4. PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL
4.1. SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
A tutela do consumidor superendividado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, o que se procura provar com este trabalho, encontra respaldo no direito civil-constitucionalizado.
Conforme já fora objeto de estudo de trabalho de minha lavra, quando da defesa de monografia como requisito para colação de grau no curso de Bacharelado em Direito (2005), a constitucionalização do direito civil deu-se no momento em que, com o advento do Estado Social e evolução da Teoria do Contrato, há a incidência das normas do direito público sobre o direito privado.
A evolução histórica do Estado Social e Teoria do Contrato culminam na mudança de concepção tradicional contratualista, pautada no Estado Liberal, mediante a incidência de normas de alcance de direito público, constitucional.
A concepção tradicional do contrato, pautada no Estado Liberal, individualista do Iluminismo, também privilegiava a diferenciação/dicotomia entre o direito privado, disciplinador das relações entre particulares e o direito público, regulador das relações em que o Estado era participante.
Neste contexto, o Código Civil regulava as relações entre os particulares, enquanto à Constituição cabia a normatização das relações em que houvesse a participação do poder público, nas palavras de Daniel Sarmento (2004, p. 70):
No paradigma do Estado Liberal, a Constituição não se imiscuía no campo das relações privadas. Estas eram disciplinadas pela legislação ordinária, que gravitava em torno do Código Civil, centrado na proteção da segurança jurídica, tão vital aos interesses da burguesia.
Ocorre que, com o advento do Estado social, que levou à concepção da Teoria Social do Contrato, houve a incidência das normas do direito público, direito constitucional, no âmbito do direito privado, direito civil, o que se vislumbra na doutrina de Teresa Negreiros (2002, p. 50):
As relações jurídicas de natureza civil, não importando a sua natureza específica – familiar, obrigacional, real ou sucessória --, passam a disciplinar-se não apenas pelas normas contidas ou derivadas do Código, mas, igualmente, por princípios e regras constitucionais. A hierarquia da normativa constitucional, desde há muito reconhecida sob o ponto de vista teórico, torna-se um objetivo a ser concretizado na prática.
Assim, as relações entre particulares, regidas exclusivamente pelo direito privado, passam a sofrer interferência das normas do direito constitucional, a partir de uma interpretação axiológica aberta que vislumbra o sujeito de forma não abstrata, participante do todo social, valorando e tutelando a dignidade da pessoa humana, consoante a preleção de Daniel Sarmento (2004, p. 98):
Deveras, a posição hierárquica superior da Constituição, a abertura de suas normas, e o fato de que estas, por uma deliberada escolha do constituinte, versam sobre relações privadas, possibilitam que se conceba a lei Maior como novo centro do Direito Privado, apto a cimentar as suas partes e informar seu conteúdo.
Importante mencionar que a evolução da Teoria Contratual, que permitiu a convergência entre o direito civil e o direito constitucional foi, também, conseqüência da evolução da Teoria Constitucional que promoveu a normatização dos princípios constitucionais, bem como a conseqüência da concretização dos sujeitos envolvidos nas relações jurídicas.
A normatização dos princípios constitucionais, conseqüência da evolução da Teoria Constitucionalista, prevê que o texto constitucional é fonte suprema que deve direcionar todo o direito, seja ele público ou privado, sobre o assunto já dissertou Pietro Perlingieri (2005, p. 5), grande expoente da doutrina européia, que influenciou o pensamento civil-constitucional no Brasil:
A Constituição ocupa o lugar mais altos da hierarquia das fontes, precedendo, na ordem, as normas da Comunidade Européia, as leis ordinária (e portanto os Códigos, que são leis ordinárias, incluindo o Código Civil), as leis regionais, os decretos do Poder Executivo e outros tipos de normas, usos, etc.
Este entendimento, apesar de hoje já estar assentado, sofreu resistência de parte da doutrina que acreditava num "papel simbólico" da Constituição Federal, sem poder vinculante, posto que a concepção do Estado Social e as mudanças propostas por este novo paradigma representavam salutar risco aos interesses da classe detentora do poderio econômico, leciona Daniel Sarmento (2004, p. 72):
Tal doutrina, que dominou o Direito Constitucional durante boa parte do século XX, e que, apesar de seu anacronismo, ainda não foi totalmente destronada, pelo seu enraizamento no imaginário dos operadores jurídicos, acabava neutralizando os avanços das constituições sociais e dos seus valores de justiça distributiva. Ela reconhecia plena eficácia jurídica à parte da Constituição que garantia a status quo, mas negava qualquer aplicabilidade às normas que impunham transformações e representavam risco para os interesses das classes hegemônicas.
