Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/90904
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O papel das autarquias locais, das freguesias e das regiões autônomas no planejamento urbano em Portugal

O papel das autarquias locais, das freguesias e das regiões autônomas no planejamento urbano em Portugal

Publicado em . Elaborado em .

As competências e responsabilidades acerca do planejamento urbano em Portugal são bem repartidas entre autarquias locais, freguesias e regiões autônomas, servindo de exemplo ao federalismo no Brasil, ainda que se trate de um Estado unitário.

1. O papel das Autarquias locais no planejamento urbano

As autarquias locais, segundo a estrutura do direito administrativo português, são pessoas coletivas públicas, de base territorial (assentam numa fração do território), que asseguram a prossecução de interesses próprios do respetivo agregado populacional, através de órgãos próprios, por estes eleitos. Por isso se diz que são pessoas coletivas públicas de população (visam a satisfação de interesses próprios das pessoas aí residentes. São autarquias locais, no continente, as freguesias, os municípios e, ainda, as regiões administrativas (ainda não criadas em Portugal) e, nas Regiões Autônomas, as freguesias e os municípios[1].

Como explica Fernando Alves Correia, as atribuições dos municípios, também chamados concelhos, são os fins ou os interesses próprios da respectiva população, isto é, os assuntos ou as tarefas que se relacionam, especifica e diretamente, com aquela comunidade local, e que por ela devem ser prosseguidos em auto-responsabilidade. É o direito e a capacidade efetiva de os municípios regularem e gerirem, sob sua responsabilidade, nos termos da Constituição e da lei (arts. 6º, nº 1, 235º, nº 2, e 237º, nº da CRP), uma parte importante dos assuntos públicos caracterizam, de harmonia com o art. 3º, nº 1, da Carta Europeia de Autonomia Local (1985), e o conceito de autonomia local (ou de autonomia das autarquias locais, que engloba a autonomia dos Municípios). A autonomia das autarquias locais é um elemento essencial da estrutura unitária do Estado português (art. 6º, nº 1, da CRP) e constitui um limite material da revisão da Constituição [al. n) do art. 288º da CRP][2].

Ainda segundo o supracitado autor, não há uma linha de separação rigorosa entre os interesses nacionais, prosseguidos pelo Estado, e os interesses municipais, realizados pelos Municípios. Muitas tarefas administrativas constituem, na verdade, um condomínio de atribuições do Estado e dos Municípios, na medida em que elas co-desenvolvem, simultaneamente, interesses gerais, estaduais ou nacionais e interesses locais, em particular dos Municípios (como sucede com as matérias de ordenamento do território e do urbanismo – art. 65º, nº 4 da CRP). Além disso, muitas delas são (ou devem ser) levadas a cabo em regime de colaboração ou de cooperação entre o Estado e os Municípios[3].

O ordenamento do território e do urbanismo, nas lições de João Miranda, constituem duas matérias em que se revela complexa a delimitação das áreas de intervenção das várias entidades públicas portadoras de interesses públicos. Conforme já explicitamos, foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional, no Ac. nº 432/93, de 13 de julho, que o ordenamento do território e do urbanismo são domínios abertos à intervenção concorrente do Estado e das autarquias. Ainda segundo este autor, não se pode hoje convocar o princípio da autonomia local para defender a existência de matérias exclusivamente da competência dos órgãos autárquicos, tanto mais que o critério dos assuntos locais para delimitar as matérias que as autarquias intervêm isoladamente deve ser posto de lado em função da dificuldade em apurar o seu sentido. Raríssimas são as competências dos órgãos dos municípios que não têm uma repercussão supralocal e, por outro lado, qualquer intervenção do Estado no território não pode descurar as competências dela decorrentes para os municípios abrangidos[4].

Para João Miranda, no domínio específico do planejamento, a Constituição portuguesa aponta também em seu artigo 65.º, nº 4, para a intervenção concorrente de várias entidades públicas. Com efeito, postula que o Estado, as regiões autônomas e as autarquias locais, definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planejamento[5].

Ainda segundo este autor, pode-se dizer que, tendencialmente, existe uma linha de continuidade entre as políticas de ordenamento do território e de urbanismo, devendo esta última política desenvolver as linhas gerais traçadas pela primeira. Não se deve, porém, retirar desta prioridade lógica do ordenamento do território sobre o urbanismo que o primeiro pode consumir o segundo, sob pena de se cair no erro de considerar que tudo é ordenamento do território.

