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A quebra do sigilo bancário como forma de evitar a evasão fiscal

A quebra do sigilo bancário como forma de evitar a evasão fiscal

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Com a crescente necessidade do Estado em angariar tributos , mais tem-se ouvido falar em evasão fiscal como um meio ilegal de burlar a fiscalização do Fisco. Desta forma, temos o aumento da quebra de sigilo dos contribuintes.

RESUMO

 

Com a crescente necessidade do Estado em angariar tributos em um momento conturbado da economia, mais tem-se ouvido falar em evasão fiscal como um meio ilegal de burlar a fiscalização do Fisco.Desta forma, o legislador infraconstitucional considerou necessário dar ao Fisco o dever de cuidado dos dados bancários de seus contribuintes, prescindível de autorização judicial. É o que está previsto na LC 105/2001.Entretanto resta o questionamento acerca do caráter constitucional do sigilo bancário, e, desta forma, se a relativização trazida por esta lei complementar seria constitucional.Desta forma, através de pesquisa bibliográfico-documental, o presente trabalho visa a fazer um paralelo que permeia o caráter constitucional do sigilo bancário e a respectiva relativização, trazida pela Lei Complementar nº 105 de janeiro de 2001.

 

 

Palavras-chave:Direito Fundamental. Sigilo Bancário. Relativização.Fisco. Evasão fiscal.

 

ABSTRACT

 

With the state’sgrowing need to raise taxes at a troubled moment in the economy, more has been heard of tax evasion as an illegal means of circumventing the tax enforcement. Thus, the infraconstitucional legislature considered it necessary to give the Tax Service the duty to care for the banking data of its taxpayers, without judicial authorization. This is what is planned on LC 105/2001. However, there remains questioning about the constitutional nature of bank secrecy, and thus whether the relativization brought by this complementary law would be constitutional. Thus, through bibliographic-documentary research, the present work aims to make a parallel that permeates the constitutional character of bank secrecy and its relativization, brought by Complementary Law No. 105 of January 2001.

Keywords: Fundamental Right. Bank Secrecy. Relativization. Tax authorities. Tax evasion.

1    INTRODUÇÃO

 

A função fiscal dos impostos nada mais é do que a arrecadação aos cofres públicos para que, desta forma, os entes federados possam arrecadar recursos financeiros para arcar com as suas despesas.

Diante daelevada necessidade do Estado em angariar tributos com o propósito de arrecadarjunto à população os recursos financeiros necessários para fazer frente às suas despesas, bem comoda oposição dos sujeitos passivos da relação jurídica de obrigação tributária, tem-se verificado uma busca dos contribuintes por uma forma de evitar o fisco.

Com a tentativa dos contribuintes de burlarem o Fisco, cada vez mais se ouve falar em evasão fiscal.Entretanto, este meio ilícito de sonegação, tem por consequência a onerosidade do Fisco.

O fenômeno da evasão pode ser observado em transações em que ocorre a venda de mercadoria ou a prestação de serviço, e nelas o contribuinte deixa de informar a ocorrência do fato gerador da obrigação.

Com o advento da Lei Complementarnº 105, de 10 de janeiro de 2001 (LC 105/2001),foi implementada a quebra do sigilo bancário nos casos de apuração de crimes contra a administração pública.Através deste diploma legal, entendeu-se como meio eficaz de evitar a evasão fiscal e a sonegação a possibilidade de o Fisco fiscalizar as movimentações bancárias dos contribuintes ainda que prescindível de autorização judicial.

Diante disto, indaga-se:

Com a implementação da LC 105/2001, tornou–se o sigilo bancário uma prerrogativa relativizada frente à fiscalização do fisco?

O objetivo do presente trabalho éfazer uma análise crítica acerca da quebra do sigilo bancário e do direito à privacidade, respaldados como direitos fundamentaisà luz da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a sua relativização imposta pela LC105/2001, apresentando uma linha histórica do direito ao sigilo bancário e uma comparação frente aos demais direitos fundamentais.

