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A tutela do consumidor superendividado e o princípio da dignidade da pessoa humana

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Agenda 02/09/2010 às 08:43

5 A TUTELA DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O estudo feito até o momento teve como escopo demonstrar, através da análise histórica sobre a evolução do crédito que culminou com endividamento nas sociedades capitalista e, mais especificamente, no Brasil, que a fenomenologia do superendividamento é fato consumado que prescinde de tutela específica no ordenamento pátrio.

No decorrer do trabalho, também, restou evidenciado que a situação de superendividamento implica em ameaça a manutenção do mínimo existencial e vida humana com dignidade, sendo premente a necessidade de tutela do superendividado de boa-fé, através da efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, contemplado em nossa carta magna como verdadeiro vetor do estado democrático de direito que deverá visar, sobretudo, a implementação da justiça social.

Cumpre, a partir de então, evidenciar, quais as conseqüências advindas da inserção do princípio da dignidade da pessoa humana como balizador de todo o ordenamento jurídico no âmbito do Direito Privado, do Direito Civil e, especificamente, nas relações contratuais, haja vista que o superendividamento decorre de avença contratual entre fornecedor e consumidor/tomador.

A observância aos ditames que emanam do princípio maior da dignidade da pessoa humana refletem um momento histórico em que há a limitação da autonomia da vontade no prisma da evolução que aponta para a nova realidade do Contrato Social.

É o momento da congruência entre direito público e privado em que a noção de despatrimonialização fixa seus efeitos deslocando o cerne do Direito Civil, ou seja, consagrando os valores da pessoa humana em detrimento ao patrimônio, enfrentando o tema assevera o professor Daniel Sarmento (2004, p. 116):

A despatrimonialização implica, isto sim, no reconhecimento de que os bens e direitos patrimoniais não constituem fins em sim mesmos, devendo ser tratados pela ordem jurídica como meios para a realização da pessoa humana.

O doutrinador continua lecionando que "No Direito das Obrigações relativiza-se o dogma do autonomia da vontade, e se incrementa a quantidade de normas públicas editadas em prol de interesses coletivos, com a intensificação da tutela do hipossuficiente. Avulta a preocupação com a boa-fé objetiva, com o equilíbrio contratual, e se reconhece a função social do contrato" (2004, p. 121).

Assim, aos civilistas cumpre a função de integralizar este novo vetor constitucional às relações jurídicas pautadas no cerne do direito obrigacional, salienta Farias (2005, p. 97-98):

Assim, o reconhecimento da fundamentalidade do princípio da dignidade da pessoa humana impõe uma nova postura aos civilistas modernos, que devem, na interpretação e aplicação de normas e conceitos jurídicos, assegurar a vida humana de forma integral e digna.

Neste contexto, todos os operadores do direito privado devem buscar, sob o prisma do efetivo cumprimento ao princípio da dignidade da pessoa humana, a realização do melhor resultado possível na busca da efetividade da justiça social e da tutela dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, explana Gustavo Tepedino (2004, p. 51):

(...) tais diretrizes, longe de apenas estabelecerem parâmetros para o legislador ordinário e para os poderes públicos, protegendo os indivíduos contra a ação do Estado, alcançam também a atividade privada, informando as relações contratuais no âmbito da iniciativa econômica. Não há negócio jurídico que não tenha seu conteúdo redesenhado pelo texto constitucional. Gustavo tepedino, temas de direito civil.

Avulta, portanto, a necessidade de reconstrução dos velhos paradigmas da teoria tradicional do contrato, que deve ser norteado a partir do reconhecimento do princípio constitucional, maior, da dignidade da pessoa humana.

Tutelar o consumidor superendividado, conforme resumido por Alessandro Martins Prado (2008, p. 10) em artigo enfrentando o tema, significa dar efetividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, compreendendo a questão em termos amplos, e não isoladamente, como um fenômeno que atinge de forma pontual este ou aquele consumidor.

A tutela do superendividado exige: criação pelo Estado de políticas públicas voltadas para prevenção e orientação ao consumo de crédito de forma responsável e consciente, adoção de medidas repressivas à concessão do crédito de forma ostensiva, sem critérios e abusiva, necessidade de legislação específica de tratamento do assunto, atuação do Estado-Juiz.