Neste contexto, acreditava-se que, para que as normas constitucionais tivessem eficácia e não passassem de letra morta, era necessária a atuação do legislador que deveria criar leis reconhecendo e tutelando os direitos fundamentais previstos na Lei Maior. Mais uma vez vale fazer menção à doutrina de Daniel Sarmento (2004, p. 72):
Durante um bom período campeou, sobretudo na Europa, em razão da ausência de uma jurisdição constitucional, a idéia de que a Constituição conteria uma proclamação de princípios políticos, que dependeriam sempre do legislador para produção dos efeitos concretos. Ela dirigir-se-ia aos poderes constituídos, em especial ao Executivo e ao Legislativo, mas não seria acessível ao juiz, nem muito menos ao cidadão.
Felizmente a evolução da Teoria Constitucional apontou para o sentido de normatização da Constituição Federal inaugurando o processo de afirmação dos interesses sociais, posto que vincula todo o ordenamento à Lei Maior numa interpretação axiológica sempre em busca da efetividade da justiça social, o que se vislumbra perfeitamente no ordenamento brasileiro, mais uma vez nas palavras de Sarmento (2004, p. 76):
Neste quadro, no Brasil, onde nosso ordenamento se alicerça sobre uma Constituição fundada sobre princípios e valores humanitários, como a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, e que conta com um capítulo tão generoso de direitos fundamentais, desencadear a força normativa da Lei Fundamental e projeta-la sobre todos os setores da vida humana e do ordenamento jurídico torna-se essencial, para quem se preocupa com a promoção da justiça substantiva.
A normatização dos princípios constitucionais levam a uma interpretação restritiva de todo ordenamento à luz dos preceitos constitucionais sendo a Constituição Federal a principal fonte do intérprete da ciência jurídica,seja no momento de legislar ou de aplicar normas ao caso concreto, mais uma vez vale citar os ensinamentos de Teresa Negreiros (2002, p. 56):
Nutrindo-se desta força normativa atribuída aos princípios constitucionais, a adoção da perspectiva civil-constitucional impõe ao interprete a tarefa de reordenar valorativamente o direito civil, preenchendo as formas conceituais e as categorias lógicas desta área do Direito com o conteúdo axiológico estampado na Constituição.
O novo contexto constitucional, em que se insere o direito privado reflete uma interpretação mais próxima da realidade social inaugurando uma nova fase no direito civilista, que se preocupa com o alcance da justiça social.
Vislumbra-se o que Pietro Perlingieri (2002, p. 5) denomina de despatrimonialização do direito civil, in verbis:
Com o termo, certamente não elegante, "despatrimonialização", individua-se uma tendência normativa-cultural; se evidencia que no ordenamento se operou uma opção, que, lentamente, se vai concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim a si mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores).
Neste diapasão, os sujeitos participantes das relações jurídicas não são mais visualizados sob uma perspectiva abstrata e sim sob uma perspectiva concreta, e complementando com palavras de Negreiros (2002, p. 54) "pessoa concreta, situada socialmente, isto é, na sua relação com os seus semelhantes.", sendo que o intérprete não atua apenas como mero aplicador das normas previamente estipuladas.
O Código Civil de 1916, como já foi mencionado, reflexo da Teoria Tradicional do Contrato, era pautado numa visão estritamente patrimonialista em que a noção de direito civil-constitucional não prosperava.
Ocorre que, com a evolução da teoria contratual e a mudança de paradigma do Estado que com o dirigismo contratual passa a intervir nas relações econômicas em busca da justiça social, o legislador se preocupou em garantir o cumprimento das demandas sociais criando toda uma legislação extravagante, pautada não mais numa perspectiva patrimonial, na análise de Gustavo Tepedino (2004, p. 7):
A legislação especial é o instrumento dessa profunda alteração, avalizada pela Constituição da República. O Código Civil preocupava-se em garantir as regras do jogo (estabilidade de normas); já as leis especiais as alteram sem cerimônia, para garantir objetivos sociais e econômicos definidos pelo Estado. O Poder Público persegue certas metas, desenvolve nessa direção programas assistenciais, intervém conspicuamente na economia, vale-se de dirigismo contratual acentuado. O legislador trabalha freneticamente para atender a demanda setorial crescente, fala-se mesmo em uma "orgia diferente.