Deve-se observar que não há na atualidade um entendimento pacificado acerca da natureza constitucional do sigilo bancário, entretanto, grande parte dos autoresapresenta como amparodesse sigilo o direito à privacidade, direito fundamental previsto em nossa CRFB/88.

Partindo desta análise e do sigilo bancário assegurado pela CRFB/88, observa-se a relativização apresentada frente à fiscalização do fisco, e desta forma, tal possibilidade oferece uma insegurança aos indivíduos que gozam dos direitos fundamentais previstos nos preceitos constitucionais.

Desta forma, o presente artigo se mostra demasiado útil, uma vez que busca demonstrar a constitucionalidade do sigilo bancário e, desta forma, apresentar a (in)constitucionalidade da LC 105/2001, que oferece ao fisco a possibilidade da quebra do sigilo bancário dos contribuintes prescindível de autorização judicial.

O presente trabalho será formulado de forma a desenvolver a seguinte assertiva: O sigilo bancário e sua relativização frente à fiscalização do fisco.

Para tanto, será utilizado o método dedutivo de pesquisa, que consiste em silogismo, ou seja, parte-se de uma premissa generalizada para conclusão acerca de um tema específico. A metodologia escolhida para o desenvolvimento da presente pesquisa foi a teórico-bibliográfica, com pesquisa em obras nacionais e internacionais, bem como a Constituição da República Federativa do Brasil e legislação infraconstitucional referente à matéria.

2 HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DO SIGILO BANCÁRIO NO MUNDO

 

Embora conhecidos os antecedentes históricos do sigilo bancário, o seu início não é sabido. Cotelly dispõe que no séc. VII a.C especificamente na Babilônia, os sacerdotes já realizavam atividades bancárias, dentro dos templos que eram considerados bancos.Entretanto, tal atividade só fora considerada profissão no séc.III a.C na Grécia.

O crescimento contínuo do tráfego mercantil fez com que ocorresse um crescimento exacerbado de instituições bancárias, devido a este acontecimento, se viu necessário zelar por esta relação instituída pelas transações financeiras. Contudo, apenas na Idade Média, em 1408, que o Statuto do Banco Cada di San Giorgio, que mencionou pela primeira vez acerca do sigilo bancário, e fazia com que seus funcionários obtivessem sigilo absoluto quanto à toda e qualquer atividade e quanto aos documentos presentes no estabelecimento bancário.

Com o passar dos anos, o sigilo ficou reconhecido dentro da organização bancária moderna, que teve como marco o fim do séc. XVI.

No Brasil, o sigilo bancário possui seu amparo desde 1824 em sua constituição imperial.

 

2.1 SIGILO BANCÁRIO NO BRASIL COMO DIREITO FUNDAMENTAL PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

 

No Brasil, o assunto que permeia o sigilo bancário possui previsão legal desde a Constituição de 1824, que assegurava aos indivíduos o sigilo de suas correspondências, observando que este era o único meio de comunicação da época.

Nas demais constituições, este respaldo se manteve até a Constituição de 1942 que, período em que, por estar o país em guerra, a proteção foi suspensa, somente retomando sua força em 1946.

Na Constituição de 1967, ocorreu uma inovação no que tange ao seu respaldo, incluindo além das correspondências, os sistemas de comunicação (telegráficas e telefônicas).

Levando-se em consideração a legislação infraconstitucional, assim dispõe Luz:

 

Em sede infraconstitucional, é possível verificar-se a primeira disposição legal acerca de sigilo nas atividades bancárias no artigo 17 do Código Comercial de 1850 (revogado pelo Código Civil de 2002), que disciplinava o sigilo dos livros de escrituração mercantil, combinado com seus artigos 119 e 120 (também revogados), que traziam o conceito de banqueiro e determinam a aplicação das regras do código às suas atividades.(LUZ, 2019, p. 118)

 

Esse respaldo ao sigilo bancário, perdurou e ganhou ainda mais força na Constituição de 1988 em que, além do sigilo às correspondências, devidamente previsto em seu art. 5° inciso XII, também ampliou para o sigilo de dados, previsto no mesmo inciso e inovou ao incorporar a inviolabilidade da intimidade e a vida privada previsto no art. 5° inciso X.