O art. 8.º, nº 1 da Lei n.º 31/2014, de 30 de maio dispõe que o Estado, as regiões autônomas e as autarquias locais têm o dever de promover a política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, no âmbito das respetivas atribuições e competências, previstas na Constituição e na lei[6].

Compete ao Estado (Administração Central): Através do Governo, sob coordenação do ministro do ordenamento do território: a) elaborar o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (o qual já foi elaborado, através da Lei n.º 58/2007, de 4 de setembro); b) elaborar os Planos Setoriais[7] (Plano Setorial da Rede Natura 2000); c) elaborar os Planos Especiais[8] de Ordenamento do Território; d) elaborar os Planos Regionais[9] de Ordenamento do Território, sob deliberação das Comissões de Coordenação Nacional do Porto, Coimbra, Lisboa, Évora e Faro.

Compete às Regiões Autônomas obedecerem às diretrizes traçadas no programa nacional da política de ordenamento do território, além de elaborar Planos Intermunicipais e Municipais de Ordenamento do Território.

Como recorda André Folque, no âmbito das autarquias locais, as competências estão repartidas entre a Assembleia Municipal e a Câmara Municipal que, como órgão executivo do município, a Câmara Municipal tem relevantes competências urbanísticas, bem como o presidente da Câmara[10].

As atribuições do Município – reguladas, atualmente na Lei n.º 75/2013 – são definidas, nos termos dos artigos 6º, nº 1, e 237º, nº 1, da CRP, de harmonia com os princípios da descentralização administrativa (ou seja, mediante a transferência de um núcleo substancial de tarefas do Estado para os Municípios, tendo por finalidade reforçar a sua atuação, aprofundar a participação dos cidadãos na vida pública, promover a eficiência e a eficácia da gestão pública e assegurar os direitos dos administrados) e da subsidiariedade (isto é, com base no reconhecimento de as funções administrativas devem ser exercidas pelo nível da administração melhor colocado para as prosseguir com racionalidade, eficácia e proximidade aos cidadãos)[11].

O papel das autarquias locais no planejamento urbano mostra-se não apenas relevante, mas imprescindível a um correto ordenamento dos espaços urbanos e territoriais, uma vez que os municípios (em especial) apresentam-se como as unidades administrativas, com melhores condições para o reconhecimento das necessidades da população neles residentes, de modo que as políticas públicas por si empreendidas, ou por si elaboradas, detém maiores chances de realizar, com eficiência, os objetivos constitucionalmente previstos para a concretização um efetivo Estado de Direito Democrático.

Esta proximidade da população frente aos órgãos responsáveis pela elaboração e execução de políticas de ordenamentos dos espaços urbanos e territoriais é colocado como a essência do princípio da subsidiariedade. Sobre ele, J.J. Gomes Canotilho leciona que, em articulação com a cláusula da integração europeia (art. 7º/6) e com o princípio do Estado Unitário (art. 6º/1), o princípio da subsidiariedade adquiriu (depois da revisão de 1992, no que respeita a União Europeia, e depois da revisão de 1997, no que se refere à estrutura vertical-territorial do Estado Unitário) dimensão estruturante da ordem constitucional portuguesa. O princípio da subsidiariedade densificado a nível de relações Estado-membro/União Europeia, e do Estado Unitário/regiões e autarquias locais, é expressão de um princípio geral de subsidiariedade que pode formular-se assim: as comunidades ou esquemas organizatório-políticos superiores só deverão assumir as funções que as comunidades menores não podem cumprir da mesma forma, ou de forma mais eficiente. O princípio da subsidiariedade se articula com o princípio da descentralização democrática: os poderes autonómicos regionais e locais das regiões autônomas e das autarquias locais devem ter competências próprias para regular e tratar as tarefas e assuntos das populações das respectivas áreas territoriais.[12]

Rui Manoel Amaro Alves ensina que o quadro jurídico português atribui um papel importante aos Municípios no planejamento e ordenamento do território e na promoção do desenvolvimento. O elenco das funções que o Estado tem atribuído às Autarquias Locais, no quadro dos princípios da descentralização, subsidiariedade e parceria, tem vindo a aumentar ao longo do tempo. O desempenho dessas funções tem sido realizado no quadro de uma partilha contratual, em que a vontade do Estado prevalece sobre a das Autarquias Locais, que se veem obrigadas a anuir, sob pena de sofrerem sanções ou não conseguirem financiamentos[13].

