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A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73)

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12/04/2009 às 00:00
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O transexual padece de disforia de gênero, consistindo numa inadequação entre o estado psíquico e o biológico, sendo necessária a realização do procedimento cirúrgico de transgenitalização para redesignação do estado sexual dele, a fim de promover essa adequação.

Quanto à mudança de nome e de sexo do transexual, isso é impossível para parte da doutrina mais conservadora, sob o fundamento de que LRP é omissa quanto a essa possibilidade, sendo numerus clausus. O segundo argumento é que o aspecto cromossômico é que deve prevalecer. Além do mais, a alteração do nome pelo juiz causaria insegurança jurídica, por exemplo, no caso de casamento, esse se daria entre pessoas do mesmo sexo, o que é vedado pelo Código Civil.

Outra controvérsia é saber se o transexual, ao participar de um concurso público para delegado civil, participará do teste físico com a identidade masculina ou feminina. E se, nas olimpíadas, se identificará como homem ou mulher, sabendo-se que aquele apresenta uma estrutura genética mais favorável; não haverá afronta ao princípio da isonomia quando da competição?

Pode-se concluir que a solução em tela não está na aplicação ou não da lei, concepção mecânica, lógico-dedutiva, ultrapassada. Então, o conflito tem por base a colisão de princípios, que poderá ser solucionada pela hermenêutica contemporânea, cabendo a avaliação do caso concreto.

A visão hermenêutica de Alexy parece mais adequada. Esse teórico propõe a avaliação dos elementos extraprincipiológicos como, por exemplo, fatos, regras, circunstâncias sociais e culturais, de forma que haja pesos a serem considerados no momento da escolha do princípio a ser aplicado ao caso concreto.

Diante desse modelo hermenêutico, em situações extremas como a presente, deve prevalecer a interpretação do direito mais adequada ao caso concreto, sucumbindo o interesse particular, aplicando-se a técnica da ponderação ao caso concreto, de forma a funcionalizar o desenvolvimento e a realização da pessoa humana.

Cabe também salientar que a jurisprudência vem apontando alternativas para a pacificação desse caso emblemático. O STJ vem argumentando a possibilidade de alteração do nome e do sexo do transexual, sendo que o primeiro fundamento é o art. 5º, VI, da CR/88, que delineia o direito fundamental à orientação sexual. Vinculado a esse posicionamento, tem-se o direito à diferença dos que se encontram à margem da sociedade, devendo-se integrá-lo ao seio social, não o fazendo forçosamente, e respeitando-se os direitos dos minoritários e excluídos. Por fim, entende-se que, se não muda o nome, a pessoa está sendo instrumentalizada pela sociedade, reforçando-se a discriminação.

Na verdade, o interesse maior a ser atingido pelo direito é a felicidade do ser humano, porquanto é esse o fim de todo o ordenamento jurídico. Diante disso, é oportuno questionar: qual é o interesse público a ser tutelado: o dos particulares de boa-fé ou daquele que apresenta uma doença que pode levar ao suicídio?

É de sabença geral que cabe ao Estado a proteção da vida do ser humano de forma ampla. Poder-se-ia afirmar que o atual posicionamento do STJ vai de encontro aos fundamentos da nossa Carta Magna? O entendimento desse órgão atende ao princípio da isonomia?

Diante da releitura do Código Civil de 2002, pautado na presunção da boa-fé, da lealdade, da honestidade do ser humano, é possível fundamentar as decisões de alteração registral do prenome do transexual na presunção de má-fé?

Essas são algumas questões que demandam uma releitura do posicionamento jurisprudencial brasileiro, de forma a propiciar a realização do ser humano no âmbito da sociedade, extirpando o ranço criado de transexualismo.

Não há espaços para tratamentos discricionários em uma sociedade como a nossa, que proclama a democracia e a igualdade de todos, independentemente de raça, cor, credo, origem e religião, e sob essa visão maximalista do direito, que reflete a sociedade complexa contemporânea.

A questão é mais profunda, tendo em vista que o direito registral intervém diretamente na confecção do ato jurídico (art. 6º, inciso II, da Lei nº 8.935/95), pois visa não só a garantir o direito das partes, mas também a segurança jurídica e a eficácia jurídica dos atos, conforme o art. 1º da Lei nº 8.935/95.

Diante disso, mandar retirar a averbação de transexual do assento de nascimento, sob o argumento de que fere a dignidade da pessoa humana dele, é questionável, pois o registro civil retrata a realidade, ou seja, transexual é o estado que indica a sexualidade de uma pessoa que tem uma anatomia e um desejo diverso da carga genética.

Válido questionar se caberia ao cônjuge que descobre ter se casado com um transexual alegar erro essencial relativo à outra pessoa, para anular o casamento sob fundamento da insuportabilidade da vida em comum, pois o erro essencial se dá quando a pessoa se casa enganada quanto à outra, em outras palavras, tinha falsa percepção da realidade, emitindo uma vontade não esclarecida em virtude do equívoco. Entretanto, no caso em tela, o cônjuge acreditava que estava contraindo núpcias com uma mulher, por exemplo, não cabendo alegar posteriormente identidade diversa, para justificar o erro, sendo o casamento válido, sem qualquer equívoco.

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Vê-se que ao proteger-se a dignidade da pessoa humana do transexual, poder-se-ia ofender outra dignidade. Como se sabe nenhum direito é absoluto, nem mesmo os que envolvem a personalidade, podendo relativizar-se visando à proteção da coletividade.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. Alexy, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997, p. 83.
  2. Galuppo, Marcelo Campos. Princípios jurídicos e a solução de seus conflitos – a contribuição da obra de Alexy. Revista da Faculdade Mineira de Direito da Puc Minas, n. 2 , v. 1, 1998, p. 174.
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Sobre a autora
Patricia da Cunha Gurgel

Advogada militante na área cível, especialmente Direito Militar. Bacharel em Direito pela PUC Minas. Especialização em Direito Público pela PUC Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GURGEL, Patricia Cunha. A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2111, 12 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12614. Acesso em: 1 mai. 2024.

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