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Coronavírus e contratos de plano de saúde

Coronavírus e contratos de plano de saúde

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O que fazer em caso de recusas de atendimento, dificuldades de pagamento de mensalidades ou aumentos abusivos, em ambiente de pandemia global?

Em tempos de pandemia global que ocupa praticamente todos os espaços da mídia, não se precisa perder tempo buscando explicar a situação que envolve a questão do coronavirus, o que, certamente, impactará o modo como os professores de direito privado ensinarão direito contratual nas próximas décadas (não mais nos preocuparemos em buscar inspiração em Caio, Tício ou Mévio para explicar situações de força maior ou para buscar análise de incidência de fato de príncipe por exemplo – essa crise será estudada ainda por muitos anos em seus impactos, levará tempo para que a jurisprudência a entenda em sua inteireza – em artigo recente escrevi sobre aspectos geopolíticos da questão e sobre seus impactos no direito contratual – tomo a liberdade de remeter os leitores aos seguintes links para aprofundamento: <https://jus.com.br/artigos/80452> e <https://jus.com.br/artigos/80451>.

No âmbito dos contratos que envolvem operadoras de plano de saúde, a maior dificuldade parece residir na própria aferição da essência destes contratos. Seriam comutativos ou aleatórios? Nos planos familiares ou regulamentados pela Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98), cada vez mais raros e não disponíveis ao consumidor em geral, o caráter aleatório parece despontar de modo mais hialino.

Ou seja, o consumidor pagará as mensalidades correndo o risco de perder o dinheiro (geralmente espera por isso) se não tiver que se valer do plano, e a operadora joga com o risco de arcar com os custos se o consumidor tiver que se utilizar dos tratamentos, órteses, próteses, medicamentos, home care (desde que cobertos), se e o evento ocorrer.

Mas há uma tendência nos planos coletivos (há planos antigos não regulamentados mas deles não se cuida nesta abordagem sob este aspecto), em que a ANS tem um controle menor sobre o seu custo (Resolução nº 171 de 2008 e o número 171 parece ser meio cabalístico nele não se podendo fiar), em que operadoras passam a adotar como parâmetros critérios de revisão técnica ou sinistralidade, como meio de repasse quase que automático de custos de todo o sistema para os usuários, tenham eles se utilizado ou não do sistema – quase como que retirando a alea contratual, o que, em si mesmo, já poderia ser entendido como uma prática abusiva em detrimento de consumidores hipossuficientes, muitas vezes em situação de operabilidade.

Uma crise como esta, na humilde opinião deste professor (e lá se vão três décadas lecionando), pode muito bem ser entendida pelo enfoque do consumidor como uma situação de força maior. Isso porque, para o consumidor padrão (homem médio, o bônus pater famílias do direito quiritário romano ou o razonable man do direito anglo-saxão), deve ser compreendida como fator imprevisível e inevitável para a grande maioria das pessoas – e nos termos da análise conjunta dos artigos 393 e seu parágrafo único CC com o artigo 47 CDC, haveria abusividade, logo, nulidade absoluta em pretender atribuir ao consumidor hipossuficiente geralmente aderente, a assunção de tais riscos que são da expertise e previsibilidade própria da operadora (as normas do CDC são todas de ordem pública – artigo 1º do referido diploma).

Nada violaria mais a boa-fé objetiva do que uma empresa do ramo de saúde se dizer despreparada para lidar com epidemias e pandemias. Os consumidores destes planos, por fato de príncipe, sobretudo os empreendedores, estão sendo em grande parte impedidos de trabalhar de modo que, por estes fatos imprevisíveis e inevitáveis, a equação financeira ou impacto que estes contratos tinham em seus orçamentos se tornam muito gravosos, surgindo aí a oportunidade para a revisão (pelo princípio da preservação dos contratos, como decorrência da boa-fé a denúncia seria sempre a última ratio em casos como tal, como pode ser extraído do regime geral das teorias da imprevisão e da excessiva onerosidade – o próprio CDC, em seu artigo 6º, permite ao consumidor obter a revisão de prestações que se tornam muito gravosas em situação análoga prevista no Código Civil – artigos 317 e 478).