Com o passar do tempo, o sigilo bancário tem sido alvo de questionamentos quanto ao amparo à inviolabilidade de dados, e como tal se trata de um direito absoluto. Diversas são as correntes acerca do assunto e alguns autores defendem a constitucionalidade do sigilo bancário.

Nogueira e Pinha(2016, p.130-148)informam a inconstitucionalidade do art.6º da LC 105/2001, afirmando a valorização da constitucionalidade dos direitos constitucionais.

Em contrapartida, Cavalcanti e Fernandes(2004, p. 81-104)afastam a natureza constitucional do sigilo bancário, embasando todo questionamento em sua interpretação dos incisos X e XII do art. 5° da Constituição de 1988.

Não se trata o sigilo bancário de um direito explícito, desta forma se pauta em uma interpretação acerca dos incisos X e XII do art. 5° da Constituição, isto se deve pela novidade trazida pela CF/88, uma vez que faz menção ao sigilo de dados e a inviolabilidade da vida íntima e da privacidade.

Nogueira e Pinha (2016, p. 130-148) esclarecem que tal equiparação se faz devido ao conceito de sigilo que em síntese significa um segredo inviolável e dados que podem se referir tanto a dados bancários, fiscais, telefônicos, profissionais dentre outros, e também o correlaciona ao direito à privacidade e à vida Íntima, conceituando como sendo conjunto de informações acerca da pessoa que ela pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou decidir a quem, quando, onde e em que condições divulgarem.

Desta forma, analisando o sigilo bancário na esfera constitucional, este se faz indispensável de autorização judicial para que sofra qualquer tipo de intervenção e/ou violação, tendo vista a invulnerabilidade dos preceitos constitucionais dos indivíduos.

Tal vulnerabilidade se molda acerca de um paralelo coexistente entre a importância dos preceitos constitucionais dos indivíduos, aqui denominados direitos fundamentais, e o dever de pagar tributo como uma visão do interesse público.

 

3 DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DEVER DE PAGAR TRIBUTO

 

Inicialmente,deve-se considerar a instituição dos tributos mediante a razoabilidade e proporcionalidade.Conforme já exposto acima, o tributo tem caráter de arrecadação, para que, desta forma,o Estado possa se manter.Na previsão normativa, a capacidade contributiva de seus contribuintes deve ser levada em consideração.

A capacidade contributiva vem de modo a garantir a isonomia conforme matéria tributária prevista no art. 150 II da Constituição Federal.

Destarte, é verificada a preocupação do legislador para/com o indivíduo contribuinte, levando por diversas vezes em consideração os preceitos constitucionais.

Entretanto, muito se fala do paralelo que permeia os preceitos constitucionais de seus contribuintes e o dever de pagar tributos. Até que ponto devem prevalecer estes preceitos de modo que os próprios indivíduos intitulados de portadores de direitos e obrigações, influenciem na arrecadação do fisco?

Os direitos constitucionais dos indivíduos foram mencionados pela primeira vez na Constituição Federal de 1964, entretanto, somente na Constituição Federal de 1988 que os preceitos constitucionais obtiveram maior relevância.

Assim trazMelo:

A Constituição da República de 1988 estabeleceu em seu Título II, em linhas gerais, os direitos e garantias fundamentais e os classificou em: a) direitos e deveres individuais e coletivos; b) direitos sociais; c) direitos de nacionalidade; d) direitos políticos. Afirmamos que os direitos fundamentais foram estabelecidos em linhas gerais nesse título pelo fato de que é perfeitamente possível encontrar outros dispositivos que cuidam de direitos e deveres fundamentais.(MELO, 2019, p. 1)

 

O indivíduo que se encontra em convivência em sociedade assim como titular de direitos, também possui uma série de obrigações para que desta forma, haja uma harmonia em seu convívio.Conforme posicionado até aqui, o indivíduo possui direitos fundamentais e para que sejam colocados em prática os direitos de segunda geração – os direitos sociais – é gerado um custo para o Estado, e desta necessidade resulta o dever de pagar impostos.