Como explica Paulo V. D. Correia, os governos a nível central e local devem ter a vontade política necessária a, permanentemente, desenvolverem e porem em prática políticas de solo adequadas, tanto para o espaço urbano, quanto para o espaço rural, que devem constituir, de fato, a pedra angular dos seus esforços com vistas à melhoria da qualidade de vida em estabelecimentos humanos (Nações Unidas/HABITAT, Vancouver, 1976)[14].

A Lei nº 75/2013, de 12 de setembro, importante por tratar do regime jurídico das autarquias locais, dispõe, em seu artigo 3º, que a estas prosseguem as suas atribuições através do exercício pelos respetivos órgãos das competências legalmente previstas, designadamente: a) de consulta; b) de planejamento; c) de investimento; d) de gestão; e) de licenciamento e controlo prévio; f) de fiscalização[15].

As autarquias locais concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um “âmbito de democracia” (Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com um princípio básico de que toda a pessoa tem o direito de participar na adoção das decisões coletivas que a afetam. A Constituição define-as como “pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam à prossecução de interesses próprios das populações respectivas” (cfr. Constituição da República Portuguesa, art. 237º). Não lhes traça um figurino de mera administração autônoma do Estado. Deixa claro o “sentido político que adquire o exercício das suas funções” (Jorge Miranda), que as autarquias “constituem também uma estrutura do poder político” (Gomes Canotilho e Vital Moreira). No programa constitucional (cf. Constituição da República Portuguesa, “princípios fundamentais”, artigo 6º, e título VII, “poder local”), as normas que organizam o poder autárquico assumem uma justificação eminentemente democrática[16].

Por fim, pode-se afirmar que compete às autarquias locais, em síntese: a) elaborar os Planos Intermunicipais de Ordenamento do Território; b) elaborar os Planos Municipais de Ordenamento do Território, compreendendo os Planos Diretores Municipais, os Planos de Urbanização e os Planos de Pormenores (os quais podem ter como modalidades: os planos de intervenção no espaço rural, os planos de pormenor de reabilitação urbana e o plano de pormenor de salvaguarda).


2. O papel das freguesias no planejamento urbano

Como já destacado em linhas anteriores, as freguesias são parte da estrutura das autarquias locais, juntamente com os municípios e as regiões administrativas (que ainda não foram criadas).

As freguesias dispõem de atribuições nos domínios do equipamento rural e urbano, do abastecimento público, do ambiente e salubridade, do desenvolvimento e do ordenamento urbano e rural, entre outros[17]. Estas atribuições estão alicerçadas na Lei 75/2013, de 12 de setembro – lei que estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais, entre outras questões.

Esta lei em comento, Lei nº 75/2013, de 12 de setembro, dispõe de informações preciosas acerca do papel das freguesias na gestão pública como um todo, e, em especial, no ordenamento dos espaços urbanos e territoriais. Dispõe, em seu artigo 7º, que as freguesias possuem atribuições nos seguintes domínios: 1) a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações, em articulação com o município; 2) outras, designadamente nos seguintes domínios: a) Equipamento rural e urbano; b) Abastecimento público; c) Educação; d) Cultura, tempos livres e desporto; e) Cuidados primários de saúde; f) Ação social; g) Proteção civil; h) Ambiente e salubridade; i) Desenvolvimento; j) Ordenamento urbano e rural; k) Proteção da comunidade[18].

O nº 3 do mesmo artigo 7º assevera que as atribuições das freguesias abrangem, ainda, o planejamento, a gestão e a realização de investimentos nos casos e nos termos previstos na lei.