Nesta esteira, faz-se mister evidenciar a idéia de Tepedino (2001), de que o papel relevante que assume o Estado como interventor da relação jurídica obrigacional que, por força da constitucionalização, vem perdendo a estrutura abstrata e generalizante para substituí-las por disciplinas legislativas cada vez mais concretas.

O Estado assume a postura de garantidor no âmbito das relações patrimoniais intervindo sobremaneira nas relações contratuais em busca da efetividade da justiça social,o que, por sua vez, significa uma profunda mudança no âmbito do relacionamento entre direito público e direito privado, em palavras de Daniel Sarmento (2004, p. 71):

Ocorre que, paralelamente a esta mudança, foi também se desencadeando outro processo, vinculado à emergência do Estado Social, consistente na redefinição dos papéis da Constituição: se, no Estado Liberal ela se cingia a organizar o Estado e a garantir direitos individuais, dentro do novo paradigma ela passa também a consagrar direitos sociais e econômicos e a apontar caminhos, metas e objetivos, a serem perseguidos pelo Poderes Públicos no afã de transformar a sociedade.

Cria-se, conforme expressão de Tepedino (2001, p. 70), um sistema híbrido, em que o Estado não figura apenas nas relações pautadas pelo direito público, mas passa a atuar nas relações que antes eram esfera apenas do direito privado. Ainda em palavras do mencionado professor (2001, p. 73):

A interpretação do direito público e do direito privado caracteriza a sociedade contemporânea, significando uma alteração profunda nas relações entre o cidadão e o Estado. O dirigismo contratual antes aludido, bem como as instâncias de controle social instituídas em uma sociedade cada vez mais participativa, alteram o comportamento do Estado em relação ao cidadão, redefinindo os espaços do público e do privado, a tudo isso devendo se acrescentar a natureza híbrida dos novos temas e institutos vindos a lume com a sociedade tecnológica.

Deste modo, as novas demandas sociais, fruto da explosão tecnológica, massificação da economia ou da produção em grande escala que culminam com o superendividamento, exigem do Estado uma nova postura pautada na intervenção como forma de garantir o efetivo cumprimento dos novos paradigmas do Estado Social havendo, a partir de então, profunda congruência entre o direito civil e o direito constitucional, o que origina um novo regulamento norteado por novas regras e princípios.

No que se refere, especificamente, à postura do Estado no momento da concretização dos novos princípios civis-constitucionais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, este deverá guiar-se pela necessidade de garantir os direitos do consumidor superendividado e, conforme já citado anteriormente, atuar para garantir políticas públicas de prevenção, repressão a práticas abusivas e criação de legislação específica.

Ensina Claudia Lima Marques (2002, p. 207):

Para atingir este ambicioso fim, de equidade contratual e boa fé nas relações, o Estado, utilizará, então o instrumento que dispõe, o poder de regular a conduta dos homens através das leis (...)

São várias as sugestões de soluções de tratamento ao fenômeno encontradas na doutrina e pesquisa dos estudiosos brasileiros que podem pautar a atuação do Estado.

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Vários estudiosos brasileiros sobre o tema, sobretudo a professora Claudia Lima Marques (2008, p. 21), defendem, mediante a publicação de estudos consolidados principalmente na obra "Direitos do Consumidor Endividado", a edição de lei específica de tratamento sobre o assunto, nos seguintes termos:

Cabe-nos aqui, por fim, como organizadores deste livro, agradecer a todos que tornaram possíveis estas pesquisas e colaboraram de forma tão atenta e comprometida como o sucesso desta difícil empreitada de fornecer ao Ministério da Justiça e aos operadores do direito idéias sobre a melhor forma de prevenir e tratar, em lei especial, este nocivo "efeito colateral" novo na sociedade de consumo mais consolidado no Brasil que é o Superendividamento.

Também existe defesa na doutrina de adoção de práticas de prevenção ao superendividamento, ainda na fase pré-contratual, que pode ser consolidada mediante campanhas de conscientização ao consumo do crédito de forma responsável. Tais campanhas podem, também, contemplar a exigência ao fornecimento de crédito de forma mais responsável. Segundo ensina Rafaela Consalter (2009, p. 4):

Práticas de prevenção ao superendividamento, ainda na fase pré-contratual, in contrahendo, deverão ser motivo de orgulho entre os fornecedores, não só por aqueles que representam as grandes empresas, mas também para os mini mercados de esquina.