Apesar de toda evolução da legislação brasileira, a nova realidade do direito civil-constitucionalizado pôde ser, verdadeiramente, experimentada com promulgação da Constituição Federal de 1988 que inseriu no ordenamento normas de alcance abstrato atribuindo nova roupagem ao direito civil, como, por exemplo, a inserção no ordenamento do princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio da igualdade e do princípio da solidariedade social.
O constituinte procurou orientar a interpretação dos negócios jurídicos, sobretudo os contratuais, estabelecendo uma verdadeira constituição cidadã preocupada com as questões sociais e com os interesses da coletividade na busca da verdadeira justiça social, em palavras de Cristiano Chaves de Farias (2005, p. 24):
Assim, proclama-se, não sem razão, que a Constituição da República de 1988 promoveu verdadeira reconstrução da dogmática jurídica a partir da afirmação da cidadania como elemento propulsor.
O Novo Código Civil, apesar de não trazer inovações, acompanha esta tendência tendo recebido inúmeras emendas em seu projeto original, e conforme Farias (2005, p. 19), "com o propósito de promover sua adaptação à nova ordem constitucional".
Pode-se, enfim, afirmar que o direito civil-constitucional reúne em torno de si princípios e valores constitucionais que devem nortear as relações privadas tendo em vista a proteção e desenvolvimento da pessoa humana, ressaltando, com supremacia, o princípio maior da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), neste sentido leciona Teresa Negreiros (2002, p. 61-62):
O compromisso do direito civil com a tutela da dignidade da pessoa humana é, portanto, assumido pela perspectiva civil-constitucional como inapelável conseqüência da sujeição das relações interprivadas aos ditames constitucionais. Muito mais que autonomia e liberdade individuais, o ordenamento civil e, para efeito deste trabalho, a ordem contratual em particular são instrumentos de realização existencial da pessoa humana-pelo que, sob pena de afrontar a Constituição, o interprete e aplicador do Direito deve dar primazia á realização existencial em detrimento da realização patrimonial (...)
A este entendimento se adéqua a crítica já proferida pelo professor Gustavo Tepedino (2004, p. 22):
Trata-se,e uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para definição da ordem pública, relendo o direito civil à luz da constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa privada e as situações jurídicas patrimoniais.
Deste modo, a constitucionalização do Direito Civil representa, por si só, um grande avanço nas relações jurídicas obrigacionais e, quando se trata de contratos, profundas são as transformação das relações de equilíbrio contratual, haja vista a inserção de novos princípios pautados nos ideais de justiça, solidariedade e igualdade sociais norteados pelo princípio maior da dignidade da pessoa humana. Importante contribuição, neste sentido, encontra-se na doutrina do professor Cristiano Chaves de Farias (2005, p. 26):
(...)na medida em que se detectou a erosão do Código Civil, ocorreu uma verdadeira migração dos princípios gerais e regras atinentes às instituições privadas para o Texto Constitucional. Assumiu a magna Charta verdadeiro papel reunificador do sistema, passando a demarcar os limites da autonomia privada, da propriedade, do controle de bens, da proteção dos núcleos familiares, etc.
Pela via da constitucionalização, o contrato assume um novo papel no cerne da relação jurídica obrigacional, tendo em vista a quebra da hegemonia do princípio da autonomia da vontade que, embora não mitigado, passa a conviver com os novos princípios obrigacionais.
A lei, à procura do equilíbrio contratual, passa a regular as relações obrigacionais como verdadeira limitadora e legitimadora da autonomia da vontade. Em palavras da professora Claudia Lima Marques (2002, p. 175) "passará a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes."
Finalmente podemos concluir, diante de todo o exposto, que a nova visão direito civil-constitucional representa por si só uma mudança intrínseca, interna, nos contornos do direito privado que passa a ser basilado pelas normas do direito constitucional atribuindo uma roupagem mais social e cidadã às relações jurídicas obrigacionais.
Neste sentido, o fenômeno do superendividamento a ser tutelado pelo ordenamento pátrio encontra pleno respaldo tendo em vista que, a visão do direito civil-constitucional, encontra em seu cerne principal a busca pela efetividade de justiça social.
