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A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73)

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12/04/2009 às 00:00
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9 - A posição doutrinária conservadora

Verifica-se uma resistência da doutrina conservadora brasileira em admitir a mudança de nome e sexo do transexual, pois o registro deve ser preciso e regular, constituindo a expressão da verdade. Para essa corrente, a operação de mudança de sexo atribui ao interessado um sexo que não tinha nem poderá ter, não se atingindo o fim da procriação, não havendo que se falar em homem ou mulher.

Para ilustrar o disposto, colacionam-se as explanações dos professores Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes (2007):

(...) A resistência maior diz com a retificação do registro de sexo, sob o argumento de que a cirurgia seria apenas cosmética, operando, uma transformação apenas aparente, sem realizar uma verdadeira mudança de sexo, uma vez que não haveria alteração nos órgãos internos.

Há uma corrente doutrinária intermediária à qual se filiam Caio Mário da Silva Pereira, Luíz Flávio Borges D’Urso, que admitem a retificação do registro, desde que haja referência às informações anteriores à realização da cirurgia de transgenitalização.

Eis o que considera o estudioso Luíz Flávio no artigo O Transexual, a Cirurgia e o Registro, na Revista Jurídica Síntese:

(...) poder-se-ia admitir a retificação do registro para o sexo aparente, desde que ficasse consignado o sexo, nome e demais informações anteriores que foram retificadas. Ao que parece, tal medida não impediria o constrangimento que se tenta evitar, mas continuaria a garantir nosso sistema, dando segurança a seus registros!


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A contrario sensu, observa-se uma tendência à mitigação desse entendimento conservador, pautando-se os argumentos nas garantias constitucionais da dignidade humana, cuja interpretação deve considerar o ser humano integral, agregando-se o estado psíquico, objeto de proteção estatal. Assim sendo, faz-se necessária a mudança de nome e de sexo do transexual para a devida adequação à realidade vivenciada por ele, pois é papel do legislador constituinte a satisfação precípua da felicidade geral estatuída no art. 3º, III, da Carta Magna vigente.

Para a jurista Maria Berenice Dias (2006, p. 120), a sexualidade humana é plurivetorial; não diz respeito apenas ao aspecto biológico (instrumental), mas a aspectos somáticos, psicológicos e sociais, sendo papel do direito abarcar o aspecto plural do ser humano, nestes termos: "(...) Como os fatos acabam se impondo ao Direito, a rigidez do registro identificatório da identidade sexual não pode deixar de curvar-se à pluralidade psicossomática do ser humano".

Berenice Dias (2006, p.124) completa: "A inadequação do nome ao registro gera um desajuste psicológico, afronta ao comando constitucional, revelando severa violação aos direitos humanos."

Segundo a visão da jurista Maria Helena Diniz (2002, p. 301-302),

das retificações de prenome e de sexo do requerente, respectivamente para "Entendemos que deve haver a adequação do prenome ao novo sexo do transexual operado sem qualquer referência discriminatória na carteira de identidade, de trabalho, no título de eleitor, no CPF etc. O mandado judicial de retificação deveria, então, ordenar não só a averbação à margem do registro masculino" ou "feminino" (e não transexual!) O Estado atual do Biodireito. 2. ed. São Paulo:. Saraiva, 2002.

É válido acrescentar as palavras dos juristas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2007, p. 125):

(...) o fundamento autorizador da permissão de mudança do estado sexual no registro civil, após a cirurgia de transgenitalização, é de ordem constitucional, buscando assegurar a preservação da dignidade humana e da igualdade substancial, diretrizes da Carta Maior brasileira.

Há, ainda, posicionamento favorável à retificação registral para adequação do estado civil do transexual. Quanto aos terceiros que incorrerem em erro essencial ao contrair casamento por erro, poderiam anulá-lo, com fulcro no art. 1550, III, por vício da vontade, afastado qualquer prejuízo.