Em relação às juntas de freguesia, o artigo 16º, deste mesmo diploma (Lei nº 75/2013, de 12 de setembro), dispõe serem suas competências (nº 1), com o recorte que atende ao objetivo desta obra: a) Elaborar e submeter à aprovação da assembleia de freguesia as opções do plano e a proposta do orçamento, assim como as respetivas revisões; b) Executar, por empreitada ou administração direta, as obras que constem das opções do plano e tenham dotação orçamental adequada nos instrumentos de gestão previsional aprovados pela assembleia de freguesia; c) Aprovar operações urbanísticas em imóveis integrados no domínio patrimonial privado da freguesia, após parecer prévio das entidades competentes;  d) Discutir e preparar com instituições públicas, particulares e cooperativas que desenvolvam a sua atividade na circunscrição territorial da freguesia protocolos de colaboração, designadamente quando os respetivos equipamentos sejam propriedade da freguesia e se salvaguarde a sua utilização pela comunidade local; e) Submeter à assembleia de freguesia, para efeitos de autorização, propostas de celebração dos protocolos de colaboração referidos na alínea anterior; f) Pronunciar-se sobre projetos de construção e de ocupação da via pública, sempre que tal lhe for requerido pela câmara municipal; g) Participar, nos termos acordados com a câmara municipal, no processo de elaboração dos planos municipais de ordenamento do território; h) Colaborar, nos termos acordados com a câmara municipal, na discussão pública dos planos municipais do ordenamento do território; i) Facultar a consulta pelos interessados dos planos municipais de ordenamento do território; j) Gerir e manter parques infantis públicos e equipamentos desportivos de âmbito local; l) Proceder à manutenção e conservação de caminhos, arruamentos e pavimentos pedonais; m) Proceder à administração ou à utilização de baldios sempre que não existam assembleias de compartes[19].

Como destaca José Casalta Nabais, a freguesia, embora formalmente constitua uma autarquia independente da formada pelo município em que se integra materialmente, porém, não passa de uma estrutura de desconcentração personalizada do respectivo município. O que é evidente no respeitante às freguesias localizadas na sede da autarquia municipal, sobretudo quando se trata de cidades ou centros urbanos importantes. Pois, relativamente a essas freguesias, não se vislumbram quaisquer interesses locais específicos e diferentes dos do município. Na verdade, tais freguesias servem basicamente como estruturas de desconcentração (personalizada) dos serviços municipais, designadamente nos municípios de maior dimensão[20].

Eis, em síntese, o papel das freguesias no ordenamento dos espaços urbanos e territoriais, no que tange a um planejamento para o desenvolvimento sócio-ambiental e econômico de áreas, na menor escala do planejamento estatal. As freguesias, na realidade brasileira, correspondem aos bairros de uma cidade. Uma das principais diferenças entre as freguesias, na realidade portuguesa, e os bairros, na realidade brasileira é que, neste último caso, o Estado brasileiro não concede aos bairros responsabilidades específicas em termos de ordenamento territorial ou urbano, pois as menores unidades de planejamento e de execução da política urbana brasileira são os municípios. Os bairros, podem, em seu interesse, e como forma de melhor organizar-se, instituir associação de moradores ou associação de bairro, que possuem a natureza jurídica de pessoa jurídica de direito privado, mesmo que com interesse público a ser reconhecido pelo Poder Público. No entanto, sua atuação não vincula a Administração Pública e nem é vinculada por esta, uma vez que não há definição de competências constitucionais para os bairros no direito brasileiro.

Por fim, vale frisar que as Freguesias (na realidade portuguesa) não têm atribuições em matéria de planejamento, embora, como vimos, tenham algumas na área da intervenção urbana.


3. O papel das regiões autônomas no planejamento urbano

As regiões autônomas são também denominadas regiões autônomas dos Açores e da Madeira, e configuram um caso de administração autônoma territorial. Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias recordam que as regiões autônomas não têm autonomia apenas do ponto de vista administrativo, mas também no que respeita ao exercício da função legislativa (através de decretos legislativos regionais) e da função política. No entanto, não é por terem mais poderes, para além dos administrativos, que deixam de ser pessoas coletivas de direito público[21].

A Constituição da República Portuguesa diz, em seu artigo 225º, que o regime político-administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, fundamenta-se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares (nº 1). Esta autonomia visa à participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e a defesa dos interesses regionais, bem como do reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses.[22]

Trata-se de um modelo de gestão que privilegia os traços marcantes das culturas presentes nestas duas ilhas, estabelecendo um quadro de organização administrativa que favorece a autogestão, estando esta adstrita, no entanto, aos contornos estatais definidos no Texto Constitucional Português. As regiões autônomas, neste sentido, possuem autonomia administrativa e legislativa para se auto gerirem, mas não possuem soberania, uma vez que esta pertence, unicamente, ao Estado português como um todo.

