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A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e os novos marcos normativos da Lei n. 14.026/2020

Perspectivas da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.492

A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e os novos marcos normativos da Lei n. 14.026/2020: Perspectivas da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.492

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As novas atribuições cometidas à ANA agridem a autonomia federativa dos municípios, titulares do serviço público de saneamento básico?

A atual crise sanitária causada pela pandemia da COVID-19 torna ainda mais urgentes as mudanças propostas, na medida em que evidenciou a vulnerabilidade das pessoas que não dispõem de acesso a água potável, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos. Enquanto órgãos de saúde pública de referência no plano internacional e no Brasil recomendam que se lavem as mãos com frequência para evitar a contaminação com o coronavírus, temos 35 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada. Um grande e potencialmente letal paradoxo. O Brasil, em pleno século XXI, não pode aceitar ter condições de saneamento equivalentes àquelas que alguns países europeus já tinham no início do século XX. Com o novo marco legal, o País terá condições de, em período relativamente curto, saldar essa aviltante dívida que é fundamentalmente social, dada a multidimensionalidade de seus impactos. Aprovando neste momento o PL nº 4.162, de 2019, o Senado Federal estará não somente evitando, nos próximos anos, a morte de milhares de brasileiros, muitas deles ainda crianças, mas também reduzindo a pressão sobre o Sistema Único de Saúde, ao diminuir o número de internações provocadas pelo simples fato de que quase metade da população desse País, ainda que tenha acesso à cobertura de rede de telefonia celular, tem permanecido com os pés no esgoto. Esse momento é histórico. Os invisíveis, que não têm como manter estruturas de apoio para atuarem no processo de formação de políticas públicas, como é o caso de associações corporativistas, confiam, tão somente, nos seus 81 representantes nesta Casa para lhes garantir condições de saneamento compatíveis com padrões de vida do século XXI.

(senador Tasso Jereissati).[3]

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A ANA e o novo marco legal do saneamento básico; 3 As ADIs 1.842 e 4.454: o entendimento do STF; 4 A ADI 6.492: perspectivas e expectativas; 5 Conclusões


1 Introdução

O presente artigo tem como objeto as novas competências da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) cometidas pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, que atualizou o marco legal do saneamento básico. Neste texto, também visitaremos a ação direta de inconstitucionalidade n. 6.492[4] proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em face desse referido diploma legal, visando analisar os principais fundamentos e argumentos deduzidos naqueles autos, mormente no tocante às novas atribuições da ANA para instituir “normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico”.

Para uma prognose do que poderá suceder no julgamento da referida ADI 6.492, visitaremos a ação direta de inconstitucionalidade n. 1.842[5]e ação direta de inconstitucionalidade n. 4.454[6], feitos nos quais o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema da prestação do serviço público de saneamento básico. A partir do que decidido nesses mencionados feitos, e sobretudo analisando os principais fundamentos normativos e os relevantes argumentos jurídicos deduzidos nos votos dos ministros do Tribunal, será possível verificar qual o possível resultado dessa citada ADI 6.492.

A relevância jurídica, política, econômica, social, ambiental e humanitária do tema dispensa maiores esforços justificadores, pois a questão do saneamento básico envolve os interesses de todos os entes federativos e de toda a sociedade, razão pela qual é uma das pautas mais relevantes de políticas públicas no Brasil. Pedimos licença para achegar a seguinte passagem extraída da manifestação do deputado federal Geninho Zuliani[7]:

Sabe-se que o índice de morbidade e mortalidade relacionado ao saneamento básico pode ser ainda maior, visto que os dados apresentados são aqueles em que se pode relacionar a doença diretamente às condições sanitárias, mas se reconhece que o impacto do saneamento vai muito além das causas diretas já apontadas, pois a convivência diária com dejetos e águas contaminadas pode trazer inúmeras enfermidades que se manifestam a longo prazo.