Assim dispôs Henrique Olegário (2005, p. 20):

(...) Dizer igualmente que a omissão da informação acima poderia induzir um terceiro, com quem este vier a se casar, a erro essencial (CC 2002, art. 1557) é valer-se de argumento menor, quando se está em jogo o direito à dignidade do ser humano. Se mais a mais, não estaremos diante de nulidade e sim de ato anulável, cuja medida saneadora a própria lei codificada já prevê (CC, 2002, art. 1550, III).

É oportuno acrescentar as palavras de Flávio Tartuce, que assume posição semelhante à explanada acima:

Tudo isso justifica as razões pelas quais entendemos que deve ocorrer a alteração do registro do nome. Como conseqüência, deve nele constar como sexo o feminino e não a qualificação de transexual ou transgênero como entendem alguns doutrinadores. Essas denominações, não enquadradas em sexo masculino ou feminino, podem ser tidas até como mais discriminatórias do que a manutenção do nome anterior.

Entendemos que o argumento pelo qual terceiros de boa-fé podem ser induzidos a erro pelo transexual operado não pode prosperar.(...)

Nesse contexto, em situações tais, deve o transexual estar movido pela boa-fé, sob pena até de sua conduta ser enquadrada dentro do conceito de abuso de direito, previsto no art. 187 do novo Código Civil, a ensejar a sua responsabilização civil. (artigo: Mudança do nome do transexual. Flávio Tartuce. Pesquisa realizada no dia 9/12/08. www.flaviotartuce.adv.br⁄secoes⁄artigos⁄tartuce_transexual.doc)

Ademais, o fundamento de inviabilidade de alteração do registro de nascimento do transexual em função da demanda de proteção do terceiro de boa-fé, pressupondo-se a má-fé do transexual com quem se relaciona, contraria as diretrizes teóricas do Código Civil atual, entre elas o princípio da eticidade, que preconiza a boa-fé objetiva nas relações contratuais entre particulares, sendo que esse princípio extravasa a seara contratual, determinando ética, honestidade, transparência, comportamento com retidão, que respeita as expectativas da outra parte, sendo a idéia desse standard inserido no Código Civil.


11 - Via processual para a ação de redesignação do estado sexual

Cabe salientar que os posicionamentos jurisprudenciais são esparsos, não há que se falar em uma consolidação de entendimento em nossos Tribunais Superiores, mas já se percebe uma mudança de paradigma de interpretação jurisprudencial na qual, no passado, predominava forçosamente a resistência à alteração da identidade do transexual.

Apesar de o Judiciário do Estado de Minas Gerais apresentar-se resistente à alteração registral do sexo e do nome do transexual, conforme se verifica pelos Embargos Infringentes nº 1000.00.296.076-3⁄001, o relator e o vogal foram vencidos. Entendeu-se pela impossibilidade jurídica do pedido, com fulcro na Lei nº 6.015/73:

O certo é que isso envolve questão de Direito Natural, e envolve razoabilidade, dispensando especificação na lei. Sexo sempre foi determinado pela natureza, no momento em que a pessoa nasce, apresentando não apenas os caracteres sexuais secundários e externos, mas conformação cromossômica definidora de um ou de outro sexo.

A identificação que se exige seja lançada no registro é exatamente para a individualização da pessoa, de maneira que fique a mesma conforme com a natureza. Se assim não fosse, não haveria necessidade e nem motivo para tal indicação no registro civil.

Assim, quando o legislador fala em referência ao sexo no assento de nascimento, o faz, evidentemente, se reportando ao sexo biológico, e não ao sexo psicológico ou ao sexo de eleição.

A partir daí, convém repisar, resta clara a impossibilidade de se lançar, num registro, originalmente ou por modificação, indicação identificadora de sexo diverso do gênero da pessoa, determinado pela natureza, ou seja, por sua conformação cromossômica.

Como colocar, num registro civil, que uma pessoa que mantém a carga genérica compatível com determinado sexo pertença ao sexo oposto?

Fazer isso, como já demonstrado, é falsear a verdade. É dizer que o sol é lua, ou que a noite é dia.

Como bem destacado no voto do eminente Desembargador Almeida Melo, proferido na sessão anterior, há evidente impossibilidade jurídica.