Sobre a questão da soberania e da autonomia política e administrativa das ilhas da Madeira e Açores, José Casalta Nabais recorda que o Estado português se apresenta, antes de mais, moldado pelo princípio do Estado unitário. O que significa que temos apenas um Estado, não se verificando, por conseguinte qualquer divisão, em termos verticais, do exercício da soberania, havendo um único centro estadual e cujos órgãos cabe o exercício de toda a soberania[23].

Neste sentido, a Constituição portuguesa afirma que a autonomia político-administrativa regional não afeta a integridade e soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição (nº 3)[24].

As regiões autônomas possuem autonomia legislativa para legislarem sobre ordenamento de seu território, entre outras matérias, desde que estas não estejam reservadas aos órgãos de soberania (art. 228º da Constituição da República). A Constituição Portuguesa assevera que os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos de governo próprio, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, visando, em especial, à correção das desigualdades derivados da insularidade (art. 229º, nº 1)[25]. Esta última disposição tem por objetivo estabelecer um canal para a correção de distorções entre o Estado Central e as Regiões Autónomas, derivadas de processos históricos e de espacialidades próprios. Tal anseio tem como finalidade garantir, diretamente, a unidade do território português e, indiretamente, do território europeu, mesmo que uma separação geográfica imponha uma separação de fato.

Das lições de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos extrai-se que o Estado português é um Estado unitário regional periférico (art. 6º, 288º, alínea o da CRP); não existe, portanto, uma pluralidade de entes dotados de soberania na ordem interna, mas sim regiões periféricas com autonomia administrativa, política e legislativa. Esta forma de Estado justifica a existência e a estrutura de administrações públicas regionais dos Açores e da Madeira[26].

Jorge Miranda fala em complementaridade, interdependência e colaboração do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais (arts. 65º, nº 4, 229º, nº 1, alínea c, e 257º da Constituição, bem como arts. 73º, nº 3, 248º e 267º, nº 1, segunda parte)[27] no que tange ao ordenamento do território e a tutela do meio ambiente, sendo estas tarefas inatas de cada uma destas parcelas administrativas do todo soberano estatal.

Deste modo, a unidade do Estado português é limitada, desde logo, pela autonomia insular, o que comporta o reconhecimento, a nível político, das regiões autónomas, dotadas de um regime jurídico-administrativo próprio, traduzido em os Açores e a Madeira terem a seu cargo, na respectiva região autónoma, as funções, legislativa e política (ou “governamental”), bem como a correspondente função administrativa, que são exigidas pela promoção e defesa dos interesses regionais. O que configura o Estado português como um Estado parcialmente regionalizado[28].

Como decorre de preceitos constitucionais, o urbanismo, como função pública pertence, ou é da responsabilidade simultânea do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais. A razão de ser desta repartição de atribuições, como já destacamos em momento anterior, decorre do fato de o urbanismo convocar, simultaneamente, interesses gerais, estaduais ou nacionais – cuja tutela é cometida pela Constituição ao Estado -, interesses das Regiões Autónomas [artigo 6º, nº 2, 225º, nº 2, e 228º, da Constituição] e interesses locais, cuja responsabilidade cabe aos municípios, de harmonia com o princípio da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização administrativa (artigos 6º, 235º, e 237º da Constituição). Trata-se, pois, de um domínio onde se verifica uma concorrência de atribuições e competências entre a Administração estadual, regional (das regiões autónomas) e municipal[29].

Esta gestão administrativa coordenada, como opera sem entraves, oportuniza a realização do princípio da boa administração. Este princípio, que por muito tempo, segundo Suzana Tavares da Silva, esteve associado unicamente a gestão financeira do Estado, hoje é entendido em um espectro mais amplo, que abarca toda a gama de atuações do Estado, tendo como “farol” o Texto Constitucional pátrio. Neste sentido, esta autora ensina que, hoje, o princípio da boa administração encerra uma multiplicidade de dimensões (e não apenas a boa gestão financeira) materiais e procedimentais atinentes à globalidade das atuações dos órgãos da União, pretendendo acolher diversos fundamentos para recurso contra os atrasos procedimentais, incumprimentos e outras manifestações de “má-administração”, entre as quais incluem também os casos em que exista má fé das entidades administrativas, violação do dever de diligência, falta de fiscalização ou controle deficiente, entre outros[30].