Além do sofrimento pessoal, o impacto das doenças de veiculação hídrica também é direto na economia do País, em razão dos afastamentos do trabalho, gastos com internações, remédios etc. Pesquisa realizada pelo IBGE revelou que, no ano de 2013, houve quase 18 milhões de dias de afastamento do trabalho em decorrência de problemas gastrointestinais, uma grande parte, certamente, relacionada à falta de saneamento básico. Estima-se que o custo com dias pagos e não trabalhados, somado ao custo de internações hospitalares, chegue perto de R$1 bilhão por ano.

...

Para reverter essa situação, o Brasil precisa de investimentos da ordem de R$22 bilhões por ano. Ocorre que esse patamar nunca foi atingido nos últimos anos. De acordo com dados do Governo Federal, de 2011 a 2017, o Brasil investiu, anualmente, pouco mais da metade desse valor, sendo notória a dificuldade do setor público para a captação de recursos para investimentos no setor de saneamento. O alto grau de endividamento das empresas públicas, aliado à pouca capacidade de contrapartida com recursos próprios, inviabiliza a execução da maioria dos projetos de expansão de redes ou de melhoria da qualidade dos serviços prestados.

A falta de recursos para investimento no setor ocasiona também a deterioração da rede, elevando o índice de perdas de água produzida, que chegou a quase 40% no ano de 2017. Apenas para fins de comparação, nos países desenvolvidos esse índice não passa de 15%. Ou seja, além dos recursos necessários para expansão da cobertura dos serviços, é necessário investir também na manutenção das redes de água existentes para minimizar as perdas, que tornam o sistema ineficiente e provocam impacto significativo nas tarifas cobradas do usuário.

A ADI 6.492, no concernente à ANA, aponta suposta violação do princípio constitucional do federalismo. Tenha-se, no entanto, que segundo a Constituição, o saneamento básico é de competência comum da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, nos termos do art. 24, inciso IX. E, nos termos do art. 21, inciso XX, CF, compete à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos.

Daí que, seja pelos aspectos normativos (a complexidade jurídica e política do marco legal do saneamento no federalismo brasileiro) seja pelos aspectos fáticos (a imperiosa necessidade de implementação e concretização de medidas administrativas, ações governamentais e políticas públicas), essa nova competência da ANA, no tocante ao saneamento básico, merece uma reflexão tendo como pano de fundo a citada ADI 6.492, e como parâmetro as ADIs 1.842 e 4.454.


2 A ANA e o novo marco legal do saneamento básico

A Lei n. 14.026/2020, que atualizou o marco legal do saneamento básico, resulta do Projeto de Lei n. 4.162/2019. Tenha-se que antes desse citado PL 4.162/2019 houve uma pletora de proposições legislativas cuidando do tema “saneamento básico”, a demonstrar a insofismável relevância do tema. [8]

No tocante às novas atribuições da ANA, houve alteração da Lei n. 9.984, de 17 de julho de 2000, que criou essa Agência e estabeleceu as suas competências. Segundo essa novel legislação, a ANA instituirá normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras, observadas as diretrizes para a função de regulação estabelecidas na Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que vem a ser a Lei que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico. Nos termos desse marco legislativo (art. 4º-A), as normas de referência cuidarão:

I - padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico;  

II - regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, com vistas a promover a prestação adequada, o uso racional de recursos naturais, o equilíbrio econômico-financeiro e a universalização do acesso ao saneamento básico;  

III - padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços públicos de saneamento básico firmados entre o titular do serviço público e o delegatário, os quais contemplarão metas de qualidade, eficiência e ampliação da cobertura dos serviços, bem como especificação da matriz de riscos e dos mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das atividades;   

IV - metas de universalização dos serviços públicos de saneamento básico para concessões que considerem, entre outras condições, o nível de cobertura de serviço existente, a viabilidade econômico-financeira da expansão da prestação do serviço e o número de Municípios atendidos; 

V - critérios para a contabilidade regulatória; 

VI - redução progressiva e controle da perda de água;  

VII - metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados;

VIII - governança das entidades reguladoras, conforme princípios estabelecidos no art. 21 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007;   

IX - reúso dos efluentes sanitários tratados, em conformidade com as normas ambientais e de saúde pública; 

X - parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico; 

XI - normas e metas de substituição do sistema unitário pelo sistema separador absoluto de tratamento de efluentes; 

XII - sistema de avaliação do cumprimento de metas de ampliação e universalização da cobertura dos serviços públicos de saneamento básico; e 

XIII - conteúdo mínimo para a prestação universalizada e para a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento básico. 