Conforme os aspectos estudados no decorrer desta obra a fenomenologia do superendividamento é fruto de convergência de situações que vão desde a responsabilidade das instituições financeiras no momento da contratação, até a omissão do Estado, somadas à dinâmica da sociedade de consumo massificado diante da vulnerabilidade do consumidor de boa-fé, seja ele, hipossuficiente ou não.
No entanto, é fato incontroverso a ausência de preocupação efetiva com o consumidor diante da fenomenologia no Brasil, tanto na fase pré, quanto na fase pós-contratual, o que, contraria expressamente o sistema civil-constitucionalizado instituído em nosso país.
Sem dúvidas tutelar o consumidor superendividado, sobretudo com vistas à manutenção de sua dignidade como pessoa, significa dar efetividade à justiça social contemplada pela nossa Carta Magna e cristalizada em princípios como o da dignidade da pessoa humana que será estudado no próximo tópico.
4.2. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O princípio da dignidade da pessoa humana expresso no inciso III do Art. 1º da Constituição Federal de 1988 é norma de alcance geral do qual emana toda nova principologia pautada nos ideais humanitários de justiça social e do alcance aos direitos mínimos fundamentais previstos em nossa Constituição cidadã:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
(...)
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana, à luz dos ensinamentos do professor Cristiano Chaves de Farias (2005, p. 96), é expresso pela "elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial, devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade."
Desta feita, o princípio da dignidade da pessoa humana consagra como centro que deve orientar todo o ordenamento, seja em qualquer esfera do direito publicista ou privado, a pessoa, o ser humano, como fonte de todo o direito, salienta Daniel Sarmento (2004, p. 110):
Por isso, é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana é o princípio mais relevante de nossa ordem jurídica, que lhe confere unidade de sentido e de valor, devendo por isso condicionar e inspirar a exegese e aplicação de todo o direito vigente, público ou privado.
O Estado, portanto, deve atuar como garantidor das necessidades fundamentais dos sujeitos sociais para que ocorra a efetivação dos direitos mínimos concernentes à realização da vida digna. Mais uma vez remete-se à doutrina de Daniel Sarmento (2004, p. 111):
O princípio da dignidade exprime, por outro lado, a primazia da pessoa humana sobre o Estado. A consagração do princípio importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para garantia e promoção dos seus direito fundamentais.
Logo, segundo expressões de Farias (2005, p. 97), é o princípio da dignidade humana postulado essencial do ordenamento, expresso na Constituição Federal, que deve guiar a atuação do Estado no sentido de garantir as necessidades fundamentais de todas as pessoas sob uma perspectiva humanizadora, democrática e civilizatória.
Neste sentido, não só devem ser assegurados os direitos fundamentais, por exemplo, à vida, saúde, moradia, educação, mas, sobretudo, devem ser assegurados os direitos concernentes à individualidade, desenvolvimento intelectual, moral e econômico todos convergentes para a garantia de vida digna e desenvolvimento da personalidade humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana é verdadeiro comando estruturante da organização do Estado e, parafraseando Sidney Gerra e Lilian Marcia Balmant Emerique (2006, p. 385), "encontra-se no centro da ordem jurídica brasileira que concebe a valorização da pessoa humana como sendo razão fundamental para estrutura de organização do Estado e para o Direito."
O princípio da dignidade da pessoa humana embasa e exige atuação positiva do Estado de modo a viabilizar a efetivação e proteção da pessoa humana mediante promoção de condições que viabilizem a vida com dignidade.
Sem dúvidas, neste contexto, conforme já fora elucidado em tópico específicio, o consumidor superendividado tem efetiva perda de sua dignidade como pessoa de modo que, a aplicação do paradigma constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana pelo Estado, tem o condão de restabelecer a garantia prevista constitucionalmente, estando, nesta garantia, contemplado, o direito à preservação de seu "mínimo existencial".
4.3. O MÍNIMO EXISTENCIAL
O mínimo existencial nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 184) é "compreendido como todo conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna (portanto, saudável) tem sido identificado- por muitos- como constituindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, núcleo este blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do Estado e da sociedade."
Ricardo Lobo Torres (1989, p. 29), por sua vez, define o mínimo existencial como:
um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas.
Em dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Paraná, intitulada "Olhares Sobre O Mínimo Existencial em Julgados Brasileiros", Claudia Honório (2009), apud Ana Paula Barcellos (2008, p. 230), em conceituação acerca do mínimo existencial:
O mínimo existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e a manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual, aspectos fundamentais em um Estado que se pretende, de um lado, democrático, demandando a participação dos indivíduos nas deliberações públicas, e, de outro, liberal, deixando a cargo de cada um seu próprio desenvolvimento.