Continua a Autora (2009, p. 4):

Vislumbramos que as campanhas de combate ao mal do superendividamento fatalmente surgirão. Condutas mais responsáveis, não só daqueles que tomam, mas principalmente daqueles que concedem o crédito, serão, por todos exigidos.

Neste diapasão, imperioso destacar os ensinamentos de Geraldo de Farias Martins Costa (2002, p. 267), precursor dos estudos acerca do superendividamento no país, ao defender a faculdade de retratação e prazo especial de reflexão nos contratos:

A faculdade de retratação não ofende a força obrigatória das convenções porque integra o processo de formação do contrato de crédito. Ela se coloca em um momento em que o contrato não foi firmado. (...) A faculdade de retratação não desfaz um contrato já formado, ela suspende a conclusão definitiva dele: haveria então formação sucessiva do contrato, o consentimento tomando corpo é medida do escoamento do prazo de exercício da retratação.

São encontradas também na doutrina a defesa de criação campanhas de prevenção e repressão à propaganda enganosa mediante a exigência do cumprimento das formalidades legais do direito à informação consolidadas no CDC. O estudo do IDEC (2008) propõe, "além de solução jurídica como as existentes para as empresas, como concordatas, aumento de parcelamento, revisão dos juros, redução do montante entre outros. Aumentar o nível de informação quanto aos riscos de um endividamento amparado por taxas de juros abusivamente elevadas, controle de identificação do perfil dos consumidores de boa-fé, gestão eficaz dos riscos de inadimplência embutido nas taxas de juros, nas cláusulas contratuais e controle da publicidade com campanhas enganosas."

Brunno Pandori Giancoli (2008, p. 162), por sua vez, defende o superendividamento do consumidor como hipótese de revisão dos contratos de crédito:

Com efeito a ação revisional por aplicação do superendividamento pode ser encarada como mecanismo jurisdicional apto a tratar as dividas do consumidor de maneira a evitar sua ruína completa e, se possível, restabelecer uma situação de consumo sustentável.

Luciano Benetti Timm (2006, p. 4) elucida em artigo jurídico a conclusão do Painel nº 4- Novas Técnicas afetando o direito do consumidor- do 5º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, em 3 de maio de 2000, em Seminário exposto pelo Professor Geraldo Martins da Costa:

"1- É preciso que o Direito Brasileiro, a exemplo do Direito comparado, adote medidas legislativas que tenham por objeto especifico a diminuição dos perigos que envolvem as operações de crédito ao consumo, indo além daquelas já instituídas no CDC;

2- É preciso adotar medidas legislativas que previnam o superendividamento dos consumidores;

3- É preciso adotar medidas legislativas que instituíam o tratamento dos consumidores em situação de superendividamento."

Como marco no estudo e preocupação sobre o assunto, o superendividamento foi trazido à pauta do Mercosul tendo sido tratado no Comitê de Defesa do Consumidor através da edição da Declaração de Salvador em 14 de agosto de 2009, conforme noticia O Globo (2009):

Publicidade enganosa, falta de informação, oferta agressiva e venda casada são alguns problemas identificados na concessão de crédito no Mercosul. Proteger os consumidores dessas práticas, evitar o superendividamento e, mais que isso, tratá-lo como um problema social, é que o Comitê de Defesa do Consumidor do bloco pretende com a Declaração de Salvador. O documento, assinado por representantes de Brasil, Argentina e Uruguai, é o primeiro passo na defesa dos cidadãos latino-americanos. A declaração prevê proteção maior que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) brasileiro, incluindo a possibilidade de arrependimento sem ônus para o contratante.

