a conviver com a criação de novas normas reguladoras, várias delas incriminadoras, conjuntamente com a flexibilização de princípios penais, com vistas a dar efetividade e transmitir uma sensação de segurança para a população e para o meio empresarial.

Nesse interím, duas áreas evoluem essencialmente em parceria, a área penal e a área econômica, e é importante que os empresários tenham conhecimento dessa evolução para não serem surpreendidos pelas novidades legais, nacionais ou internacionais, que prevejam algum tipo de responsabilização que lhes atinjam.

O surgimento dos crimes modernos, principalmente relacionados com setor financeiro e empresarial, fizeram com que o direito penal deixasse seu aspecto tradicional para buscar novas tendências. A finalidade preventiva dessas novas normas tem como foco programar ou reprogramar condutas consideradas arriscadas, para a redução dos riscos e dos ilícitos.

Daí surge a ideia do compliance, já que um programa efetivo de compliance primeiramente protege a empresa através de mecanismos de prevenção de riscos, segundo, protege seus funcionares e colaboradores já que as sanções alem de administrativas, podem alcançar a esfera penal, e terceiro, protege o mercado e o Estado. Destaca-se assim que o Compliance faz mais sentido se analisado juntamente com o direito penal, pois nasceu principalmente para coibir as práticas com repercussão criminal.

Carla Rahal define o Criminal Compliance como o “mecanismo de controle interno, de prevenção de práticas de condutas ilícitas criminais, que possam colocar em risco a liberdade de seus dirigentes ou a própria empresa.” (RAHAL, Carla. 2014)

Dessa forma, o criminal compliance é uma área do programa de compliance ligado diretamente as condutas com repercussão penal e que, diante do atual contexto, mostra-se como um dos mais importantes se não o mais importante do programa.

Com grande influência internacional, o instituto, que foi destacado pela primeira vez nas legislações norte americanas e inglesas, respectivamente a Foreign Corrupt Practice Act (FCPA) e o UK Bribery Act (UKBA), iniciou-se no Brasil com a Lei de Lavagem de Dinheiro de 1998, que entre outras medidas criou o COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras - com a função precípua de disciplinar e identificar ilícitos e punir administrativamente as condutas irregulares. Em 2012 a nova Lei dos Crimes de Lavagem ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores (Lei 12.683/12) tornou a lavagem de dinheiro um crime autônomo, de terceira geração, independentemente do crime anterior, dando ênfase para o criminal compliance ao punir aqueles agentes que deixarem de tomar as medidas preventivas.

Essa lei inclusive, em seus artigos 10 e 11, estabeleceu as primeiras diretrizes de comportamento que devem ser seguidas pelas instituições, orientando os pontos essenciais para o gerenciamento do risco na área e auxiliando na elaboração de um programa de compliance eficiente. São elas: 

  • Obrigação de identificar e armazenar dados de seus clientes (know your client);
  • Registro de transações que ultrapassem o limite estabelecido pela autoridade;
  • Criação e manutenção de cadastro de clientes no órgão regulador ou fiscalizador;
  • Atendimento às requisições formuladas pelo COAF/
  • Comunicação ao COAF de operações que denotem indícios ou infração à legislação de lavagem de dinheiro;
  • Comunicação de transações normais ou atípicas. As obrigações devem ser cumpridas pelas pessoas físicas ou jurídicas indicadas no art. 9, sujeitas às penalidades previstas no art. 12.

A Lei de Lavagem de Dinheiro, de certa forma, inaugurou na normativa nacional essas condutas preventivas com obrigações e deveres de informação de atividades suspeitas, a serem obedecidas pelos órgãos financeiros e relacionados, que passaram a ter o dever de atuar como colaboradores do sistema punitivo. No caso de não cumprimento desse dever, implicações nas esferas administrativa e penal podem ocorrer. Ao que parece, o objetivo da lei era evitar comportamentos com algum potencial lesivo, priorizando seus efeitos preventivos, utilizando o Direito Penal numa característica nova, distinta das características tradicionais do Direito Penal.