Como se vê, longe de qualquer postura preconceituosa, a conclusão é eminentemente técnica, baseada em considerações de natureza científica, e também jurídicas; tudo aliado a raciocínio lógico.

Resta induvidosa a constatação de que não existe, no caso, qualquer circunstância legal autorizadora da pretendida alteração de registro. Seja quanto ao sexo, seja no que diz respeito ao nome.

Se a humanidade está passando por modificações modernizadoras – e isso é fato – o que importa é que, enquanto não houver modificação legislativa, as vedações expressas na lei não podem ser ignoradas.

Torna-se instável e perigosa a sociedade em que os juízes decidem, não com a lei, mas segundo suas próprias consciências, ainda que contrariamente à lei.

Todos nós desejamos ver a Justiça modernizada, com conceitos avançados e progressistas; mas não vejo como assim agir sem a sustentação legal.

Uma coisa é interpretar de maneira benevolente, progressista ou ampliativa, um determinado texto legal; outra coisa é autorizar aquilo que a lei expressamente veda, criando norma permissiva que o legislador ainda não criou.

A fundamentação para uma decisão negativa – repito - é eminentemente jurídica; deixadas de lado as considerações de natureza pessoal ou sentimental, incabíveis em se tratando de um julgamento judicial.

E não se venha dizer que essa decisão é antiga e proferida em época em que vigorava situação fática e jurídica diversa; porque não é. A única alteração que se invoca como ocorrida reside nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina, que cuidam da possibilidade de realização da cirurgia e não da alteração registral.

Quanto à alteração legislativa que modificou o teor do artigo 58 da Lei dos Registros Públicos – também mencionada na sustentação oral, se mostra aqui irrelevante, porque a situação vivenciada nestes autos ali não se enquadra. O embargante está pretendendo a mudança de seu nome, não porque o nome que tenha seja feito, anti-natural ou ridículo, mas por não comprovada inadequação ao sexo original. (Embargos Infringentes nº 1000.00.296.076-3⁄001,TJMG, 4ª Câmara Cível, relator: Carreira Machado, data de julgamento: 22-04-04,data de publicação:08-06-2004, www.tjmg.gov.br , consulta 12-12-08)

Sobre a imutabilidade registral em tela, cita-se o voto do Desembargador Relator, Almeida Melo, na AC nº 1.000.00.296.076-3⁄000, tendo sido dado provimento à apelação formulada pelo MP, nestes termos:

Walter Ceneviva (Lei de Registros Públicos Comentada, 8ª edição, Saraiva, 1993, São Paulo, p.115) transcreve, em sua obra, parte do Acórdão nº 154.678, proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que se consigna:

Não se deve confundir a retificação do prenome com a sua mudança, nem mesmo com alteração propriamente dita. Na mudança substitui-se, na alteração modifica-se o que era certo e definitivo, sem qualquer eiva de erro.

Ensina também Walter Ceneviva que, no requerimento, alegando exposição ao ridículo, o interessado deve: a) afirmar que o prenome o submete ao riso e ao escárnio dos demais; b) explicar porque, subjetivamente, sente-se ridículo; c) comprovar, no seu meio social, o afirmado ridículo (p. 115).

Em verdade, a causa do constrangimento, alegada pelo apelado, não é o seu prenome, que é adequado a seu sexo, mas, sim, a falta de correspondência entre a atual aparência e seu sentimento psicológico. (www.tjmg.gov.br , data de julgamento: 20/3/03, data de publicação:2/4/03, consulta dia 12/12/08, 4ª Câmara Cível).

Por outro lado, têm-se inúmeras decisões do Sul, que autorizam a modificação do nome e do sexo sob a justificativa de que o direito à identidade sexual não se apóia no instrumento, mas na realidade sexual. Ademais, segundo o TJRS, a LRP autoriza a mudança de prenome que causa constrangimento, havendo amparo legal:

Portanto, resulta estreme de dúvidas que, diante da excepcionalidade do caso em tela, é de prevalecer à regra da imutabilidade o direito à alteração do prenome, por força do art. 58 da Lei 6.015/73. Inclusive, tem-se por desnecessária prova a respeito das situações vexatórias vivenciadas pelo recorrente, sendo do conhecimento de todos os constrangimentos diários pelos quais passam pessoas como o apelante.