Na Declaração (2009) os países do Mercosul, Brasil, Argentina e Uruguai, considerando, dentre outros motivos, "a expansão do crédito e sua importância para o crescimento sócio-econômico do país; o consumo de bens e serviços passou a ser acompanhando quase sempre por operações á crédito; o qual, se por um lado, constitui uma ferramenta importante para o desenvolvimento das economias, por outro lado, pode acarretar conseqüência severas para o consumidor", reconheceram a necessidade de garantir e efetivar direitos do consumidor, tais como:

1)Direito do consumidor de ser protegido contra toda publicidade enganosa ou que oculte, de alguma forma, os riscos e os ônus da contratação do crédito, ou que façam alusão a "crédito gratuito"; 2) Direito do consumidor de ser protegido contra a concessão irresponsável de crédito; 3) Direito do consumidor de ser protegido contra as práticas abusivas ou que prevaleçam da sua fraqueza ou ignorância; 4) Direito do consumidor de ter tratamento diferenciado, tendo em vista fatores que elevem a sua vulnerabilidade (...); 5) Direito do consumidor de ter acesso, em toda relação de consumo, a informações claras, precisas e qualificadas(...); (....) 10) Direito do consumidor de receber ações e políticas de prevenção e tratamento da situação do superendividamento, de educação para o consumo de crédito consciente e de organização do orçamento familiar; 11) Direito do consumidor que se encontra em situação de superendividamento á renegociação das parcelas mensais, para ter preservado o seu mínimo existencial, com fundamento no principio da dignidade da pessoa humana; (....)

A Declaração de Salvador, portanto, constitui marco no tratamento do fenômeno do superendividamento nos países do Mercosul vindo apenas corroborar e reconhecer a necessidade de criação de legislação específica para tratamento da problemática nos países membros do bloco econômico.

No Brasil alguns Estados já avançam no estudo de soluções para o fenômeno destacando-se, dentre eles, os Estados de São Paulo de Rio Grande do Sul, os quais, através do PROCON e Defensoria Pública, fomentam programas de pesquisa, orientação e apoio ao consumidor.

Neste sentido, em iniciativa inovadora, conforme já informado no capítulo anterior, promoveu estudo sobre o perfil do consumidor endividado no Estado o Rio Grande do Sul, a Defensora Púbica Rafaela Consalter (2009, p. 9-10), através de pesquisa de campo, chegando a pesquisadora às seguintes conclusões:

a)O avanço da problemática do superendividamento no país exige sejam adotadas políticas de prevenção; b) Para o fim de prevenir, necessário, num primeiro momento, identificar quem é o superendividado brasileiro; c) A pesquisa científica realizada por intermédio de convênio entre instituição de ensino e Defensoria Pública, atuante na defesa do consumidor hipossuficiente, é o caminho mais rápido é eficaz para esse diagnóstico; d) A finalidade principal dessa iniciativa é promover a conscientização do consumidor sobre os problemas advindos do superendividamento bem como informá-lo dos meios de prevenção e, conseqüentemente, alertar o fornecedor de sua responsabilidade social, de assegurar, dentre outras medidas, o prazo de reflexão para o consumidor, com a possibilidade do arrependimento, de informar sobre o produto ou serviço prestado e suas condições de compra,etc; e) No Estado do Rio Grande do Sul, os superendividados têm o seguinte perfil: na sua leve maioria, são mulheres, entre 30 e 50 anos, com até dois filhos, percebendo renda de até dois salários mínimos nacionais, devendo para mais de três credores, especialmente lojas e bancos, inadimplentes ou com as prestações em atraso, passivas em relação ao débito, inscritas em cadastros de devedores; f) Definidas as características dos personagens desse drama, está lançado o desafio de combater o superendividamento, no qual a Defensoria Pública exerce um papel de protagonista, irrevogável e indelegável.

Os estudos em Direito Comparado, sobretudo em direito francês que foi realizado por Geraldo de Farias Martins da Costa (2002), apontam soluções que também podem balizar a atuação do Estado.

A experiência européia evidencia, principalmente, deveres de cooperação, renegociação e conciliação para tratamento do fenômeno do superendividamento, deveres estes que, diante da dinâmica civil-constitucional delineada no ordenamento brasileiro, encontram pleno respaldo.

Os deveres de cooperação e renegociação pressupõem que, para que se possa alcançar a reestruturação financeira do superendividado, faz-se imprescindível a cooperação e compreensão do outro parceiro obrigacional envolvido no negócio, ou seja, o fornecedor do crédito.