Fica clara a intenção do Estado, de transferência da responsabilidade de inibir e coibir crimes ao particular. Nesse novo formato, a instituição da figura do Compliance Officer, promove, pela primeira vez, a situação de “garante”. A atuação do “Compliance Officer”, com a missão de coordenar o programa e evitar as falhas e irregularidades nas atividades da instituição, pode implicar novas responsabilidades para esse, inclusive penais, pois estará atuando na posição de garante, e como tal será cobrado pelo Estado.

Há grande critica doutrinaria por conta do excesso de leis produzidas com ausência de boa técnica, numa administrativação do direito penal ou penalização do direito administrativo, gerando enorme insegurança jurídica para os envolvidos. Apesar da boa intenção do legislador, o excesso legislativo com repercussão penal acaba por gerar mais insegurança no meio, já que a má gestão das leis já existentes evidencia a falta de efetividade do Estado na aplicação concreta.

Há posições mais radicais que aventam inclusive os riscos de possível configuração, em futuro próximo, de um direito penal do inimigo na área penal-financeira, principalmente para os delitos de corrupção, que hoje causam a maior repulsa na sociedade e que, cada vez mais, tem as punições endurecidas. Na ideia do direito penal do inimigo há a supressão quase que total das garantias de quem passa a ser considerado inimigo do estado, lhes sendo impostas penas mais rígidas e meios de defesa cada vez mais restritos.

Nesse sentido vemos a aplicação de novas teorias jurídicas às empresas e empresários envolvidos, baseadas em teorias nunca antes aplicadas na área como a teoria do domínio do fato, ou mesmo responsabilização da pessoa juridica, aumentando os cuidados das empresas em suas atividades.

O criminal compliance assim se consolida como forma de minimizar os atuais riscos e prevenir os crimes empresarias. Exemplo claro desses riscos foi verificado na AP 470 (Mensalão) quando os diretores das empresas envolvidas foram condenados, apesar de as empresas terem programas de compliance, por terem rejeitado parecer opinativo dos compliance officers e persistido nas operações arriscadas que geraram as condutas ilícitas.

“Para minimizar os riscos da empresa por condutas sancionáveis em um sistema normativo altamente complexo é preciso, como adiantamos, uma gestão adequada ao direito (compliance management), e, para isso, sugere-se, e na União Europeia em certos casos também se exige, a implantação de um sistema de controle preventivo.” (BACIGALUPO, 2011)

A finalidade de um programa de compliance se baseia no Trinômio: PREVENIR, que representa a obrigação de treinamento, de adesão a princípios e valores éticos e morais pela empresa e seus colaboradores, etc; – DETECTAR, vislumbrado na obrigação de reavaliação sistêmica do programa e das condutas, de implantação de canais de denuncia, apuração interna, etc; – RESPONDER, consistente na obrigação de investigar, apurar e punir.

Um programa de compliance que não seja efetivo, no entanto, pode acarretar efeito inverso para a empresa, já que ela mesma estaria investigando e destacando as condutas indevidas praticadas por seus membros, numa espécie de autoincriminação.

No caso das instituições financeiras, o mandamento legal determina a obediência às exigências de cuidado em relação a seus clientes, usando ferramentas como a Due Diligence e o Know Your Customer (KYC), que resumidamente significam o dever de identificar e registrar as transações de seus clientes.

 “Portanto, as operações marginais de mero ingresso de valores no país por parte dos clientes das instituições financeiras são atípicas, remanescendo apenas a possibilidade de eventual prática de sonegação fiscal, que, como é cediço, pressupõe a constituição definitiva do crédito tributário, ou ainda a punição dos gestores da instituição financeira clandestina pelo delito do artigo 16 e pelo crime de lavagem de dinheiro por violação dos deveres de compliance, quando perpetrado no âmbito de instituição financeira autorizada.” 6. Recurso ministerial improvido. (TRF4, ACR 5008326-03.2010.404.7100, OITAVA TURMA)

As leis penais em branco amplamente editadas ultimamente, acabam por transferir para o Poder Executivo o necessário complemento de disposições de natureza penal, ampliando o poder normativo do estado de forma perigosa. Algumas dessas normas são importantes para o entendimento e elaboração de um criminal compliance. Resoluções do Conselho Monetario Nacional, Cartas Circulares do Bacen e Resoluções do COAF são exemplos desses complementos normativos decorrentes das leis penais em branco, com informações, técnicas e obrigações para as pessoas jurídicas atingidas, sob pena de ampla responsabilização.

