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O transexual padece de disforia de gênero, consistindo numa inadequação entre o estado psíquico e o biológico, sendo necessária a realização do procedimento cirúrgico de transgenitalização para redesignação do estado sexual dele, a fim de promover essa adequação.
Quanto à mudança de nome e de sexo do transexual, isso é impossível para parte da doutrina mais conservadora, sob o fundamento de que LRP é omissa quanto a essa possibilidade, sendo numerus clausus. O segundo argumento é que o aspecto cromossômico é que deve prevalecer. Além do mais, a alteração do nome pelo juiz causaria insegurança jurídica, por exemplo, no caso de casamento, esse se daria entre pessoas do mesmo sexo, o que é vedado pelo Código Civil.
Outra controvérsia é saber se o transexual, ao participar de um concurso público para delegado civil, participará do teste físico com a identidade masculina ou feminina. E se, nas olimpíadas, se identificará como homem ou mulher, sabendo-se que aquele apresenta uma estrutura genética mais favorável; não haverá afronta ao princípio da isonomia quando da competição?
Pode-se concluir que a solução em tela não está na aplicação ou não da lei, concepção mecânica, lógico-dedutiva, ultrapassada. Então, o conflito tem por base a colisão de princípios, que poderá ser solucionada pela hermenêutica contemporânea, cabendo a avaliação do caso concreto.
A visão hermenêutica de Alexy parece mais adequada. Esse teórico propõe a avaliação dos elementos extraprincipiológicos como, por exemplo, fatos, regras, circunstâncias sociais e culturais, de forma que haja pesos a serem considerados no momento da escolha do princípio a ser aplicado ao caso concreto.
Diante desse modelo hermenêutico, em situações extremas como a presente, deve prevalecer a interpretação do direito mais adequada ao caso concreto, sucumbindo o interesse particular, aplicando-se a técnica da ponderação ao caso concreto, de forma a funcionalizar o desenvolvimento e a realização da pessoa humana.
Cabe também salientar que a jurisprudência vem apontando alternativas para a pacificação desse caso emblemático. O STJ vem argumentando a possibilidade de alteração do nome e do sexo do transexual, sendo que o primeiro fundamento é o art. 5º, VI, da CR/88, que delineia o direito fundamental à orientação sexual. Vinculado a esse posicionamento, tem-se o direito à diferença dos que se encontram à margem da sociedade, devendo-se integrá-lo ao seio social, não o fazendo forçosamente, e respeitando-se os direitos dos minoritários e excluídos. Por fim, entende-se que, se não muda o nome, a pessoa está sendo instrumentalizada pela sociedade, reforçando-se a discriminação.
Na verdade, o interesse maior a ser atingido pelo direito é a felicidade do ser humano, porquanto é esse o fim de todo o ordenamento jurídico. Diante disso, é oportuno questionar: qual é o interesse público a ser tutelado: o dos particulares de boa-fé ou daquele que apresenta uma doença que pode levar ao suicídio?
É de sabença geral que cabe ao Estado a proteção da vida do ser humano de forma ampla. Poder-se-ia afirmar que o atual posicionamento do STJ vai de encontro aos fundamentos da nossa Carta Magna? O entendimento desse órgão atende ao princípio da isonomia?
Diante da releitura do Código Civil de 2002, pautado na presunção da boa-fé, da lealdade, da honestidade do ser humano, é possível fundamentar as decisões de alteração registral do prenome do transexual na presunção de má-fé?
Essas são algumas questões que demandam uma releitura do posicionamento jurisprudencial brasileiro, de forma a propiciar a realização do ser humano no âmbito da sociedade, extirpando o ranço criado de transexualismo.
Não há espaços para tratamentos discricionários em uma sociedade como a nossa, que proclama a democracia e a igualdade de todos, independentemente de raça, cor, credo, origem e religião, e sob essa visão maximalista do direito, que reflete a sociedade complexa contemporânea.
A questão é mais profunda, tendo em vista que o direito registral intervém diretamente na confecção do ato jurídico (art. 6º, inciso II, da Lei nº 8.935/95), pois visa não só a garantir o direito das partes, mas também a segurança jurídica e a eficácia jurídica dos atos, conforme o art. 1º da Lei nº 8.935/95.
Diante disso, mandar retirar a averbação de transexual do assento de nascimento, sob o argumento de que fere a dignidade da pessoa humana dele, é questionável, pois o registro civil retrata a realidade, ou seja, transexual é o estado que indica a sexualidade de uma pessoa que tem uma anatomia e um desejo diverso da carga genética.
Válido questionar se caberia ao cônjuge que descobre ter se casado com um transexual alegar erro essencial relativo à outra pessoa, para anular o casamento sob fundamento da insuportabilidade da vida em comum, pois o erro essencial se dá quando a pessoa se casa enganada quanto à outra, em outras palavras, tinha falsa percepção da realidade, emitindo uma vontade não esclarecida em virtude do equívoco. Entretanto, no caso em tela, o cônjuge acreditava que estava contraindo núpcias com uma mulher, por exemplo, não cabendo alegar posteriormente identidade diversa, para justificar o erro, sendo o casamento válido, sem qualquer equívoco.
Vê-se que ao proteger-se a dignidade da pessoa humana do transexual, poder-se-ia ofender outra dignidade. Como se sabe nenhum direito é absoluto, nem mesmo os que envolvem a personalidade, podendo relativizar-se visando à proteção da coletividade.
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Notas
- Alexy, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997, p. 83.
- Galuppo, Marcelo Campos. Princípios jurídicos e a solução de seus conflitos – a contribuição da obra de Alexy. Revista da Faculdade Mineira de Direito da Puc Minas, n. 2 , v. 1, 1998, p. 174.