Ainda no trabalho de Cláudia Honório (2009), encontramos o conceito trazido por Edilson Pereira Nobre Junior (2000, p. 247) que afirma que "uma das conseqüências do respeito à dignidade é a garantia de um patamar existencial mínimo, um mínimo de recursos para prover a subsistência da pessoa. O direito à existência digna envolve prestações e abstenções. Assim, o patrimônio da pessoa não pode ser afetado em excesso, bem como o Estado deve proporcionar saúde, previdência e assistência social."
Deste modo, o conceito de mínimo existencial contempla diversas construções teóricas carecendo de conteúdo específico, sendo conceito de alcance amplo e geral que envolve a idéia de liberdade; conjunto de condições materiais e direitos fundamentais indispensáveis à vida humana.
No entanto, dúvidas não restam de que a noção de mínimo existencial contempla à proteção e realização da pessoa humana com dignidade, pelo que, na normativa brasileira, é sustentado principalmente pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Mais uma vez vale trazer à baila o trabalho de Cláudia Honório (2009) que apud José Afonso da Silva (1994, p. 107-110):
(...)para a realização da dignidade, não basta a liberdade formalmente reconhecida; faz-se necessário o atendimento de condições materiais mínimas para a existência humana. Certamente "Não é concebível uma vida com dignidade entre a fome, a miséria e a incultura, pois a liberdade humana com freqüência se debilita quando o homem cai na extrema necessidade"
No âmbito da tutela do consumidor superendividado o mínimo existencial emerge na idéia de que, parafraseando Geraldo Martins Farias da Costa (2002, p. 123-124), deva ser assegurada a "(...) garantia dos meios essenciais de existência do devedor":
A aplicação de medidas legais de tratamento da situação de superendividamento deve almejar a garantia dos meios essenciais de existência do devedor. A lei exige a garantia do que se chama do restre à vivre, que se define "pela diferença entre os recursos e o que é comprometido pelo pagamento".
Assim, a garantia ao mínimo existencial como conjunto de condições materiais e direitos fundamentais indispensáveis à vida humana que encontra respaldo no princípio da dignidade da pessoa humana é prerrogativa à tutela do consumidor superendividado que tem sido reconhecida e defendida pela doutrina e jurisprudência brasileiras.
Conforme já estudado em capítulo específico, por lógico que o consumidor superendividado tem sua dignidade afetada e, por via de conseqüência, resta ameaçado o direito ao mínimo existencial em virtude do acúmulo excessivo de dívidas. Em tais situações o pagamento dos débitos importa em comprometimento à subsistência familiar: evidente afronta ao princípio da dignidade humana.
Tais situações, quando levadas ao conhecimento do Estado-Juiz, deverão ter o tratamento adequado capaz de restabelecer a garantia do mínimo existencial tendo em vista à vida com dignidade.
Deve o Estado-juiz, em concordância ao que fora trazido por Brenda Schneider dos Santos (2008, p. 32), atuar de modo a garantir "ao devedor os meios essenciais à sua sobrevivência, considerando o montante dos pagamentos devidos em virtude do endividamento ou superendividamento, uma parte de seus recursos, ao menos equivalente a uma renda mínima, a fim de ele possa fazer frente às despesas da vida cotidiana."
Felizmente tal já é o entendimento que tem sido adotado por algumas Cortes do país, com destaque para o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, além de considerar inválidas as cláusulas contratuais que geram o superendividamento, tem atuado no sentido de limitar o valor do pagamento dos débitos em percentual correspondente a 30% (trinta por cento) dos rendimentos do consumidor superendividado.
Avulta, portanto, a idéia do mínimo existencial, é considerada a máxima de que, em sendo comprometida a renda para pagamento de débito em patamar superior a 30% (trinta por cento), estará o consumidor desprovido de recursos que lhe possibilitem pagar aluguel, comprar medicamentos, vestuário, enfim, custear os compromissos básicos para gestão da vida com dignidade.
A proibição do superendividamento, neste sentido, está relacionada com o limite do sacrifício. Os Ilustres Desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem entendido, com clareza salutar, que o fenômeno do superendividamento é uma patologia freqüente da moderna sociedade de consumo e crédito e agressão à dignidade da pessoa humana.