Dessa forma, a Lei de Lavagem de Dinheiro e as Normas do COAF criaram obrigações para as instituições financeiras, sob pena de responsabilização, inclusive a titulo de dolo mesmo sem intenção, o que outrora parecia inconcebível.

Como o Direito penal tradicional não prevê e nem permite a punição de pessoas jurídicas, exceto no caso de crimes ambientais, a missão do aplicador do direito hoje é buscar a eficácia com sanções de outra natureza, ainda que simbólicas, para responder ao clamor popular e do mercado. Assim, é nítido hoje um mundo dos negócios com preocupações potencialmente penais. A missão do aplicador do direito, no entanto, também é não permitir que se consagre um direito penal de perigo nas relações empresariais, ou pior, um direito penal do inimigo.

Fica claro nessa nova visão estabelecida, que o criminal compliance acompanha essa perigosa evolução com o fundamento de evitar que normas penais modernas, de perigo, alcancem as instituições alvo, atuando “ex ante”, na modalidade preventiva.

Importante destacar que em países que aceitam a responsabilidade penal da pessoa jurídica, chega-se a prever a exclusão de responsabilidade quando as empresas cumprem as exigências estabelecidas nos regulamentos próprios. Apesar de não ser o caso brasileiro, o reflexo desse cumprimento nas demais esferas de responsabilização garantem a importância do instituto.

Como caso pratico exemplificativo, o caso Banestado:

”O Juiz Sergio Fernando Moro, Titular da Vara Especializada em crimes financeiros de Curitiba, Paraná, recorda semelhante precedente, já mencionado em artigo anterior, para ressaltar o fato de que a falta de cuidado justificou, então, punição de diversos agentes bancários.[..] Imputação penal seria derivada da não observação de deveres positivos, sendo obrigatória a comunicação às instâncias de regulação sobre atividades suspeitas à boa governança. Trata-se, quase, de modalidade de imputação de lavagem de dinheiro por imprudência, a exemplo do que já é patente em outros países.”(DINIZ, Eduardo Saad. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção)

Para finalizar, a Lei Anticorrupção foi de certa forma radical na exigência de programas de integridade que atendessem aos requisitos e objetivos da lei. As gravíssimas penas previstas e a responsabilidade objetiva nos processos administrativos de responsabilidade deixaram clara sua intenção.

O cuidado necessário se deve ao fato de que as multas exorbitantes podem, concretamente, acarretar o fim da atividade e vulnerar o crescimento econômico de determinados setores, eventualmente estratégicos à Economia nacional.

Os programas de compliance são muito maiores que o criminal compliance, sendo fruto da combinação de diversas normas, das mais diversas áreas da empresa, englobando, em tese, todas as atividades da empresa, com foco nas áreas de risco, como exemplo o compliance trabalhista, ambiental, entre outros. Apesar de ter sido enfrentado diretamente na Regulamentação da Lei Anticorrupção, os critérios para a implementação, e pior, para a avaliação de um programa de compliance, ainda são uma incógnita, não significando que a existência de um programa garanta benefícios e muito menos sua ausência gere punibilidade.

Por fim, as sanções da Lei Anticorrupção, apesar de administrativas, tem clara natureza penal, restritiva e punitiva, no entanto, o modelo do direito administrativo sancionador brasileiro não acompanha os direitos e garantias do processo penal, gerando um cenário de receio e insegurança. O professor Eduardo Saad destaca essa preocupação:

“Isso, até porque, se já havia para o defensor penal fortes indicadores de atuação seletiva do próprio Ministério Público, as expectativas em relação à atuação das Controladorias não geram projeções mais esperançosas.” (DINIZ, Eduardo Saad. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção)


REFERÊNCIAS: 

BACIGALUPO, Enrique. Compliance y derecho penal. Navarra: Aranzadi, 2011.

DINIZ, Eduardo Saad. JORGE SILVEIRA, Renato de Melo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. Ed. Saraiva.

TRF4, ACR 5008326-03.2010.404.7100, OITAVA TURMA, Relator PAULO AFONSO BRUM VAZ.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VENTURA, Leonardo Henrique de Carvalho. Introdução ao criminal compliance. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5512, 4 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67296. Acesso em: 19 abr. 2024.