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Laicidade estatal e liberdade religiosa.

Decisões políticas influenciadas pelo fundamentalismo homofóbico

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Agenda 26/09/2010 às 11:13

A intervenção de movimentos religiosos fundamentalistas provoca reflexos na expressão político-social dos direitos humanos sexuais e reprodutivos.

Resumo: No presente trabalho de pesquisa, utilizou-se de metodologia analítica e interpretativa, com o fim de traçar um liame entre a intervenção de movimentos religiosos fundamentalistas no Estado Republicano atual e os reflexos desta intervenção na expressão político-social dos direitos humanos sexuais e reprodutivos, bem como sua influência na valoração do princípio da dignidade humana daqueles que possuem orientação sexual diferente do heterossexualismo. Demonstra-se, criticamente, a existência de uma sociedade heterossexista e das lutas dos grupos minoritários contra a opressão de grupos dominantes, objetivando construir uma democracia social que respeite legal e socialmente as orientações sexuais não heterônomas.

Palavras-chave: Direitos humanos sexuais; Laicidade estatal; Fundamentalismo religioso; Heterossexismo.

Sumário:1. Considerações Iniciais; 2. Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2.1. Descrição e Narrativa Histórica, 3. Democracia social e heterossexismo, 3.1. Homofobia; 4. Liberdade religiosa e secularização do Estado. 4.1. Laicidade estatal no mundo moderno; 5. Fundamentalismo Religioso: subversão do direito à liberdade religiosa, 5.1. Fundamentalismo religioso homofóbico; 6. Considerações Finais; 7. Referências Bibliográficas.


1. Considerações Iniciais.

O direito à liberdade se assenta, na Modernidade, como direito de índole negativa - isto é, como direito de proteção do indivíduo contra eventuais abusos de poder por parte do Estado-, fundado na consideração de que o Estado existe senão para assegurar aos cidadãos seu bem-estar e o respeito à sua condição de homem tout court. Ainda não podemos olvidar que este mesmo Estado, além de respeitar ideologias contrárias a si mesmo, deve atender as necessidades dos membros da sociedade que lhe dá vida, constituindo-se, pois, em instrumento para o alcance de um desiderato maior, a saber, a proteção da vida e da dignidade humanas.

Enquanto característica que distingue o homem de todos os outros seres, a liberdade se apresenta, a priori, como condição sine qua non para a proteção de outros valores supremos na ordem sócio-jurídica, representando um importante vetor do processo político democrático e é indispensável para a plena afirmação da dignidade humana e, com base nela, para a construção e consolidação de uma sociedade onde os direitos fundamentais emergentes da natureza humana sejam garantidos a todos os cidadãos sem exceção.

Poder-se-ia fazer uma subdivisão genérica do direito à liberdade em cinco categorias principais, reconhecidas, inclusive, pelo Direito Internacional, conforme se obtém de leitura da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH): liberdade de pensamento (art.18, DUDH), liberdade de expressão (art.19, DUDH) liberdade religiosa (art.18, DUDH), liberdade de ir e vir (art. 13, DUDH) e liberdade laboral (art.23, DUDH). Conforme a temática escolhida para este trabalho, iremos nos concentrar na liberdade religiosa.

O direito à liberdade religiosa nasceu com o advento do constitucionalismo liberal que, por sua vez, desenvolveu-se de mãos dadas com a Modernidade. A dicotomia histórica e secular, na Idade Moderna, entre a liberdade do indivíduo e o absolutismo do monarca, fez nascer a primeira noção de Estado de Direito, que evolui e se completa com a filosofia liberal, a qual encara a liberdade como requisito essencial para se alcançar a "igualdade proporcional", isto é, para materializar o princípio de nivelamento das oportunidades e da igual satisfação das necessidades fundamentais.

Nas sociedades de países ocidentais, não se consegue separar os valores morais, construídos pelo "homem comum", dos valores impostos pela religião predominante naquele meio. Desse modo, alguém que vive em uma sociedade cuja religião predominante prega o cristianismo não pode ser obrigado a se converter a qualquer religião cristã, mas está obrigado a aderir à sua moralidade, que é aquela defendida socialmente em seu meio.