Nesta esteira, vejam-se trechos do voto decisivo da Desembargadora Judith dos Santos Mottecy, nos autos da apelação cível nº 70014114458, prolatado em 20 de março de 2008, que versou sobre superendividamento em caso de empréstimo consignado:
" (...) Na tentativa de prover ao mutuário o mínimo para sua sustentação, criou-se, no meio jurisprudencial, a determinação de que os descontos devessem ser limitados em 30% dos rendimentos auferidos pelo contraente do empréstimo. Nessa esteira, pontual decisão do eminente desembargador Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, em julgamento de Agravo de Instrumento nº 70016870099, cujo ementário vai abaixo transcrito:"AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. LIMITAÇÃO. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. Pedido formulado por servidor estadual de cancelamento dos descontos em folha de pagamento das parcelas relativas a empréstimos intermediados por associação de classe. Revisão da posição do relator, diante do novo entendimento jurisprudencial majoritário do 2º Grupo Cível, reconhecendo a validade da cláusula de autorização dos descontos direto em folha de pagamento, mas limitando a sua eficácia ao percentual máximo de 30% sobre os vencimentos brutos do servidor, aplicando analogicamente a legislação estadual acerca do tema. Preservação do mínimo existencial, evitando que o superendividamento coloque em risco a subsistência do servidor e de sua família, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana.(...)".
Arremata a Desembargadora:
" (...) Diante deste novo panorama jurisprudencial, estou também revendo meu posicionamento com a importante ressalva de que a permissão de manutenção dos descontos seja limitada a um patamar razoável que garanta o mínimo existencial ao servidor. Deve-se estar atento ao fenômeno do superendividamento, que tem sido uma preocupação atual do Direito do Consumidor em todo o mundo, mantendo íntima relação com a facilidade do crédito e prejudicando especialmente as pessoas mais humildes.Com efeito, se o desconto consumir parte excessiva dos vencimentos do servidor público, colocará em risco a sua subsistência e de sua família, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, deve-se estabelecer um limite máximo para esses descontos, que entendo seja o percentual de 30% sobre os vencimentos brutos do servidor. Assim, embora reconhecida a validade da cláusula de autorização do desconto em folha, limita-se a sua eficácia ao percentual de 30% dos vencimentos brutos do servidor para evitar que o superendividamento o conduza o servidor a uma situação de miserabilidade, ferindo o mínimo existencial.(...)"
Neste sentido é importante evidenciar posicionamento do STJ que reconheceu a validade da cláusula de autorização dos descontos provenientes de empréstimos consignados em folha de pagamento:
"Direito Civil. Agravo no recurso especial. Desconto em folha. Súmula 83/STJ. - A 2ª Seção do STJ já pacificou o entendimento no sentido da validade do desconto em folha em empréstimos bancários (REsp nº 728.563/RS). Agravo no recurso especial não provido."
STJ, AgRg no REsp 690967/RS; AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2004/0137763-0, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJ 28.11.2005 p. 283
Não obstante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não negue a validade da cláusula que autoriza os descontos em folha, limita os mesmo ao percentual de 30% (trinta por cento).
Importante, ainda, trazer o julgado do STJ da lavra do Ilmo. Ministro Ruy Rosado Aguiar (2003) que versou sobre autorização fornecida em contrato de adesão para efetuar descontos em folha de pagamento suficientes para possibilitar ao banco se apropriar de todos os recursos na conta do devedor.
No caso, decidiu a corte superior que deve ser mantida a orientação de que, não obstante o desconto seja permitido, sua integral apropriação pelo banco é inadmissível, pois atingem recursos essenciais ao cliente:
BANCO. Cobrança. Apropriação de depósitos do devedor. O banco não pode apropriar-se da integralidade dos depósitos feitos a título de salários, na conta do seu cliente, para cobrar-se de débito decorrente de contrato bancário, ainda que para isso haja cláusula permissiva no contrato de adesão. Recurso conhecido e provido. (...)
RECURSO ESPECIAL Nº 492.777 - RS (2003/0007719-9), RELATOR : MINISTRO RUY ROSADO DE AGUIAR, j. 5. de junho de 2003
O que se vislumbra é o fato de que a jurisprudência, mesmo que de forma ainda tímida sendo os principais precedentes provenientes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, já sinaliza entendimento de tratamento do consumidor superendividado tendo em vistas a garantia da manutenção de sua dignidade e mínimo existencial.