A legislação dispõe que a implementação dessas normas de referência e a universalização dos serviços de saneamento básico ocorrerão de modo progressivo, em uma prudente disposição política, visto que seria irrealizável a imediata concretização desses mandamentos normativos, que resultaria em frustração de legítimas expectativas e erosão de respeitabilidade dessa política pública. A fim de garantir a viabilização dessa expectativa normativa, ficou estabelecido que a função de regulação do serviço de saneamento básico deverá ser desempenhada por autarquia pública dotada de independência decisória e autonomia administrativa, orçamentária e financeira, e que as suas decisões atenderão aos princípios de transparência, tecnicidade, celeridade e objetividade.

Por esse novo marco legal, as normas de referência deverão:

I - promover a prestação adequada dos serviços, com atendimento pleno aos usuários, observados os princípios da regularidade, da continuidade, da eficiência, da segurança, da atualidade, da generalidade, da cortesia, da modicidade tarifária, da utilização racional dos recursos hídricos e da universalização dos serviços;

II - estimular a livre concorrência, a competitividade, a eficiência e a sustentabilidade econômica na prestação dos serviços; 

III - estimular a cooperação entre os entes federativos com vistas à prestação, à contratação e à regulação dos serviços de forma adequada e eficiente, a fim de buscar a universalização dos serviços e a modicidade tarifária;  

 IV - possibilitar a adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais;   

V - incentivar a regionalização da prestação dos serviços, de modo a contribuir para a viabilidade técnica e econômico-financeira, a criação de ganhos de escala e de eficiência e a universalização dos serviços; 

VI - estabelecer parâmetros e periodicidade mínimos para medição do cumprimento das metas de cobertura dos serviços e do atendimento aos indicadores de qualidade e aos padrões de potabilidade, observadas as peculiaridades contratuais e regionais;   

VII - estabelecer critérios limitadores da sobreposição de custos administrativos ou gerenciais a serem pagos pelo usuário final, independentemente da configuração de subcontratações ou de subdelegações; e  

VIII - assegurar a prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.  

É de ver que, segundo essa novel legislação, as normas de referência estão contidas no paradigma do direito premial por meio de normas de incentivo, visto que essas normas visam, sobretudo, a universalização e a melhoria da qualidade dos serviços públicos de saneamento básico, e terão como destinatárias tanto as agências reguladoras quanto os titulares ou prestadores desses serviços que reputamos civilizatórios.

A legislação cometeu à ANA o papel de mediação, conciliação ou arbitragem nos conflitos que envolvam os titulares, os reguladores ou os prestadores dos serviços de saneamento básico. Também compete à ANA avaliar o impacto regulatório e o cumprimento das normas de referência, seja no plano da regulação ou da fiscalização, zelando por sua uniformidade e segurança jurídica, levando em consideração as peculiaridades locais ou regionais. Também se competirá à ANA estabelecer mecanismos de subsídios que permitam à população de baixa renda o acesso aos serviços de saneamento básico, inclusive com o eventual compartilhamento dos ganhos de produtividade. Para isso, também estão autorizados que se estabeleçam parâmetros e condições para investimentos na manutenção dos serviços inclusive na vigência dos contratos.

Além de atribuições eminentemente das referências regulatórias, caberá à ANA elaborar estudos técnicos para o desenvolvimento das melhores práticas regulatórias para os serviços públicos de saneamento básico, bem como guias e manuais para subsidiar o desenvolvimento das referidas práticas, promover a capacitação de recursos humanos para a regulação adequada e eficiente do setor de saneamento básico e contribuir para a articulação entre os planos nacionais de saneamento básico, de resíduos sólidos e de recursos hídricos. Ou seja, a ANA será o eixo de ligação e articulação entre os agentes, públicos e privados, de todo o Brasil, envolvidos nas ações e programas dessas aludidas políticas públicas.