Muitas pessoas consideram a religião como freio para os impulsos criminosos de grande parte da humanidade ou para os desvios de conduta, especialmente no campo da sexualidade, que continua sendo pensada em termos morais e não na perspectiva da liberdade individual. Ao criar balizas para o comportamento e a moral dos indivíduos, as grandes religiões monoteístas concebem, muito facilmente, dogmas solidificados na intolerância.

Reconhecida na Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu art.18, bem como em tantas outras Constituições nacionais [01], a liberdade individual para o livre exercício de uma religião não pode sobrepor-se ao interesse coletivo e a direitos de categoria mais essencial, tais como devem ser considerados os direitos à vida e à dignidade da pessoa humana.

O desafio de compreensão das relações entre religião e diversidade sexual vem sendo enfrentado no campo dos estudos antropológicos há algumas décadas. Muitas religiões incorporam diferentes aspectos dos valores modernos, tornando menos nítidas as fronteiras entre a lógica de uma liberdade laica e a lógica de uma religiosidade repressiva.

Como já dizia J.S Mill, "atualmente,a tirania da maioria é normalmente incluída nos males contra os quais a sociedade precisa ser protegida(...)a maioria pode ser uma parte que deseja oprimir outra parte".(MILL, 1974, p.138)

É desejável que cada indivíduo tenha sua convicção e queira convencer outras pessoas a partir de argumentos racionais, em espaços de discussão em que as convicções possam vir à baila e se enfrentarem umas as outras argumentativamente, afinal, a liberdade de pensamento é um princípio universal do direito, verdadeiro direito natural de cada ser humano que, antes mesmo de estar prescrito em Códigos e Leis, já faz parte do indivíduo desde que nasce; contudo, a Igreja subverte-o e ao princípio do Estado laico quando, por exemplo, tenta impedir os trâmites procedimentais de Projetos de Lei ou Bills que objetivam legalizar o estabelecimento de parcerias civis para casais homossexuais.

Deve-se traçar um liame bem definido entre o direito a liberdade religiosa e o fundamentalismo, que surge, basicamente, como uma reação ao chamado "modernismo" na teologia e é caracterizado pela sua influência "holística" sobre as atitudes dos crentes (religiosos), à medida que todos os aspectos da vida passam a ser sensíveis à opção religiosa, contaminando as posições em relação a quase todos os temas da vida, em especial as questões da não tipificação criminal do aborto, da sexualidade e da família, da homossexualidade, da eutanásia, da investigação bio-humana, etc. A religião termina por capturar opções políticas.

O que as diversas formas da visão fundamentalista têm em comum é o caráter autoritário e conservador de suas definições. Todas elas são reduções doutrinário-dogmáticas conservadoras da vida humana a convenções e conceitos produzidos social e historicamente, mas elevados a condição de verdades absolutas, universais, inquestionáveis.

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Na ideologia fundamentalista, a homossexualidade é um fenômeno estranho a esclarecer na vida dos indivíduos e o homossexual é portador de uma "causa determinante"que o torna sujeito de uma sexualidade particular. Podemos apontar que a eficácia desta ideologia, entre outras formas, realiza-se na sua ancoragem nas esferas psíquica, emocional e cognitiva (a subjetividade de cada um, uma parte dela inconsciente) de cada indivíduo.

Neste sentido, propõe-se, neste artigo, fazer-se uma análise crítica sobre os limites de exercício da liberdade religiosa, demarcando as diferenças dos atos daqueles que cumprem com este direito humano, que lhes é assegurado e reconhecido internacionalmente, daqueles que são fanáticos por uma escritura sagrada que é infalível em seus termos, para a qual não há outras interpretações ou fórmulas.

Ao traçarmos os limites entre o exercício da liberdade religiosa e do fundamentalismo religioso, pretendemos nos focar nos aspectos homofóbicos que caracterizam alguns dos atos e pensamentos fundamentalistas, seguindo a linha de raciocínio que Ronald Dworkin traçou em 1977, mas que, ainda nos dias atuais, encontra respaldo, qual seja: a) os preconceitos não são razões válidas; b) o sentimento pessoal de nojo ou repulsa não é razão suficiente para um julgamento moral; c) o julgamento moral baseado em razões de facto, que são falsas ou implausíveis, não é aceitável ("fanáticos religiosos nos Estados Unidos da América afirmam que a culpa pela pandemia do AH1N1 é a legalização do casamento gay em alguns estados norte- americanos e, em geral, pela tolerância às comunidades gays"); d) o julgamento moral baseado nas crenças alheias ("todos sabem que a homossexualidade é um mal") também não é justificável.(DOWRKIN, 1977, p. 240-258).