Diante da situação do consumidor superendividado, deverá o fornecedor do crédito atuar no sentido de cooperar possibilitando a renegociação do débito tendo em vista o restabelecimento financeiro do consumidor e equilíbrio contratual.

Tal prerrogativa é direito implícito em toda e qualquer relação contratual no ordenamento brasileiro, extraído, não somente da Constituição Federal consagrador do princípio da dignidade da pessoa humana, como também do Código de Defesa do Consumidor e Código Civil consagradores do princípio da boa-fé objetiva, conforme evidencia Brena Schneider dos Santos apud Karen Rick Danilevicz Bertoncello (2008, p. 14):

Tenta-se "preservar os vetores da lealdade, da cooperação, da solidariedade, da confiança e do princípio da boa-fé, entre os parceiros contratuais. Este dever de renegociação deve estar baseado também nos "princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção ao consumidor, dentre outros". Com efeito, é necessária a preservação de um mínimo vital ao consumidor quando em situação de reestruturação financeira.

Importante evidenciar que a boa-fé objetiva é princípio que orienta e informa o ordenamento jurídico; é a conduta ética pela qual o sujeito na relação contratual deve pautar o seu comportamento nos valores morais pertencentes ao homem médio como honestidade, integridade e retidão de caráter, tendo em vista, sempre, preservar a outra parte envolvida no negócio jurídico contratual. Emanam do principio da boa-fé objetiva, além dos deveres anexos de informação e cuidado, o dever de cooperação.

Cláudia Lima Marques (2002, p. 195) ensina que o dever de cooperação significa "colaborar durante a execução do contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva. Cooperar é agir com lealdade e não obstruir ou impedir."

Assim, pelo dever de Cooperação surge a noção de que, no cerne da relação obrigacional, sobretudo no momento de sua execução, deve haver lealdade e colaboração entre os parceiros contratuais, ou seja, deve haver conduta no sentido de permitir o bom andamento da relação obrigacional.

As partes envolvidas no negócio jurídico devem concorrer de modo a não inviabilizar ou dificultar a atuação do outro contratante fazendo com que as finalidades do contrato sejam cumpridas da melhor forma possível, conforme ensina Sílvio Luís Ferreira da Rocha (2002, p. 42):

O dever de cooperar ou colaborar obriga a parte a agir com lealdade, proibindo-a de impedir ou obstruir a outra de cumprir com o contrato,e ao mesmo tempo assegurar-lhe o direito de, querendo cumprir a sua obrigação, sem ter, também a execução desta impedida razão pela qual afasta-se do contrato toda exigência excessiva, burocrática ou absurda.

Emana a idéia de que o dever de cooperação, muito mais do que uma atitude negativa de não fazer, ou seja, de não obstar ou dificultar o cumprimento do contrato, implica também em uma atitude positiva no sentido de agir com o escopo de colaborar o parceiro. Explana Laerte Marrone Sampaio (2004, p. 61) que "Nem sempre o dever de lealdade reflete uma obrigação de não fazer, implicando, às vezes, uma atitude positiva, com o escopo de colaborar com o parceiro."

Neste sentido, portanto, o dever de cooperação concorre para que haja a preservação do equilíbrio no âmbito da relação contratual, posto que vai garantir a conduta positiva no sentido de haver colaboração entre os parceiros contratuais, mantendo-se o vínculo e garantindo o bom andamento da relação obrigacional.

Surge, portanto, a idéia de renegociação. A doutrinadora Cláudia Lima Marques (2002, p. 198), ao falar sobre a manutenção do equilíbrio nas relações contratuais, exemplifica citando o dever de renegociar as dívidas do parceiro mais fraco envolvido no contrato; diz a Autora:

Por fim, mencione-se que a doutrina atual germânica considera ínsito no dever de cooperar positivamente, o dever de renegociar (Neuverhandlungspflichte) as dívidas do parceiro mais fraco, por exemplo, em caso de quebra da base objetiva do negócio. Cooperar aqui é submeter-se às modificações necessárias á manutenção do vínculo (princípio da manutenção do vínculo do art. 51, § 2. º do CDC) e à realização do objetivo comum e do contrato.