Em concordância com o mencionado, afirma Loss:

A máxima de que todos os direitos implicam um custo, além de permitir melhor escolha na alocação de recursos, geralmente insuficientes, também enaltece a contribuição dada pela sociedade na forma de tributos, especialmente por meio de impostos. Não apenas os direitos sociais são custeados pela sociedade, mas também os direitos civis e políticos, o que reafirma a dimensão socializante dos impostos.(LOSS, 2014, p. 2)

 

Desta forma, temos um constante confronto no que se tange aos direitos fundamentais dos contribuintes, e o dever de pagar tributos resultante destes preceitos.

3.1 DOS DIREITOS À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA

 

A evolução histórica acerca do sigilo bancário perdurou por anos e teve sua primeira menção em uma norma constitucional em 1824.Entretanto, foi na Constituição de 1988 que sua tratativa fora inovadora em relação às demais incluindo não só o sigilo dos dados, correspondências e demais, como também a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

Assim dispõe Luz:

 

[...] a Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XII, amplia ainda mais a proteção do sigilo, para incluir os dados. E inovou em relação a todas as demais, com a previsão contida no inciso X do referido artigo, que disciplina a inviolabilidade da intimidade e vida privada, assegurando direito a indenização por dano material ou moral na hipótese de sua violação.(LUZ, 2019, p. 118)

 

Desta forma, pode-se observar a abrangência do sigilo bancário trazido pela Constituição de 1988, incluindo a intimidade e a vida privada dos indivíduos com uma característica de inviolabilidade.

Para correlacionar-se o referido preceito trazido pela Constituição ao tema abordado, faz-se necessário entender o conceito de intimidade e vida privada

Assim diferencia a doutrina de Saraiva Filho:

 

O direito à intimidade é o direito de estar sozinho. Intimidade é aquilo que não se compartilha com ninguém, são os pensamentos mais íntimos e secretos, os sentimentos, desejos e as tendências, às vezes, inconfessáveis. O direito à vida privada é o direito ao resguardo de gatos ou das relações pessoais, sendo assim, algo só compartilhado a um grupo restrito de pessoas mais intimas, cônjuge, familiares, alguns poucos amigos ou profissionais da inteira confiança do indivíduo que faz a discrição(sacerdotes, psiquiatras, psicólogos, advogados).(SARAIVA FILHO, 2001, p. 07)

 

Desta forma, pode-se concluir como sendo o direito à intimidade algo inerente ao indivíduo, algo subjetivo e intrínseco, o qual o indivíduo guarda somente para si, enquanto a vida privada é mais ampla, são abordagens que o indivíduo opta por partilhar com terceiros, conteúdos os quais não o comprometerão em sua vida em sociedade.

Assim sendo, ainda que implícito, está o direito ao sigilo bancário, que possui o mesmo gênero e a partir de uma analogia deverá ser associado. O indivíduo atribui à instituição financeira o dever de zelar pela sua saúde financeira, o sigilo imposto se torna uma espécie de segredo entre as partes desta relação o qual pretende-se que não seja revelado a um terceiro.

Veja-se que o teor e o gênero dos institutos aqui mencionados se correlacionam entre si, de modo que deve haver um respaldo e zelo constitucional e, ao transferir ao Fisco esta responsabilidade, ele passa a ter o dever de guarda.

Desta forma, sendo estes institutos correlacionados aos preceitos constitucionais, prescindem de um maior respaldo e tendo o fisco o poder de guarda, a relativização deste preceito torna-se implícita.