A exteriorização da condição de transexual, nos termos requeridos pelo Ministério Público ad quem, mostra-se descabida. Tomando-se por base toda a ordem de fatores que envolvem a presente alteração de registro civil, consoante explicitado na fundamentação acima, a publicização da condição de transexual, além de ser discriminatória, sujeitaria o recorrente às mesmas situações de preconceito e discriminação pelas quais vem passando até agora.

Dessa forma, o Ofício do Registro Civil somente deverá informar a respeito dos motivos que ensejaram a retificação mediante pedido do próprio interessado ou em atendimento à requisição judicial.

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(Apelação Cível 700.116.911-85, www.tjrs.gov.br, Relatora: Maria Berenice Dias, Data de julgamento:5⁄4⁄06, publicação no DJ do dia 17⁄4⁄06, pesquisa realizada no dia 7-12-08, 7ª Câmara Cível).

Saliente-se que esse é o entendimento do TJSP, neste sentido:

E a Constituição em vigor inclui, entre os direitos individuais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5o, X). Reside aqui o fundamento legal autorizador da mudança do sexo jurídico, pois sem ela ofendida estará a intimidade do autor, bem como sua honra. O

constrangimento, a cada vez que se identifica, afastou o autor de atos absolutamente corriqueiros em qualquer indivíduo, pelo medo da chacota. A busca da felicidade, que é direito de qualquer ser humano, acabou comprometida. (AC 165.157.4-500, relator: Boris Padron Kauffmann, 5º Câmara de Direito Privado de Férias, data de registro: 17/4/01, www.tj.sp.gov.br)

Discute-se, ainda, a proteção dos terceiros de boa-fé que se relacionem com o transexual. Diante disso, o STJ tem entendimento intermediário, autorizando a retificação do registro de nascimento do transexual, constando dele a averbação de autorização judicial para a alteração, sendo permitida a extração de certidão de inteiro teor, desde que haja autorização judicial:

Não se pode esconder no registro, sob pena de validarmos agressão à verdade que ele deve preservar, que a mudança decorreu de ato judicial, nascida da vontade do autor e que tornou necessário ato cirúrgico complexo. Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada para o reconhecimento do direito do autor. Conheço do especial e lhe dou provimento para determinar que fique averbado no registro civil que a modificação do nome e do sexo do recorrido decorreu de decisão judicial. (RESP 678933⁄RS, relator: Carlos Alberto Menezes Direito, terceira turma, Data de julgamento:22/3/07,data de publicação: 2/5/07, DJ, p 571, consulta: 10/11/08, www.stj.gov.br )

Insta ressaltar que a tendência é de adotar o entendimento do STJ.

Cabe ressaltar que a jurisprudência brasileira vem avançando no que tange à hermenêutica, tendo contribuído forçosamente para a solução dos hard cases, através de um processo de ponderação principiológica, conforme o caso concreto, abandonando-se a rígida dogmática tradicional, o que se pode designar como o "Começo da história" nas palavras de Luiz Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos.

A jurisprudência produzida a partir da Constituição de 1988 tem progressivamente se servido da teoria dos princípios, da ponderação de valores e da argumentação. A dignidade da pessoa humana começa a ganhar densidade jurídica e a servir de fundamento para decisões judiciais. Ao lado dela, o princípio instrumental da razoabilidade funciona como a justa medida de aplicação de qualquer norma, tanto na ponderação feita entre princípios quanto na dosagem dos efeitos das regras. (Barroso, Luiz Roberto; Barcellos, Ana Paula. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003. pesquisa realizada no dia 4/10/08)

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Sobre a autora
Patricia da Cunha Gurgel

Advogada militante na área cível, especialmente Direito Militar. Bacharel em Direito pela PUC Minas. Especialização em Direito Público pela PUC Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GURGEL, Patricia Cunha. A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2111, 12 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12614. Acesso em: 19 abr. 2024.

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