Na direção de questionar os limites da noção dos suportes sociais da existência como base para a construção de uma democracia política e social de fato (NARDI, 2005) utilizo como elemento tensionador a idéia de democracia sexual proposta por Eric Fassin (2006), que encontrará respaldo nas idéias de Dowrkin acima ilustradas, como se verá ao longo deste trabalho.

Por fim, ao buscar compreender a tensão introduzida pela democracia sexual no contexto dos ideais fundamentalistas, a partir de análise do pensamento das classes dominantes em razão aos grupos minoritários, pôde-se visualizar quais estratégias de inflexão da norma heterossexual (ou de reafirmação desta) que disputam a legitimidade da "verdade sobre o sexo" em contextos distintos.


2. Direitos Sexuais e Reprodutivos.

2.1. Descrição e Narrativa Histórica.

O termo "direitos reprodutivos" tornou-se público no I Encontro Internacional de Saúde da Mulher realizado em Amsterdã, Holanda, em 1984. Contudo, foi na Conferência Internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, que se conferiu papel primordial à saúde, aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos, ultrapassando os objetivos puramente demográficos, focalizando-se no desenvolvimento do ser humano. A CIPD provocou uma transformação profunda no debate populacional ao dar prioridade às questões dos direitos humanos.

Dessa conferência decorreu o Plano de Ação do Cairo que, além de introduzir o conceito de direitos reprodutivos, sinalizou para o reconhecimento de direitos sexuais, destacando o direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminações, coerções e violências. Na mesma oportunidade, também foi assentado que os Estados-Parte, além de estimularem e promoverem o relacionamento respeitoso e igualitário entre homens e mulheres, devem dedicar atenção especial a segmentos populacionais mais vulneráveis às violações de direitos humanos nos campos da reprodução e da sexualidade (VENTURA, 2003, p.14).

Embora tenha sido impossível conceituar no Cairo os direitos sexuais, são inúmeras as referências ao "sexo" ou à "sexualidade". Petchesky afirma que a inclusão da saúde sexual como um direito a ser protegido origina-se do esforço das delegações da África Sub-Saariana, cujas conseqüências da epidemia do HIV e Aids foram e continuam sendo devastadoras. ( PETCHESKY,1999, p.19)

Segundo o parágrafo 7.3 do Programa de Ação do Cairo,

(...)Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos(...)(grifo nosso)

Contudo, desenvolver a idéia de direitos sexuais na perspectiva dos direitos humanos aponta para a possibilidade do exercício livre e responsável da sexualidade, criando as bases para uma regulação jurídica que supere as tradicionais abordagens repressivas que caracterizam as intervenções jurídicas nesses domínios.

Com esse ideal, durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (CHINA), entre 23 e 27 de agosto de 2000, a Assembléia Geral da WAS - World Association for Sexology - aprovou as emendas para a Declaração de Direitos Sexuais, decidida em Valência, no XIII Congresso Mundial de Sexologia, em 1997.

A Declaração de Direitos Sexuais tem como fundamento o reconhecimento de que os direitos sexuais são direitos humanos universais, baseados na liberdade, dignidade e igualdade para todos os seres humanos e que a saúde sexual é um direito fundamental. Enumera, ainda, como um dos direitos a serem protegidos, inerentes ao ser humano, o direito à igualdade sexual, ou seja, liberdade de todas as formas de discriminação, independentemente do sexo, gênero, orientação sexual, idade, raça, classe social, religião, deficiências mentais ou físicas.

As Declarações e os citados Programas e Plataformas de Ação de Conferências Internacionais são considerados soft law, refletem-se como compromissos morais dos Estados signatários, que não implicam uma tradução automática para as legislações domésticas, contudo, estes compromissos resultam em pressão externa para que se cumpra o acordo e, eventualmente, um constrangimento político para o Estado no caso de descumprimento.