4 A RELATIVIZAÇÃO DO SIGILO BANCÁRIO TRAZIDA PELA LEI COMPLEMENTAR 105/2001

 

A LC 105/2001 prevê que nos casos em que ocorrer a prática de atos contra a Fazenda Pública é permitido ao auditor fiscal da Receita Federal, mediante mandado de procedimento fiscal, autorizar a quebra do sigilo bancário de seus contribuintes, independentemente de apreciação por um magistrado e/ou de autorização judicial.

Conforme tratado no decorrer do presente trabalho, o sigilo bancário se fez presente por toda a história do mundo, passou por constante evolução, até ser previsto na legislação. E por toda esta evolução histórica, pode-se verificar a constante preocupação do legislador em garantir privacidade aos indivíduos. Neste sentido, a inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 ao acrescentar o sigilo de dados e a proteção à privacidade e à vida privada dos indivíduos.

Em desacordo com toda esta conclusão tirada pela interpretação do que o legislador trazatravés da norma jurídica, fora instituída a LC 105/2001, que não só nos apresenta um rol de casos nos quais a violação do sigilo bancário é permitida, mas também oferece ao Fisco que esta possibilidade seja feita sem a autorização judicial.

Embora não haja direito absoluto, a implementação por uma lei complementar que vá de encontro aosigilo bancário, não só o reduz como também o relativiza por completo, principalmente porque não haverá a participação do Judiciário para filtrar os casos em que, de fato, se faz necessária a quebra, ou seja, é transferido esse poder ao Fisco, que irá decidir quando se fazem necessários.

Neste sentido, o legislador infraconstitucional desconsiderou em sua totalidade o que diz o art. 5° inc.XXXV da Constituição Federal que disserta acerca da reserva de jurisdição, assim dispõe "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."

Entretanto, Varella (2002, p. 132)afirma ser pacífico o entendimento do Supremo Tribunal Federal, informando que a matéria atinente ao sigilo bancário não está acobertada pelo princípio constitucional da reserva de jurisdição porque há expressa autorização dada pela Lei Maior às Comissões Parlamentares de Inquérito, para decretar a quebra, quando necessária, mas tal ato está sujeito ao controle pelo Poder Judiciário. 

Ora, aqui há uma relação vertical, na qual uma parte é inteiramente desfavorecida, e são nestes casos em que vemos a necessidade de uma ação por parte do Judiciário para garantir que nenhuma parte seja atingida e garantir a devida aplicação do direito. De um lado há uma parte interessada na matéria a ser verificada. No MS 21.729, o Ministro Carlos Velloso entendeu que o assunto acerca do sigilo bancário tem conteúdo constitucional, e desta forma sua autorização não pode ser realizada por quem não goza de imparcialidade.

Tem-se, portanto, um direito constitucional assegurado ao indivíduo – não  apenas historicamente, mas estabelecido na Constituição Federal de 1988 – que, mediante a implementação da LC 105/2001, se demonstrou deveras relativo, mediante uma relação visivelmente vertical na qual tem-se, de um lado, o Fisco, com nítido interesse nesta relação, e, por outro lado, o cidadão, que por sua vez não goza do amparo jurisdicional que se faz necessário para garantia de quaisquer abusos e/ou filtros dos casos que de fato requerem intervenção do Fisco.

Assim diz Oliveira:

 

Neste particular, não se pode deixar de considerar que o braço executivo do Poder Público é parte no processo, convindo, portanto, ser submetido ao prudente e autorizado controle do braço judicante que, juridicamente e de fato, é independente daquele. (OLIVEIRA, 2000, p. 11).

 

Logo, após exaustiva demonstração do caráter constitucional do sigilo bancário, um lado da doutrina subentende que a tratativa deste não poderia ser feito mediante Lei complementar, conforme dispõe Cabral:

 

A supressão da ordem judicial na quebra do sigilo bancário não poderia ter sido feita por leis complementares, como o foi, muito menos por emenda constitucional diante do peso de ser uma cláusula pétrea, ou seja, a Constituição Federal em seu artigo 60, §4º, inc. IV, repugna propostas de emendas constitucionais tendentes a abolir direitos e garantias individuais, como as são as garantias de inviolabilidade de dados e da intimidade. Há limitação jurídica material ao poder constitucional de emenda, reformador, no tocante as cláusulas pétreas, de reserva absoluta.(CABRAL, 2001, p. 1)

 

Logo, após a análise acerca da LC 105/2001 e seu contraponto aos direitos constitucionais ofertados aos indivíduos, restou demonstrado a total relativização trazida consigo e a inoportuna não apreciação destes direitos.