Por outro lado, como ainda recorda esta autora, a boa administração surge também associada à good governance (livro branco – COM 2001/428), ou seja, à forma como as competências (poderes) são exercidos no nível europeu, pressupondo-se o respeito por um conjunto de parâmetros pré-definidos: linguagem acessível nas decisões; coerência nas medidas reveladas pela coordenação na prossecução de uma finalidade comum; participação democrática na formação de decisões; clara delimitação de poderes e esferas de atuação, com correspondente identificação do grau de responsabilização[31].

O papel das regiões autónomas no planejamento e ordenamento dos espaços urbanos e territoriais encontra-se bem claro, a teor do artigo 65º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais, definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planejamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística[32].

Tal atribuição, como já afirmamos em momento anterior, está demonstrada, de forma clara, também na Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei nº 48/98, de 11 de agosto), em seu artigo 8º, quando este afirma que o Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais devem promover, de forma articulada, políticas ativas de ordenamento do território e de urbanismo, nos termos das suas atribuições e das competências dos respectivos órgãos, de acordo com o interesse público e no respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos[33].

Eis que está bem identificada a função e as tarefas das regiões autônomas, no que tange ao ordenamento e planejamento dos espaços urbanos e territoriais que estejam sob sua jurisdição. Por fim, resta consignar que a atuação administrativa das regiões autônomas, assim como deve proceder ao Estado central e às autarquias locais, deve ocorrer de modo a concretizar os princípios gerais da política de ordenamento do território e do urbanismo.     


Referências

ALVES, Rui Manuel Amaro. Políticas de planeamento e ordenamento do território no Estado português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa e lei do tribunal constitucional. 8. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CEDOUA/FACULDADE DE DIREITO DE COIMBRA/IGAT. Direito do urbanismo e das autarquias locais. Coimbra: Almedina, 2006.

CORREIA, Fernando Alves. Alguns conceitos de direito administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001.

CORREIA, Paulo V. D. Políticas de solos no planeamento municipal. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

MENDES, Jorge Barros. Fundamentos e princípios do direito do urbanismo. In: CEBOLA, Cátia Marques; MENDES, Jorge Barros; FERRÃO, Marisa Caetano; ALMEIDA, Susana (coord.). Direito do urbanismo e do ambiente: estudos compilados. Lisboa: Quid Juris, 2010.

MIRANDA, João. A dinâmica jurídica do planeamento territorial: a alteração, a revisão e a suspensão dos planos. Coimbra: Coimbra editora, 2002.

MIRANDA, Jorge. Escritos vários sobre direitos fundamentais. Estoril: Principia, 2006.

MONTEIRO, Cláudio; MIRANDA, João (org.). Colectânea de legislação de direito do urbanismo. Coleção legislação. Lisboa: Associação académica da faculdade de direito da universidade de Lisboa, 2009.

OLIVEIRA, Fernanda Paula; DIAS, José Eduardo Figueiredo. Noções fundamentais de direito administrativo. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2015.

NABAIS, José Casalta. A autonomia financeira das autarquias locais. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Nº 82. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.

PORTUGAL. Lei nº 31/2014, de 30 de maio. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2123&tabela=leis&so_miolo=&>. Acesso em 30 de outubro de 2015.

PORTUGAL. Lei nº 75/2013, de 12 de setembro. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1990&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo=>. Acesso em 23 de julho de 2015.

PORTUGAL. Lei nº 75/2013, de 12 de setembro. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1990&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo=>. Acesso em 23 de julho de 2015.

SILVA, Suzana Tavares da. Direito administrativo europeu. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.

SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de. Direito administrativo geral: introdução e princípios fundamentais. Tomo I. 3. ed. Alfragide: Dom Quixote, 2008.


[1] OLIVEIRA, Fernanda Paula; DIAS, José Eduardo Figueiredo. Noções fundamentais de direito administrativo. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2015, pág. 74-75.

[2] CORREIA, Fernando Alves. Alguns conceitos de direito administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, pág. 65.

[3] CORREIA, Fernando Alves. Alguns conceitos de direito administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, pág. 66.