Rosalind Petchesky atenta para o fato de que o desenvolvimento, mesmo que incipiente do conceito de direitos sexuais, só foi possível de forma negativa, ou seja, enunciando o direito de não ser objeto de abuso ou exploração, no sentido paliativo de combate às violações (VILLELA, W.V. e ARILHA, M., 2003, p.131).

Cada cultura, em cada tempo histórico, constrói símbolos e signos do que é aceito e desejável em termos sexuais. A importância da reprodução como finalidade última da relação sexual não se forma somente pelo discurso sobre a mulher e seu papel na sociedade. Vincula-se, também, aos discursos sobre o sexo, de forma a restringir não só as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, já que não geram filhos, como também o exercício da sexualidade pelas mulheres fora do casamento. Com isso, "qualquer expressão sexual ligada à obtenção de prazer, e não à reprodução, passa a ser rechaçada" (SARMENTO, 2004, p.190). O modelo normativo baseado nesta ligação sexo-reprodução, não poderia ser outro que não a heterossexualidade que continua sendo entendida como a forma "natural" de relação sexual.


3. Democracia social e Heterossexismo.

Na abordagem jurídica da sexualidade, seus conteúdos são geralmente articulados a partir das demandas envolvendo situações específicas, representativas das lutas e das reivindicações dos movimentos feministas, desde as realidades sociais da discriminação sexista e da violência, até questões relativas à saúde reprodutiva, especialmente no que diz respeito ao acesso às técnicas contraceptivas e ao aborto.

Sem subestimar em nenhum momento tais realidades, avançar na compreensão dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos no quadro maior dos direitos humanos, implica um alargamento de perspectiva. Isso porque os direitos sexuais e direitos reprodutivos são categorias jurídicas que traduzem fenômenos e relações sociais entabuladas não só por mulheres, mas também por homens. Tais direitos se fazem necessários, de modo proeminente, nas discussões a respeito da expressão sexual, aqui entendida na sua forma mais ampla, abarcando homossexuais, heterossexuais, bissexuais, transexuais e travestis.

Na metade do séc. XIX ganhou força uma concepção que corresponderia a uma naturalizaçãoda sexualidade humana, denominada de doutrina naturalista, cujo efeito mais destacado é ter criado a idéia segundo a qual a heterossexualidade seria inata(a natureza daria os exemplos em todas as espécies), sendo então natural e normal, e a homossexualidade seria uma tendência adquirida, não sendo, pois, nem natural nem normal.

Em 1870, um texto do médico alemão Carl Westphal, intitulado "As Sensações Sexuais Contrárias" ao considerar a heterossexualidade "normal", contrapõe-se à idéia de que as outras orientações sexuais são um desvio à norma e reveladoras de perturbação. Não são encaradas como um dos aspectos possíveis na diversidade das expressões da sexualidade humana.

Neste sentido aponta Weeks,

(...)a transformação na vida familiar, a partir do século XVIII, e as marcadas distinções de papéis sociais e sexuais masculinos e femininos associadas com isso, tiveram o efeito de aumentar a estigmatização dos homens que não se conformassem prontamente aos papéis sociais e sexuais deles esperados. Aqueles que rompessem com as expectativas sociais do que era considerado ser um homem eram categorizados como não sendo homens de verdade (...) (WEEKS,1999,p.77)

É a partir dos anos 50, e sobretudo, depois dos anos 70 do século XX, que se inicia a formulação crítica, apoiada na antropologia e na história, opondo-se ao discurso até então dominante – mesmo no chamado meio científico – que apontava o caráter patológico, marginal e desviante da homossexualidade.

O efeito político da pressão dos movimentos sociais pelo direito à livre expressão da sexualidade ganhou força após a epidemia da Aids e busca a igualdade de direitos independente da posição dos sujeitos no espectro da diversidade sexual ou de gênero.

O direito da sexualidade – e nesta ocasião utilizamos a idéia de democracia sexual, apresentada por Eric Fassin (2006) - não deve fixar-se somente em identidades e práticas sexuais predefinidas, evitando rótulos e imposições heterônomas, uma vez que classificações rígidas, fundadas em distinções sexuais monolíticas, acabam reforçando a lógica que engendra machismo ou heterossexismo no direito vigente.(CALHOUN,1993)

Deve-se compreender como se produz um espaço social que limite o menos possível as formas de viver e existir no mundo ou, ao contrário, no sentido de estabelecer novas trincheiras na afirmação de relações de dominação (masculina e heterossexista), como demonstra Judith Butler (2004), a imposição da norma heterossexual para todos continuará inviabilizando a possibilidade de viver para alguns.