4.1 O SIGILO BANCÁRIO E A SUA TRANSFERÊNCIA PARA A FISCALIZAÇÃO DO FISCO

 

Muito se sabe acerca do caráter definitivo dos direitos fundamentais, inclusive por sua característica de cláusula pétrea. A Constituição Federal de 88 em seu art. 5° inc. XXXV dispõe sobre a apreciação pelos magistrados acerca dos direitos constitucionais.

Em contrapartida surgiu a LC 105/2001 que dispõe sobre os casos em que o sigilo bancário poderá ser violado sem a necessidade de autorização judicial, sendo o caso de apuração de ilícito contra a ordem tributária e a previdência social, passando assim a relativizar o sigilo bancário dos contribuintes mediante a fiscalização do fisco.

A autorização para violação do sigilo bancário se dará mediante autorização do auditor fiscal da Receita Federal que emitirá um Mandado de Procedimento Fiscal. No caso de constatação de prática de infração à legislação tributária, o procedimento da fiscalização será iniciado de imediato e, em cinco dias, contados de sua data de início, será expedido Mandado de Procedimento Fiscal (MPF) especial, no qual dará a ciência ao contribuinte alvo da fiscalização.

Estão autorizados a solicitar a quebra do sigilo bancário mediante suas autoridades fiscais tributárias conforme o art. 6° da LC 105/2001, a Receita Federal mediante informações passadas pela instituição bancária, Fisco no âmbito municipal, estadual e distrital desde que regulamentem dentro de seu âmbito de atuação, e a comissão parlamentar de inquérito conforme disposto no art. §1º da LC 105/2001 limitado à CPI estadual/distrital ou federal não abrangendo a CPI municipal.

Tem-se, pois, a transferência da autorização para a quebra do sigilo bancário para o Fisco sob a justificativa de reforçar a fiscalização, evitando a prática de atos ilícitos contra a ordem tributária, tal como a evasão fiscal.

A corrente a favor da LC 105/2001 posiciona-se no sentido de desconsiderar o caráter constitucional do sigilo bancário e se baseia no princípio da primazia do interesse público e no fato de que ofertando ao Fisco esta possibilidade de fiscalizar seus contribuintes, estarão zelando pela celeridade e cercando a incidência de crimes contra a ordem tributária.

Com a incidência da LC105/2001, a transferência do sigilo bancário dos indivíduos aqui caracterizados como contribuintes para a fiscalização do fisco, restou demonstrada a prevalência para o legislador infraconstitucional do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse individual do contribuinte ao seu sigilo bancário.

 

4.2 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O INTERESSE PRIVADO

 

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privadoconsiste em uma intervenção estatal na vida do particular a fim de garantir o interesse público e é norte para a fundamentação do advento da LC 105/2001.Neste sentido, faz-se necessário, inicialmente, elucidar o vínculo que irá mediar o tema do presente artigo e este preceito.

Segundo conceitua Luz:

 

O princípio da Supremacia do interesse público sobre o interesse privado é “um pressuposto lógico do convívio social”, através do qual a Administração Pública poderia impor restrições ao particular ou tomar decisões contrárias ao interesse individual, em nome de atender ao interesse da coletividade.(LUZ,2019, p. 49)

 

Desta forma, conclui-se que havendo divergência entre o interesse de um particular e o de uma coletividade, este deverá prevalecer. Entretanto, não se pode confundir o conceito de interesse público trazido por este princípio com o interesse da maioria, como distingue Nohara:

 