Para garantir a universalização e a qualidade dos agitados serviços de saneamento básico, e a fim de viabilizar o acesso a fontes de financiamentos e ao acesso aos recursos federais, a ANA disponibilizará ao público a relação das entidades reguladoras e fiscalizadoras que adotam as suas normas de referência. Em homenagem ao “princípio da não-surpresa” e a fim de permitir uma adequada preparação das reguladoras e dos prestadores do serviço, a adoção e o cumprimento das normas de referência da ANA poderá ser gradual e periodicamente será verificada.

A lei veda aos dirigentes da ANA ter interesse direto ou indireto em empresas relacionadas aos seus objetivos operacionais, quais sejam, recursos hídricos, segurança de barragem e saneamento básico. Com efeito, as agências reguladoras sofrem um permanente assédio ora dos agentes de mercado, ora dos agentes governamentais, e correm o sério risco de serem capturadas total ou parcialmente por algumas dessas forças. Sem embargo dos riscos inerentes ao exercício de suas atividades operacionais, devem, a rigor, as agências reguladoras servirem aos legítimos e lícitos interesses dos serviços públicos regulados, na linha estabelecida pelas Leis n. 9.986, de 18 de julho de 2000, e n. 13.848, de 25 de junho de 2019.

Nessa toada, as inovações legislativas ao marco normativo do saneamento básico, mormente no que diz respeito às competências da ANA, visam criar as condições operacionais para que titulares, prestadores e reguladores desse serviço público possam atrair os investimentos financeiros necessários para viabilizar a sua universalização e a sua boa qualidade, sobretudo para as populações de baixa renda, que tanto necessitam dessa prestação civilizatória pública.


3 As ADIs 1.842 e 4.454: o entendimento do STF

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o mérito da ADI 1.842, decidiu que a titularidade para os serviços públicos de saneamento básico é do Município. Mas podem (ou devem) os Municípios adotar estratégias de ação cooperativa, via convênios ou consórcios ou quaisquer outros instrumentos administrativos ou políticos (regionalização ou metropolização), de sorte a permitir a universalização dos serviços públicos e sua adequada prestação. Da ementa do acórdão extraem-se as seguintes e mais relevantes passagens, que sumarizam os entendimentos que prevaleceram:

3. Autonomia municipal e integração metropolitana.

A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18 da CF/1988).

A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo.

O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999).

O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais.

4. Aglomerações urbanas e saneamento básico.

O art. 23, IX, da Constituição Federal conferiu competência comum à União, aos estados e aos municípios para promover a melhoria das condições de saneamento básico.

Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico.

A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal.

Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas.

A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal.

5. Inconstitucionalidade da transferência ao estado-membro do poder concedente de funções e serviços públicos de interesse comum.

O estabelecimento de região metropolitana não significa simples transferência de competências para o estado.

O interesse comum é muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução da função de saneamento básico por apenas um município pode colocar em risco todo o esforço do conjunto, além das consequências para a saúde pública de toda a região.

O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios.

Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto.

Nada obstante, a Corte decidiu modular os efeitos da aludida declaração de inconstitucionalidade para que não houvesse prejuízo aos usuários dos serviços públicos de saneamento básico, em medida de boa razão e judiciosa prudência, visto que a nulidade da legislação impugnada, com a sua imediata execução, poderia provocar o caos nesse relevante e valioso serviço público.

No julgamento da ADI 4.454, o STF declarou inconstitucional o seguinte preceito da Constituição do Estado do Paraná:

Os serviços públicos de saneamento e de abastecimento de água serão prestados por pessoas jurídicas de direito público ou por sociedade de economia mista sob controle acionário e administrativo do Poder Público Estadual ou Municipal

O voto vencedor da ministra Cármen Lúcia, relatora do feito, visitou a jurisprudência da Corte, bem como os dispositivos constitucionais pertinentes, assim como a legislação infraconstitucional sobre o tema, para concluir que o referido preceito constitucional paranaense violou a autonomia municipal, ao tornar obrigatória a prestação dos aludidos serviços públicos via pessoas jurídicas ou via empresas estatais, usurpando a competência municipal para legislar sobre o tema. Ademais, segundo a relatora, a disciplina geral sobre o tema é de competência da União Federal, cujas diretrizes nacionais estão fixadas na Lei n. 11.445/2007 e no Decreto n. 7.127/2010.