[4] MIRANDA, João. A dinâmica jurídica do planeamento territorial: a alteração, a revisão e a suspensão dos planos. Coimbra: Coimbra editora, 2002, pág. 35-36.

[5] MIRANDA, João. A dinâmica jurídica do planeamento territorial: a alteração, a revisão e a suspensão dos planos. Coimbra: Coimbra editora, 2002, pág. 36.

[6]PORTUGAL. Lei nº 31/2014, de 30 de maio. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2123&tabela=leis&so_miolo=&>. Acesso em 30 de outubro de 2015.

[7] Ora denominados programas setoriais, pela nova legislação.

[8] Ora denominados programas especiais, pela nova legislação.

[9] Ora denominados programas regionais, pela nova legislação.

[10] MENDES, Jorge Barros. Fundamentos e princípios do direito do urbanismo. In: CEBOLA, Cátia Marques; MENDES, Jorge Barros; FERRÃO, Marisa Caetano; ALMEIDA, Susana (coord.). Direito do urbanismo e do ambiente: estudos compilados. Lisboa: Quid Juris, 2010, pág. 51.

[11] CORREIA, Fernando Alves. Alguns conceitos de direito administrativo. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, pág. 66.

[12] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, pág. 362-363.

[13] ALVES, Rui Manuel Amaro. Políticas de planeamento e ordenamento do território no Estado português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, pág. 404.

[14] CORREIA, Paulo V. D. Políticas de solos no planeamento municipal. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pág. 15.

[15]PORTUGAL. Lei nº 75/2013, de 12 de setembro. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1990&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo=>. Acesso em 23 de julho de 2015.

[16] Acórdão nº 432/93, de 18 de agosto. In: MIRANDA, Jorge. Jurisprudência do tribunal constitucional escolhida. Volume III. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1997, págs. 175-176.

[17] Disponível em: <http://www.vpgr.azores.gov.pt/InformacaoTec/Publicacoes/GEleitoLocal/9.pdf> Acesso em 23 de julho de 2015.

[18]PORTUGAL. Lei nº 75/2013, de 12 de setembro. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1990&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo=>. Acesso em 23 de julho de 2015.

[19] Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1990&tabela=leis&ficha=1&pagina=1&so_miolo=>. Acesso em 23 de julho de 2015.

[20] NABAIS, José Casalta. A autonomia financeira das autarquias locais. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Nº 82. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006, pág. 25.

[21] OLIVEIRA, Fernanda Paula; DIAS, José Eduardo Figueiredo. Noções fundamentais de direito administrativo. 4. ed. Coimbra: Almedina: 2015, pág. 76.

[22] CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa e lei do tribunal constitucional. 8. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pág. 143.

[23] NABAIS, José Casalta. A autonomia financeira das autarquias locais. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Nº 82. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006, pág. 18.

[24] CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa e lei do tribunal constitucional. 8. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pág. 143.

[25] CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa e lei do tribunal constitucional. 8. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pág. 148-149.

[26] SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de. Direito administrativo geral: introdução e princípios fundamentais. Tomo I. 3. ed. Alfragide: Dom Quixote, 2008, pág. 129.

[27] MIRANDA, Jorge. Escritos vários sobre direitos fundamentais. Estoril: Principia, 2006, pág. 340.

[28] NABAIS, José Casalta. A autonomia financeira das autarquias locais. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Nº 82. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006, pág. 19-20.

[29] CEDOUA/FACULDADE DE DIREITO DE COIMBRA/IGAT. Direito do urbanismo e das autarquias locais. Coimbra: Almedina, 2006, pág. 144

[30] SILVA, Suzana Tavares da. Direito administrativo europeu. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, pág. 27.

[31] SILVA, Suzana Tavares da. Direito administrativo europeu. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, pág. 28.

[32] CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa e lei do tribunal constitucional. 8. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pág. 50.

[33] MONTEIRO, Cláudio; MIRANDA, João (org.). Colectânea de legislação de direito do urbanismo. Coleção legislação. Lisboa: Associação académica da faculdade de direito da universidade de Lisboa, 2009, pág. 21.


Autor

  • Carlos Sérgio Gurgel da Silva

    Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel da. O papel das autarquias locais, das freguesias e das regiões autônomas no planejamento urbano em Portugal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6544, 1 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90904. Acesso em: 25 abr. 2024.