Para tanto, é preciso buscar princípios capazes de abarcar, simultaneamente, os grandes eixos que têm estruturado o debate corrente sobre os direitos sexuais, a saber: as questões identitárias vinculadas à expressão da sexualidade (onde se inserem o tema da homossexualidade), as relações sexuais propriamente ditas e suas conseqüências e a busca da fundamentação dos direitos sexuais (atada à idéia de saúde sexual).

A construção dessa abordagem exige que se considere a relação entre democracia, cidadania, direitos humanos e direitos sexuais, bases a partir das quais será proposto um modelo de compreensão democrático dos direitos sexuais, alhures aduzido como direito democrático da sexualidade.

3.1. Homofobia.

A homossexualidade não tem sido concebida como um problema psicológico-social, a homofobia, sim. Pesquisas realizadas entre as mais diversas culturas mostraram que, em vários países, a tolerância dos indivíduos a grupos étnicos e minoritários tem diminuído nas últimas décadas.

Foi somente a partir do século XVIII, no Renascimento, que se começou a considerar a existência de um modelo de dois sexos biológicos distintos. Foi o ambiente igualitário da Revolução Francesa que gerou uma reviravolta no modo de pensar a existência de homens e mulheres, tendo em vista a necessidade de, a partir do referencial da igualdade, desfazer a concepção de mulher como ser humano inferior.

Inicialmente, a inteligência estava associada ao masculino e a sensibilidade ao feminino. Neste sentido, a função precípua das mulheres era, pois, a procriação, era da adequada e eficiente administração do desenvolvimento corporal e da capacidade reprodutiva das mulheres que dependia o desenvolvimento da sociedade.

Interessante notar que, segundo Fabíola Rhoden, a idéia vigente à época era de que a natureza havia provido as diferenças básicas entre homens e mulheres, mas estas seriam operacionalizadas e cristalizadas ao longo de suas vidas.(RHODEN, 2003, p.205-206)

A importância da reprodução como finalidade última da relação sexual não se forma somente pelo discurso sobre a mulher e seu papel na sociedade. Atrela-se também aos discursos sobre o sexo, de forma a restringir não só as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, já que não geram filhos, como também o exercício da sexualidade pelas mulheres fora do casamento. Com

isso, "qualquer expressão sexual ligada à obtenção de prazer, e não à reprodução, passa a ser rechaçada".(VILLELA, 1992, p.103)

O modelo normativo, então, baseado nesta ligação sexo-reprodução, não poderia ser outro que não a heterossexualidade. Esta era (e continua sendo) entendida como a forma "natural" de relação sexual, o que só foi possível por meio da repressão às outras formas de expressão sexual.

Neste sentido, importante a observação de Gayle Rubin (1989), a qual aduz que as sociedades ocidentais modernas avaliam os atos sexuais a partir de um sistema hierárquico, que tem no topo da pirâmide erótica os heterossexuais reprodutores casados, logo abaixo os heterossexuais monogâmicos não casados, mas que constituem casais, seguidos da maior parte dos heterossexuais. Os casais estáveis de lésbicas e de gays estariam no limite da respeitabilidade, enquanto os homossexuais promíscuos estariam apenas um pouco acima das castas sexuais mais desvalorizadas, que incluem, geralmente, transexuais, travestis, fetichistas, sadomasoquistas, trabalhadores do sexo, modelos da indústria pornográfica, sendo a mais baixa de todas as castas formada por aqueles que transgridem as fronteiras geracionais. Quanto mais o grupo a que pertence um indivíduo está situado no topo da pirâmide, maiores as recompensas em termos de reconhecimento de saúde mental, respeitabilidade, legalidade, mobilidade física e social, apoio institucional e benefícios materiais.

Obtém-se que as concepções preconceituosas com relação à homoafetividade fundamentam-se em idéias religiosas e/ou oriundas de explicações biológicas e psicológicas vulgarizadas no âmbito do senso comum.