Do citado voto da relatora extraem-se as seguintes e elucidativas passagens:

5. As diretrizes nacionais para o saneamento básico foram fixadas na Lei n. 11.445/2007. Nessa lei se listam os princípios a serem observados na prestação dos serviços de saneamento básico, como: universalização do acesso; integralidade; adequação à saúde pública; proteção do meio ambiente; disponibilidade; consideração das peculiaridades locais e regionais; desenvolvimento urbano e regional; eficiência; transparência; controle social; segurança (art. 2º).

Pela Lei n. 11.445/2007, os titulares dos serviços públicos de saneamento podem delegar a organização, a regulação, a fiscalização e a própria prestação desses serviços (art. 8º). Se os serviços forem realizados por entidade não integrante da Administração Pública do titular, impõe-se a celebração de contrato público (art. 10). O serviço público deve atender a requisitos mínimos de qualidade, incluindo a regularidade e a continuidade de sua prestação e daqueles relativos aos produtos oferecidos, ao atendimento dos usuários e às condições operacionais e de manutenção dos sistemas, de acordo com as normas regulamentares e contratuais (art. 43).

No art. 38 do Decreto n. 7.217/2010, pelo qual é regulamentada a Lei n. 11.445/2007, disciplina-se a forma de prestação dos serviços de saneamento básico, que pode se dar: a) por órgão da Administração Pública direta ou por autarquia, empresa pública ou sociedade de economia mista integrante da Administração indireta; b) mediante concessão ou permissão precedida de licitação na modalidade concorrência pública; c) por gestão associada de serviços públicos, mediante contrato de programa autorizado por contrato de consórcio público ou por convênio de cooperação entre entes federados.

Forte nesses dois julgados, e lastreado na tradição jurisprudencial da Corte sobre o tema do saneamento básico, podemos concluir que a competência para legislar sobre o serviço público local de saneamento básico é do Município, mas compete à União Federal a edição de normas gerais sobre o tema. E, na linha da tradição do STF, dificilmente as normas locais ou estaduais se sobrepõe aos comandos normativos gerais, mormente em questões de políticas públicas sensíveis.


4 A ADI 6.492: perspectivas e expectativas

O ministro Luiz Fux, relator do feito, indeferiu a cautelar requestada pelo requerente por entender ausentes os pressupostos autorizadores de sua concessão. Pedimos licença para achegar algumas passagens dessa decisão:

A presente ação direta de inconstitucionalidade versa alegada inconstitucionalidade de dispositivos legais inseridos no contexto do novo marco legal do saneamento básico, considerados os princípios federativo e da universalização do acesso aos serviços públicos essenciais. Não estão presentes, in casu, os requisitos necessários para concessão da tutela de urgência. O saneamento compreende o abastecimento de água potável, o esgotamento sanitário, a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos, e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Além de fundamental para a dignidade humana, o acesso universal ao saneamento configura premissa básica de saúde pública e agrega benefícios ao meio ambiente, ao mercado de trabalho e à produtividade de uma economia. Sua essencialidade foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas, ao declará-lo um direito humano essencial para o gozo pleno da vida e de todos os outros direitos humanos (Res. A/RES/64/292 da ONU). Nada obstante, os números ostentados pelo Brasil são vergonhosos: mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à agua tratada, mais de 100 milhões não dispõem da cobertura da coleta de esgoto (46,85%) e somente 46% do volume gerado de esgoto no país é tratado, como apontam os dados oficiais recentes trazidos aos autos. A realidade alarmante de precariedade sanitária no Brasil exige uma atuação imediata, concertada e eficiente do poder público. O perigo de dano, que se configuraria no risco de perecimento do direito em caso de demora na prestação jurisdicional, afasta-se desde logo pelo cenário lastimável em que atualmente se encontra o acesso da população brasileira a esses serviços. A manutenção do status quo perpetua a violação à dignidade de milhares de brasileiros e a fruição de diversos direitos fundamentais. É como reconhece o próprio Requerente, ao aduzir que “quanto à irreparabilidade dos danos emergentes dos atos impugnados, evidencie-se que a situação atual per se já está a causar um amplo espectro de danos à população brasileira”. Some-se que a norma estipula um cronograma de implementação, cujos prazos dilargados afastam a necessidade de urgente suspensão de sua eficácia por tutela de urgência. Mesmo a obrigatoriedade de implantação de disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos até 31 de dezembro de 2020, de que trata o artigo 11 da Lei 14.026/2020, pode ser adiada pelos Municípios, respeitadas as condições legais. Sem que esteja presente o periculum in mora, não há que se conceder a medida acauteladora requerida. Tampouco resta evidenciada, in casu, a probabilidade do direito, no que se refere a um suposto conflito federativo. Como reiteradamente afirmado por este Tribunal, a Federação não pode servir de escudo para se deixar a população à míngua dos serviços mais básicos à sua dignidade, ainda que a pluralidade e especificidades locais precisem ser preservadas. A Constituição Federal expressamente estabelece, de um lado, a competência privativa da União para instituir diretrizes para o saneamento básico (art. 21, XX) e para instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos (art. 21, XIX) e, de outro, a competência comum aos entes para promover a melhoria das condições do setor (art. 23, IX). A par dessas previsões, são implicados ao saneamento diversos outros temas que competem a todos os entes, o que fundamenta a atribuição ao Sistema Único de Saúde da participação na formulação da política e da execução das ações de saneamento básico (art. 200, IV). Em que pese o saneamento seja tradicionalmente reconhecido como serviço público de interesse local, o que confere titularidade aos municípios (art. 30, V, da CRFB), por vezes o interesse comum determina a formação de microrregiões e regiões metropolitanas para a transferência de competências para Estados (art. 25, §3º, CRFB) ou o estabelecimento pela União de critérios técnicos de cooperação - mormente quando os Municípios, isoladamente, não detêm condições de prestar o serviço em todas as suas fases de forma eficiente e com a melhor relação qualidade e custo para o consumidor (BARROSO, Luís Roberto. Saneamento básico: competências constitucionais da União, Estados e Municípios. Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 38 n. 153 jan./mar. 2002, pp. 265-267).

Da leitura desse excerto, conquanto seja uma análise preliminar e perfunctória, podemos perceber que a tendência do relator é no sentido de julgar improcedentes os pedidos deduzidos na petição inicial. Com efeito, o Partido Democrático Trabalhista – PDT ajuizou a citada ADI 6.492 e, no mérito,  requereu no ponto que de fato interessa:[9]

V) Seja a presente Ação Direta de Inconstitucionalidade conhecida e julgada procedente para que seja declarada, ao final, a inconstitucionalidade dos artigos Art. 3º, 5º, 7º e 11º e 13º, dentre outros por arrastamento, todos da Lei 14.026/2020, todos da Constituição Federal de 1988, com eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação à Administração Pública e ao Poder Judiciário, e, consequentemente, a sua extirpação do ordenamento jurídico pátrio. Outrossim, para que também se possa conferir interpretação conforme à Constituição à nova redação conferida pela Lei nº 14.026/2020 ao art. 22, IV, da Lei 11.445/2007 para que além da licitante vencedora não poder excluir das avenças os Municípios que não darão lucro, as tarifas subam de acordo com o salário mínimo, para fins de conferir efetivo prestígio aos princípios constitucionais que orbitam pela temática posta à apreciação, notadamente para que o discurso da universalização do serviço de saneamento básico não repouse apenas na seara retórica, de modo a garantir que os cidadãos não sejam onerados com a intensificação da mercancia da água, direito fundamental inalienável e irrenunciável.  

O requerente sustenta as suas pretensões, basicamente, em dois fundamentos: a) suposta violação do princípio constitucional da autonomia federativa dos Municípios e b) a ameaça ao direito público subjetivo coletivo ao saneamento básico, universal e de boa qualidade.