Também não pode ser considerado interesse público o simples interesse da maioria da população, pois se assim fosse, não haveria como defender que são de interesse público políticas direcionadas à inclusão social de minorias, isto é, políticas de ação afirmativa. (NOHARA, 2017, p.63)

 

Quanto a este último aspecto, Rousseau, citado por Reis (2010, p. 11-34), diziaque o conceito de vontade geral não se confunde com a simples soma das vontades individuais, mas representa a síntese delas, pois enquanto a vontade de todos tem em vista as vontades particulares, a partir da soma dos interesses privados, a vontade geral atende ao interesse comum, da perspectiva da reta consecução das utilidades públicas.

A importância do presente assunto também foi alvo de discussão por Luz:

 

É importante analisar este princípio, aplicável tanto ao Direito Administrativo quanto ao Direito Tributário, ramos do direito público, na medida em que este também disciplina a atuação do Estado, na figura do Fisco, em sua relação com os particulares, na qualidade de contribuintes.(LUZ, 2019, p. 49)

 

O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é um preceito implícito, ou seja, não possui previsão constitucional e demanda de interpretação, sendo uma prerrogativa administrativa que irá nortear o legislador na elaboração das normas.

Para Di Pietro(2010, p. 64), este princípio está presente desde a elaboração da norma jurídica quanto no momento da execução por parte da administração pública.Destaforma, deve o legislador no momento da criação das normas, se nortear por este princípio.

Ora, como não versar sobre este preceito quando temos um vínculo explícito com o assunto abordado? A violação do sigilo bancário de um indivíduo por parte do Estado, para que seja concretizado o dever do cidadão como contribuinte, é um exemplo claro para elucidar o princípio narrado.

Desta forma, resta demonstrado que o sigilo bancário, mediante interpretação equiparada ao direito à privacidade, não é absoluto, de modo que deverá ser submetido ao princípio da supremacia do interesse público.

 

5. A QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO COMO FORMA DE EVITAR A EVASÃO FISCAL

 

Conforme leciona Luz(2019, p.19),o tema analisado no presente trabalho se mostra deveras importante tendo vista a constante discussão acerca dos limites entre os direitos individuais cotejados aos interesses coletivos e a ampla proporção que este debate proporcionou no âmbito jurídico. 

O presente artigo se norteou em equiparar o sigilo bancário a um direito fundamental previsto na CF/88 e, desta forma, devendo ser zelado e garantido pelo Estado.

Entretanto, se de um lado temos um dever do Estado em amparar e garantir ao cidadão que suas prerrogativas sejam, de fato realizadas, em contrapartida, temos o Fisco e seu constante dever de fiscalizar e garantir o dever dos indivíduos de pagar tributos.

Conforme já exposto, esta constante tentativa de manter a harmonia entre as prerrogativas singulares dos indivíduos e os direitos de uma coletividade, fora quebrada pela relativização trazida pela LC 105/2001, em que aponta como uma forma de se evitar a evasão fiscal a violação do sigilo bancário.

Contudo, antes de se fazer uma interpretação da LC 105/2001, as consequências por ela trazidas ou sua eficácia, devemos primeiramente analisar o conceito de evasão fiscal.

Faria(2016, p. 25)conceitua da seguinte forma: “É o ato ou ação ilícita com o intuito de evitar, protelar ou reduzir determinado tributo após a ocorrência do fato gerador.”

Em concordância com o conceito trazido, assim leciona Marins:

 

Pratica o crime tributário quem suprime ou reduz tributo por meio de supressão de informações ou por meio de informação falsa, ou através de inserção de dado inexato em livros ou documentos fiscais, ou mesmo pela falsificação ou alteração de nota fiscal ou negar­se a emiti-la, ou através de outras condutas consideradas fraudulentas. (MARINS, 2002, p. 31)

 

O conteúdo da evasão fiscal não está expressamente tipificado em lei, entretanto seu teor está previsto no art. 1º, I, da Lei n° 8.137/1990, que dispõe:

 

Art. 1º. Constitui crime contra a ordem tributária (...)

I – Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II – Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III – Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV – Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V – Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.(BRASIL, Lei 8.137, 1990)

 

Partindo-se do pressuposto de que a evasão fiscal é um meio ilícito de sonegação de imposto, e o recolhimento de determinados impostos se dá a partir de demonstração de riqueza, fez-se necessário transferir ao Fisco a possibilidade da quebra do sigilo bancário, a fim de dar ao Estado uma capacidade de fiscalizar a vida financeira de seus contribuintes com a finalidade de se evitar esta omissão.

Assim, surgiu a LC 105/2001 que trouxe as situações em que a quebra do sigilo bancário seria possível, e especificamente em seu art. 1º,§4°, VII possibilitou ao fisco a violação do sigilo bancário, para a apuração de crimes contra ordem tributária sem que se faça necessária a autorização judicial.

Não seria esta flexibilização trazida pela LC 105/2001 um ato deveras desesperado do Fisco demonstrando, assim, uma total ineficácia em sua fiscalização, de modo que se fez necessária a relativização de um direito singular do indivíduo para sanar uma inércia frente a ineficiência de seus meios de fiscalizar seus contribuintes?

Neste mesmo sentido, uma vez autorizado uma flexibilidade frente a uma necessidade estatal, não seria tal medida um pretexto para demais necessidades que possam vir o Estado apresentar?

E por fim quão efetiva esta medida apresentada pela LC 105/2001 demonstra ser, afim de se sobressair sob um direito singular do indivíduo?

Findadas as indagações, o que se verifica é que a LC 105/2001 trouxera uma nova visão no que se tange à primazia do interesse público sobre o privado, quando opta por violar a vida financeira de seus contribuintes.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Conforme exposto no presente trabalho, o assunto acerca do sigilo bancário é alvo de menções no Brasil desde a Constituição de 1824, estabelecendo o seu amparo desde então.

A garantia ofertada ao indivíduo possuidor de direitos e obrigações se perdura ao longo de diversos anos, dando a ele uma segurança de suas informações, mediante menções à segurança de suas correspondências, sigilo de dados e a vida íntima e privada do mesmo.

A existência de uma norma infraconstitucional que transfere ao fisco o dever de cuidado dos dados bancários de seus contribuintes, sem a existência de uma manifestação doPoder Judiciário que atue como um filtro a fim de garantir que nenhum abuso seja feito, demonstra um total descaso com os diversos preceitos adquiridos ao decorrer dos anos pelos indivíduos, e neste caso em especifico, de seus contribuintes.

O paralelo no que concerne ao sigilo bancário e seu teor constitucional, não é novidade e conforme demonstrado de forma no decorrer do presente artigo, tem sido alvo de questionamentos e discussões por diversas doutrinas, inovado no decorrer de diversas constituições e demonstrando assim a sua relevância no atual cenário,  devendo, sim, ser alvo de atenção do Poder Judiciário de modo a reduzir a relativização trazida pela LC 105/2001.

O presente trabalho vem de modo a apresentar o teor constitucional do sigilo bancário o qual deve ser alvo de apreciação do Judiciário afim de se evitar possíveis abusos.Entretanto, conforme demonstrado, a LC 105/2001 acabou por relativizar este preceito visando a garantir o interesse público.

Tal justificativa apresenta diversos equívocos e deve ser alvo de questionamento.Deve-se considerar o papel do Judiciário e na hipótese em estudo sabe-se que o indivíduo, como portador de direitos e garantias, é parte menos favorecida e não deve ser tratado de forma diferente disto.

Por fim, conclui-se que a LC 105/2001 apresenta um descaso com os preceitos constitucionais adquiridos no decorrer de diversos anos e evoluções de diversas constituições, relativizando o sigilo bancário e transferindo ao Fisco o poder-dever de cuidado com os dados de seus contribuintes prescindindo de autorização do Poder Judiciário que atua como filtro impeditivo de possíveis abusos.

  

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