Continua a ilustre doutrinadora afirmando que (2002, p. 198):

Será dever contratual anexo, cumprido na medida do exigível e do razoável para a manutenção do equilíbrio contratual, para evitar a ruína de uma das partes (exceção da ruína aceita pelo art. 51, § 2. º do CDC) e para evitar a frustração do contrato: o reflexo será adaptação bilateral e cooperativa das condições do contrato.

Cooperar é agir de modo leal e honesto nos melhores padrões comportamentais fixados pela boa-fé. É não dificultar e sim colaborar concorrendo com o parceiro de modo a prover a melhor eficácia do negócio jurídico e garantir o equilíbrio contratual, devendo, portanto, a renegociação ser fixada como uma das alternativas de tratamento ao fenômeno do superendividamento e tutela do consumidor que se encontre nesta situação.

A conciliação, por sua vez, pressupõe a necessidade de mediação entre os agentes envolvidos no negócio (consumidor superendividado x fornecedor de crédito). A conciliação busca uma solução amigável sem necessidade de recorrência ao judiciário. Segundo a doutrina européia, o fenômeno do superendividamento deve ser tratado mais como problema social do que como problema judicial. Conforme Maria Manuel Leitão Marques (2000, p. 212-213):

A mediação consiste numa atividade de intermediação entre os credores e devedores para renegociação dos contratos, é uma solução informal, mais flexível e vocacionada para organizar de forma interdisciplinar.

Geraldo de Farias Martins Costa (2002) evidencia o tratamento do consumidor superendividado francês que consiste em um processo misto composto por duas fases: a primeira é a fase administrativa conciliatória (mediação) e a segunda é a fase judicial.

A fase de mediação contempla Comissões do Superendividamento (Comissions de Surendettement) que são destinadas a definir um plano de pagamento para o devedor mediante a negociação com os credores mais importantes. A segunda fase judicial apenas é desencadeada em caso de insucesso da primeira.

Logo, resta consagrado o direito do consumidor superendividado de tentar conciliar com seus devedores uma melhor forma de pagamento de suas dívidas, o que, conforme já dito alhures, diante do panorama do ordenamento pátrio, encontra respaldo para tutela dos superendividados brasileiros.

Inspiradas neste modelo e, ainda, motivadas pela ausência de legislação própria para tratamento do assunto no Brasil, registra-se a elaboração de Projeto-Piloto (2007) pelas Juízas do Estado do Rio Grande do Sul Karen Rick Danilevicz Bertoncello e Clarissa Costa Lima, sob a supervisão da professora Claudia Lima Marques, apresentado à Corregedoria-Geral de Estado do Rio Grande do Sul, denominado "Conciliar é Legal".

Tal projeto-piloto visa exatamente mediar a renegociação de dívidas do superendividado com todos os seus credores com fito de que, de forma amigável, possa ser garantido o seu mínimo existencial. Explicam as Magistradas (2007, p. 1-2):

Este projeto-piloto objetiva a reinserção social do consumidor superendividado, através da conciliação paraprocessual ou processual, obtida em audiências de renegociação com a totalidade de seus credores. As audiências são presididas pelo Juiz de Direito, que propõe a renegociação com cada credor, na mesma solenidade, a partir das condições pessoais do superendividado e respeitando a preservação do seu mínimo vital.

Sem dúvidas é enorme o leque de soluções trazidas pelos pesquisadores e estudiosos com vistas ao tratamento do fenômeno do superendividamento os quais, principalmente a necessidade de elaboração de legislação específica de tratamento do problema, são compartilhados pela opinião assentada neste trabalho somados ao fato de que devem ser observados deveres de boa-fé, informação, cuidado e cooperação entre a o fornecedor do crédito e o consumidor tomador, tendo em vista a manutenção do mínimo vital.

Diante de tais assertivas pode surgir um questionamento acerca da postura do consumidor diante da situação: O consumidor não sabe que está se endividando? Evidente que sim.

No entanto, conforme fora estudado no decorrer deste trabalho, a situação de superendividamento do consumidor envolve uma série de situações que transitam desde a dinâmica da sociedade de consumo até a responsabilidade do Estado e instituições financeiras fornecedoras de crédito.