Sem embargo dos bem lançados argumentos deduzidos na petição inicial, em nossa avaliação os pleitos devem ser rechaçados e os fundamentos normativos, assim como os argumentos jurídicos, esgrimidos pelo requerente ne se sustentam, seja em face da Constituição, seja em face dos pertinentes julgados do STF, como bem assinalou o ministro Luiz Fux no seu despacho indeferindo a liminar requestada. Tenha-se, ademais, que o próprio requerente reconhece a situação caótica, desumana e incivilizada do atual estágio do modelo de saneamento básico brasileiro e que urge uma ação urgente e contundente da República (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) em sintonia com os agentes privados do mercado em favor de uma guinada nesse tema.

Nessa perspectiva, as novas atribuições cometidas à ANA não agridem a autonomia constitucional federativa dos Municípios, posto que estes continuam como titulares do serviço público de saneamento básico, mas devem estar em harmonia com as diretrizes nacionais que serão estabelecidas pela ANA, em conformidade com a Constituição e com a legislação infraconstitucional. E também não há qualquer ameaça ao direito público subjetivo coletivo à universalização e qualidade dos serviços de saneamento básico, mormente para as populações de baixa renda, sobretudo porque seja na legislação, seja na prática regulatória e fiscalizatória da Agência, há uma forte preocupação com o usuário/destinatário dessa civilizatória e humanizadora prestação de serviços, na linha democrática de atuação subsidiária do Estado.


5 Conclusões

A Lei 14.026/2020, que atualiza o marco legal do saneamento básico, consiste em poderoso avanço civilizatório da sociedade brasileira, fruto de um saudável concerto político para enfrentar e resolver o dramático problema de universalização e de boa qualidade desse serviço público.

A tradição jurisprudencial do STF reconhece a titularidade do serviço aos Municípios, mas não proíbe que esses se reúnam para que consigam prestá-lo de modo universal e com boa qualidade para as suas respectivas populações, sobretudo em face da complexidade e dos altos investimentos necessários para essa finalidade.

Com lastro na Constituição, na jurisprudência do STF e na realidade, acreditamos que a ADI 6.492 deverá ser julgada improcedente, pois a ANA, ao contrário de usurpar as competências municipais ou de colocar em risco esse direito público subjetivo coletivo, será a principal fiadora e garante da sua expansão nacional e da boa qualidade para os seus usuários, mormente para as populações mais carentes.


Notas

[3] JEREISSATI, Tasso. Relatório e voto no Projeto de Lei n. 4.162/2019. Senado Federal. Brasília, 2020 (www.senado.leg.br).

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.492. Plenário. Relator ministro Luiz Fux. Brasília, 2020 (www.stf.jus.br).

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.842. Plenário. Relator ministro Luiz Fux. Redator ministro Gilmar Mendes. Brasília, 1998 (www.stf.jus.br).

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.454. Plenário. Relatora ministra Cármen Lúcia. Brasília, 2010 (www.stf.jus.br).

[7] ZULIANI, Geninho. Relatório e voto. Projeto de Lei n. 3.261/2019 (posteriormente apensado ao Projeto de Lei n. 4.162/2019). Câmara dos Deputados. Brasília, 2019 (www.camara.leg.br).

[8] Para comprovar essa asserção visite www.camara.leg.br e www.senado.leg.br e lance o termo “saneamento básico” como argumento de busca.

[9] AGRA, Walber de Moura. Petição inicial. Ação direta de inconstitucionalidade n. 6.492. Supremo Tribunal Federal. Brasília, 2020 (www.stf.jus.br).


Autores

  • Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

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  • Christianne Dias Ferreira

    Christianne Dias Ferreira

    Presidente da Agência Nacional de Águas; professora universitária, mestra e doutoranda em Direito das Políticas Públicas, Centro Universitário de Brasília.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins; FERREIRA, Christianne Dias. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e os novos marcos normativos da Lei n. 14.026/2020: Perspectivas da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.492. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6378, 17 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87464. Acesso em: 28 mar. 2024.