Por outro lado, operadoras, sobretudo nos casos de previsão contratual de critérios de sinistralidade, poderiam tentar vir a ser tentadas a aduzir que, em tempos de pandemia, seus custos operacionais, com preparação de vagas em stand by para UTI´s, elevado preço de insumos que estão sendo importados, posto que esgotados no mercado nacional (basta ficar no pequeno exemplo do álcool gel e das máscaras, o que não se dirá do restante) e outros fatores, teriam elevado os custos do negócio e que isso deveria ser repassado aos consumidores nos planos coletivos no próximo reajuste.

É preciso ficar atento porque, em primeiro lugar, a sinistralidade não é aceita sem qualquer limitação, nem mesmo num ambiente de normalidade em que o pacta sunt servanta seja a regra. Ora, este mecanismo de sinistralidade que permite à  operadora transferir os riscos da atividade originalmente assumidos mediante aumento das contraprestações mensais, faz com que haja vantagem excessiva frente aos consumidores, o que viola o advento das normas contidas nos artigos 39, V e art. 51, XIII do Código de Defesa do Consumidor, além de descaracterizar a própria natureza e base objetiva do contrato firmado, que pressupõe a possibilidade de prejuízo simultânea ao lucro – dito isso porque o que as operadoras querem fazer é substituir o caráter aleatório do contrato tornando-o comutativo somente para a operadora, o que viola prelados mínimos da essência de uma ideia de boa-fé objetiva (isso – esse tipo de estratagema, são as letrinhas miúdas que se deve conter no século XXI).

Se nem no ambiente de normalidade essas condutas são aceitas sem qualquer reserva, o que não se dirá no ambiente de pandemia e de força maior ? Pelo óbvio que se deva ter um cuidado de refrear o ímpeto e fúria nas tentativas de repassar esses custos da crise ao consumidor. Mas não é só !!!

Como sabido, tratamentos não podem ser interrompidos, se iniciados, por conta de eventual mora do consumidor (e, ainda mais, consumidores em mora devem ser expressamente notificados, de modo pessoal e não ficto dentro do lapso de sessenta dias sob pena de ineficácia da ruptura do contrato pela operadora). Isso em tempos de normalidade.

Em tempos de força maior, pelo óbvio que moras deverão ser reavaliadas eis que o conceito de justo motivo para a impontualidade, notadamente numa atividade em que o interesse público seja tão evidente (não aceitar isso seria levar essas pessoas todas para o SUS ou condená-las à morte o que é incompatível com as linhas constitucionais do direto privado que tempera a livre iniciativa e a livre concorrência com a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social) e a sobrecarga do SUS não parece, nem de longe, atender aos fins sociais a que a lei se destina e às exigências do bem comum (artigo 5º LINDB).

Como aponta o Código de Ética da Magistratura, juízes devem levar em conta as repercussões sociais que suas decisões possam vir a causar. Há que se ter extrema cautela. Na dúvida de que sejam dadas liminares garantindo-se assistência (não haverá irreversibilidade eis que, se o consumidor estiver errado ao final que se admita a cobrança dos valores devidos), evitando-se danos maiores (mortes, lesões irreversíveis pela falta de atendimento etc). Tudo há que ser feito em obediência a prelados de razoabilidade e proporcionalidade. A força maior imperará na assertividade das negociações para que consumidores continuem a ter atendimento.

A imposição de novos planos com restrições de direitos e garantias mínimas previstas na lei ou em resoluções da ANS como modo de garantir o atendimento, neste sistema emergencial seria, igualmente, medida de legalidade duvidosa, eis que a lei resta expressa quanto ao mínimo que uma operadora deva oferecer para continuar a se manter como apta a vender seus planos e tais normas devem ser compreendidas como cogentes eis que voltadas, via de regra (a exceção está na auto-gestão nos termos da modificação das Súmulas do STJ) ao mercado de consumo.

Na dúvida, o melhor caminho sempre será a consulta a um advogado, o que, se for feito preventivamente, melhor: eis que tornará o caminho da obtenção da proteção menos trabalhoso. Outra dica importante, em um país com um ânimo de taxação como o Brasil, reclamações deste mercado podem ser feitas não apenas ao Procon (é recomendável que lá também sejam feitas porque isso também serve como prova), mas podem ser denunciadas à Agência Nacional de Saúde – ANS (ans.gov. br) que poderá impor salgadas multas à operadora em casos de cancelamentos ou negativas de atendimento indevidas.  


Autor

  • Julio César Ballerini Silva

    Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Gaculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Julio César Ballerini. Coronavírus e contratos de plano de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6117, 31 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80635. Acesso em: 19 abr. 2024.