Ademais, são inúmeros os vícios que podem ser apontados diante do fornecimento, sem critérios, desmedido e ostensivo, do crédito. Principalmente há que se ratificar a vulnerabilidade do consumidor perante a concessão do crédito, seja este o consumidor proveniente das classes mais favorecidas (privilegiados) ou menos favorecidas (desfavorecidos), também denominados de hipossuficientes.

A vulnerabilidade prevista no Artigo 39, incisos IV e V do CDC, contempla as duas espécies de consumidor e fixam como práticas abusivas a prevalência da fraqueza e ignorância do consumidor e a exigência de vantagem manifestamente excessiva.

Tais prerrogativas legais ("prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;" e "exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;") constituem-se em paradigmas de conteúdo aberto e abstrato que podem ser aplicadas em diversas situações, inclusive, no caso de superendividamento.

Ora, ao tempo em que o crédito é fornecido de forma fácil, rápida, descriteriosa e ostensiva, o inadimplemento que ocorre na maioria das vezes em que o crédito é consumido de forma irrestrita, gera sérias conseqüências e coloca o consumidor em situação de extrema fragilidade. É patente a perda da dignidade diante do superendividamento.

Seria minimalista, portanto, a visão de que a culpa pela situação de superendividamento seria, tão somente, do consumidor e este, felizmente, não tem sido o caminho defendido pelos estudiosos do tema, sobretudo, porque, o ordenamento brasileiro contempla o princípio da dignidade da pessoa humana.

Importante frisar que a tutela do superendividado vislumbra-se na intervenção estatal seja através da criação de políticas públicas de prevenção e repressão, atuação do legislador mediante a criação de normas imperativas de tratamento do assunto, ou através da própria atuação do Estado-Juiz que pode modificar o conteúdo do contrato e, até mesmo, retirar-lhe a obrigatoriedade.

Isto porque o sistema civil-constitucional vigente no país concede ao julgador livre movimentação para decidir de forma mais justa adequando a lei aos valores ligados à ética, dignidade e solidariedade social.

Quanto à atuação do judiciário no ordenamento brasileiro, conforme evidenciado em momento oportuno quando se coube falar do mínimo existencial, já existe posicionamento, ainda que tímido, no sentido de revisar e restringir certas cláusulas e situações que impliquem em perda da dignidade pelo consumidor diante do superendividamento.

No entanto, faz-se mister evidenciar que essa atuação não corresponde, nas palavras de Judith Martins-Costa (2002, p. 198), "a puro e simples voluntarismo judicial", e sim estará condicionada ao exame de todas as outras normas, princípios e regras do ordenamento. Explana a autora:

E constitui modelo a boa-fé, porque, para sua correta aplicação, não pode o juiz prescindir da articulação coordenada de outras normas integrantes do ordenamento, compondo-as numa unidade lógica de sentido. É preciso recorres, exemplificamente, às regras da mora, ou da resolução contratual, ou da responsabilidade civil, ou do adimplemento, ou a tópicos integrantes do direito legislado, como o da "utilidade da prestação" para o credor, ou o que consagra o poder do juiz de reduzir a cláusula penal, ou às regras da exceção do contrato não cumprido e ainda as do abuso de Direito, ou a outros princípios ou diretrizes, expressos ou implícitos no ordenamento, como o da moralidade e razoabilidade ou a solidariedade social, ou, enfim, aos cânones de interpretação e integração do contrato, para lograr uma adequada concreção do princípio.

Logo, tutelar o consumidor superendividado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana seja através da atuação do legislador, criação de políticas públicas de prevenção e repressão e da intervenção do Estado-Juiz, é dar efetividade ao paradigma maior do estado democrático de direito brasileiro, que enxerga a pessoa como cerne do ordenamento. É, além de tudo, o restabelecimento da dignidade perdida.

Sobre a autora
Carolina Curi Fernandes Martinez

Advogada em Salvador-BA.Graduada pela UniJorge. Pós-graduada em Direito Civil e Direito do Consumidor pelo Curso Juspodivm-Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Carolina Curi Fernandes. A tutela do consumidor superendividado e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17312. Acesso em: 22 nov. 2024.

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