Como indício deste modelo hierárquico, observa-se, nos últimos anos, a proliferação de grupos organizados contra os dissidentes sexuais em todos os continentes. (CORRÊA; ÀVILA, 2003)

Um caso que ganhou notoriedade internacional, em Janeiro de 2005, no Brasil, foi o da impugnação, pelo Superior Tribunal Eleitoral (TSE), da candidatura de Eulina Rabelo ao cargo de prefeita do município de Viseu, no estado do Pará. Por seis votos a zero, sob o argumento de que a candidata mantinha um relacionamento estável com a atual prefeita, foi decidida sua inelegibilidade. Nos termos da decisão do então Ministro Gilmar Mendes, do TSE, "Os sujeitos de uma relação estável homossexual, à semelhança do que ocorre com os de relação estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7°, da Constituição Federal (Brasileira)". Em entrevista à revista brasileira "Veja"(edição nº 1878, de 03.11.2004), a candidata impugnada expressou o paradoxo de sua situação: "Eu me senti abandonada pelas leis do meu país (sic!). A Constituição (Federal Brasileira) não reconhece união estável entre homossexuais quando o assunto são seus direitos, mas de repente reconhece para os deveres".

A discriminação, pois, tomou nova forma de expressão, a sutil ou encoberta, em relação a quaisquer formas de preconceito social, especialmente em razão de conjuntos normativos proibitivos de atos ou condutas preconceituosas contra as denominadas minorias sociais. Especificamente, posicionamentos religiosos em relação ao homossexualismo têm sido motivo de polêmica, principalmente porque os mesmos parecem contrariar o princípio universal de direitos humanos que proclama a "igualdade entre todos perante a Lei".

De acordo com Myers (2000), em alguns países, como França, Inglaterra, Alemanha, Austrália e Holanda, o preconceito sutil apresenta as seguintes características: exagero das diferenças étnicas, expressão de pouca admiração e afeição por minorias, discriminação de minorias com base em justificativas não-raciais (ver também Pereira, Torres & Almeida, 2003).

Aponta-se a necessidade de desconstrução dos binarismos estanques. A dominação masculina e as relações homens–homens são marcadas por violências, simbólicas e concretas, de sorte que para ser homem é imperativo distanciar-se do oposto – mulheres e crianças - , tornando o feminino o aspecto central a ser rejeitado, sob pena de ser (mal)tratado como tal (núcleo da homofobia). Ademais, os próprios homens são submetidos a hierarquias masculinas que incluem vetores como os de classe e de etnia.

Fazendo um paralelo entre as sociedades complexas, Welzer-Lang (2004) afirma que aceitando as leis dos maiores - os que detêm a dominação, os homens que são poderosos e que oprimem outros homens e outras mulheres - é que se constituem as identidades masculinas. Para ser homem é preciso não ser associado à mulher. O feminino torna-se o pólo de rejeição central, o inimigo interior que deve ser combatido sob pena de também ser assimilado a uma mulher e também ser (mal)tratado como tal. Apreende-se a sexualidade masculina através dessa iniciação, a partir dos prazeres de se estar entre homens e ser distinguido das mulheres.

Após o estudo realizado nas mais diversas obras sobre o tema, observou-se que a homofobia remete-se a um repúdio que busca dar conta da maneira como a identificação de gênero se volta e se fixa em cada sujeito.

Instaura-se, outrossim, uma ameaça à universalidade dos direitos humanos, uma vez que existem vozes que buscam um conceito de direitos humanos sensível aos valores culturais, que fazem uso político da cultura, de suas tradições sociais, e, inclusive, de dogmas religiosos fundamentalistas (como veremos a seguir) para oprimir não só as mulheres, mas também as minorias sexuais, negando-lhes o exercício pleno da cidadania.

Sobre a autora
Paola Frassinetti Alves de Miranda

Pós-graduanda em Direito Público pela Ensine Faculdades. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba Articulista e pesquisadora da área de Direitos Humanos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Paola Frassinetti Alves. Laicidade estatal e liberdade religiosa.: Decisões políticas influenciadas pelo fundamentalismo homofóbico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2643, 26 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17463. Acesso em: 18 dez. 2024.

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