Conforme amplamente divulgado nos meios de comunicação, a Polícia Federal encontrou, na casa do ex-Ministro da Justiça de Bolsonaro e ex-Secretário de Justiça do Distrito Federal, Anderson Torres, minuta de decreto para instaurar estado de defesa no TSE e alterar o resultado das eleições democráticas de 30 de outubro de 2022.
Torres, que passa férias em Orlando (EUA), teve a prisão decretada nesta semana pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, em razão de sua suposta responsabilidade (que será devidamente apurada) com relação aos atos terroristas que ocorreram no fatídico 8 de janeiro, na esplanada dos Ministérios, em que golpistas revestidos do espírito de ódio e vandalismo, partiram para a destruição dos espaços físicos do Alvorada, do Congresso Nacional, e, principalmente, do Supremo Tribunal Federal, já que, no dia dos fatos, ele ainda respondia como Secretário de Justiça do DF.
O referido decreto traz em sua ementa o seguinte resumo:
“Decreta Estado de Defesa, previsto nos arts. 136, 140 e 141 da Constituição Federal, com vistas a restabelecer a ordem e a paz institucional, a ser aplicado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, para apuração de suspeição, abuso de poder e medidas inconstitucionais e ilegais levadas a efeito pela Presidência e membros do Tribunal, verificados através de fatos ocorridos antes, durante e após o processo eleitoral”.1
Após tal documento vir à tona, o ex-ministro foi às suas redes sociais negar a autoria do documento, e alegar que iria descartá-lo. Mas essa alegação não colou e nem está colando, visto que, se não foi ele o autor de um documento com teor manifestamente antidemocrático (porque atenta diretamente contra o resultado das eleições e contra o TSE) deveria tê-lo destruído assim que o recebeu (se é que deveria mesmo ter recebido), e não guardado para, depois, triturá-lo.
O que tem sido triturado, conforme se vê todos os dias, é o espírito democrático de inúmeros brasileiros, que, incentivados por postagens, falas e ações antidemocráticas flertam com um natimorto golpe de Estado.
Veja-se que, curiosamente, Torres guardava em sua casa um documento que prenunciava a existência de desordem e instabilidade institucional. Parece que pressentiu o que aconteceria em 8 de janeiro na praça dos Três Poderes da República.
Com efeito, o art. 136 da Constituição Federal dispõe que
“O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”.
É certo que o novo Presidente da República, eleito democraticamente, com segurança e lisura das urnas, jamais decretaria essa excepcionalidade constitucional, o que leva a crer, que na verdade a minuta estava sendo preparada para um golpista, que, após a tomada do poder, decretaria o estado de sítio.
Guardar esse tipo de documento em vez de destruí-lo imediatamente, evidencia conduta antidemocrática e inaceitável, notadamente quando se trata de um (então) Ministro de Estado da Justiça.
A “minuta do fim do mundo” dispõe em seu art. 3º, que:
“Art. 3º Na vigência do Estado de Defesa:
I – Qualquer decisão judicial direcionada a impedir ou retardar os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral terá seus efeitos suspensos (...);
II – a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que poderá promover o relaxamento, em caso de comprovada ilegalidade, facultado ao preso o requerimento de exame de corpo de delito à autoridade policial competente;
III – a comunicação será acompanhada de declaração do estado físico e mental do detido no momento de sua atuação;
IV – a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;
V – é vedada a incomunicabilidade do preso.
Parágrafo único. O presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral constituir-se-á como executor da medida prevista no inciso I, do §3º do art. 136, da Constituição Federal.2
De início, é possível inferir que tal decreto tinha como real escopo inviabilizar a atividade jurisdicional, notadamente porque previu a suspensão de qualquer decisão judicial que estivesse em desacordo com os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral, e não só isso: autorizava expressamente a prisão de qualquer pessoa, incluindo membros do Tribunal Superior Eleitoral que divergissem dos trabalhos dessa Comissão.
O flerte com a prisão de Ministros do TSE (neles incluídos os do STF), bem como a escalada contra o resultado democrático das urnas, e ainda, o desejo de ressurreição de uma ditadura militar no Brasil foi o que levou milhares de golpistas à praça dos três Poderes em 8 de janeiro de 2022.
Documento como o ora discutido, não poderia de maneira nenhuma estar guardado na casa ou em qualquer lugar que fosse de um representante de Estado. Ressalte-se, que Torres afirma, que recebeu essa minuta quando ainda era Ministro da Justiça do então Presidente derrotado Messias Jair Bolsonaro, mas não indica quem a entregou, não há registro de recebimento com carimbo, data, rubrica, ou qualquer outra identificação que evidencie que realmente foi um terceiro quem lhe passou essa minuta antidemocrática, e não que ele a tenha redigido.
Ao sair do Ministério da Justiça, o ex-ministro foi nomeado secretário de segurança pública do DF em 2/1/2023, dia posterior à posse do atual Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que, em 1º/1/2023 realizou a maior festa da democracia na esplanada do Ministério, cognominada “Festival do Futuro”, que contou com a presença de um público estimado em 300 mil pessoas3, e transcorreu em paz e em segurança.
Ricardo Cappelli, interventor na segurança pública do DF nomeado pelo Presidente Lula achou no mínimo estranho Torres ter assumido a função de secretário de Segurança Pública no DF no dia 2/1/2023, exonerado e trocado quase todo o comando da pasta, e viajado de férias, quando, sequer, estava em momento apto a gozar do período de afastamento.
Afirmou que Anderson “Viajou, inclusive, sem estar de férias. As férias dele, publicadas no Diário Oficial, valiam a partir do dia 9. Então no dia 8, o secretário de segurança pública do Distrito Federal ainda era o senhor Anderson Torres”.4
E ressaltou que:
“É muito estranho que o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal assuma a sua função no dia 2, exonere e troque todo o comando, quase todo o comando da secretaria de segurança pública do Distrito Federal e viaje, e alguns dias depois aconteça o que aconteceu aqui em Brasília. Isso é coincidência?”.
Fato é que a minuta do decreto de estado de defesa encontrado na residência de Torres contém teor manifestamente antidemocrático. Atenta contra as eleições. Atenta contra as instituições públicas e seus representantes. Atenta contra a própria democracia. Por isso, deve ser devidamente sopesada pelo poder judiciário no momento de responsabilizar todos os que se põem contra o Estado Democrático de Direito. Não é uma simples minuta. Tal como foi apelidado o inquérito das fake news (que freou inúmeros outros atos ilegais), é a minuta do “decreto do fim do mundo”.
Notas
Disponível em <https://www.metropoles.com/brasil/veja-minuta-de-decreto-encontrada-na-casa-de-torres-para-questionar-eleicao>. Acesso em 13/01/2023.
Constituição Federal. Art. 136, I, § 3º: “a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial”.