Resumo
O presente estudo tem como objetivo a análise dos efeitos do Decreto 12.583/11, de autoria do Governador do Estado da Bahia, publicado no dia 09 de fevereiro de 2011, que dispõe acerca dos procedimentos específicos sobre a execução orçamentária e financeira no âmbito da Administração Direta Estadual, suas autarquias, fundos, fundações e empresas estatais dependentes para o exercício de 2011, elencando seus vícios de ilegalidade/inconstitucionalidade e, em decorrência, demonstrando suas conseqüências nefastas no âmbito da educação pública superior do estado.
Palavras chave: Autonomia Universitária. Constitucionalidade. Decreto. Educação. Legalidade. Princípio. Universidade.
1.Introdução
"O homem não é nada além do que a educação faz dele" (KANT).
O aforismo mencionado serve como pressuposto epistemológico da presente análise, cujo enfoque recai sobre os (mal)efeitos do Decreto 12.583/11, de autoria do Governador do Estado da Bahia, publicado no dia 09 de fevereiro de 2011, que dispõe acerca dos procedimentos específicos sobre a execução orçamentária e financeira no âmbito da Administração Direta Estadual, suas autarquias, fundos, fundações e empresas estatais dependentes para o exercício de 2011.
Em virtude de motivos diversos que não cabe aqui mencionar, o chefe do Poder Executivo Estadual decidiu por bem dar início a um brusco programa de corte de gastos e redução de despesas no âmbito do executivo estadual, corte este que causou impacto direto à estrutura organizacional das entidades de ensino no Estado da Bahia e que certamente trará conseqüências maléficas à qualidade e aprimoramento do ensino no estado.
Por entender, assim como Marx, que a educação é a (super)estrutura de uma sociedade, nossa análise preocupa-se, além de apresentar a adequada argumentação jurídica ao caso, em semear na mente dos leitores curiosos uma reflexão acerca princípios previstos em nossa Carta Maior e o modo como o jogo político influencia diretamente no valor que é dado aos direitos e garantias fundamentais, relativizando-os segundo os interesses do agente político (afinal de constas, o estado como sociedade politicamente organizada não pode ter interesse divergente daqueles da sociedade, mas, ao contrário, compatíveis, entretanto, nem sempre executáveis) e as vezes, de maneira legítima, até da própria sociedade.
Em que pese o argumento político que implicitamente nos acompanha, o rebate à legislação mencionada se dá ao longo do texto de maneira estritamente jurídica, tendo em seu bojo a ofensa ao princípio da autonomia universitária, restando aos leitores refletirem sobre a correta colocação da idéias, bem como das escolhas de nossos administradores.
2.Da legislação em comento.
Trata-se do Decreto 12.583/11, emanado pelo chefe do Poder Executivo do Estado da Bahia, cujo intuito é a redução de despesas com os órgãos e entidades da Administração Direta e Indireta do Estado, dentre estas a Universidade do Estado da Bahia - UNEB, ligada à Secretaria da Educação e Cultura.
Tendo em vista a finalidade para a qual foi criado, o decreto em questão estabelece uma série de procedimentos relativos à liberação de recursos para atender à execução das despesas de exercícios anteriores, bem como procedimentos em geral para pagamentos de despesas já contratadas, dispondo, ainda, sobre despesas com pessoal.
Dentre as várias restrições orçamentárias impostas pela nova legislação, elencamos aquelas cujas disposições causam direto prejuízo a continua qualidade do ensino público estadual. São essas estabelecidas no art.9 º, do Decreto 12.583/11:
"Art. 9º - Os órgãos e entidades do Poder Executivo Estadual deverão observar e cumprir, fielmente, as ações a seguir estabelecidas para a gestão da despesa e controle do gasto de pessoal, até 31 de dezembro de 2011:
I - suspender o remanejamento das dotações orçamentárias para contratações pelo Regime Especial de Direito Administrativo - REDA;
II - reduzir as despesas com contratação REDA no corrente exercício, segundo metas a serem aprovadas pelo Conselho de Política de Recursos Humanos - COPE;
III - suspender o aumento na cota das Gratificações por Condições Especiais de Trabalho - CET e Regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva - RTI, concedido aos órgãos e entidades para cargos em comissão, a exceção de criação de novos cargos em comissão, decorrentes de reestruturação organizacional;
IV - suspender a concessão ou ampliação de percentuais da Gratificação por Condições Especiais de Trabalho - CET e Regime de Tempo Integral e Dedicação Exclusiva - RTI para cargos efetivos e de carreira do Poder Executivo Estadual, exceto os percentuais já acordados no Sistema Estadual de Negociação Permanente - SENP;
V - vetar a reestruturação ou qualquer revisão de planos de cargos e salários das empresas públicas e sociedades de economia mista, pertencentes ao orçamento fiscal e de seguridade social, que impliquem em aumento da despesa de pessoal;
VI - suspender a concessão de afastamentos de servidores públicos para realização de cursos de aperfeiçoamento ou outros que demandem substituição.
Parágrafo único - As situações excepcionais de que trata este artigo serão decididas pelo Governador do Estado, ouvido, previamente, o Conselho de Política de Recursos Humanos - COPE, que analisará a pertinência e a conveniência da medida proposta."
Após leitura do supracitado artigo, resta claro que as medidas adotadas pela nova legislação causarão impacto direto na qualidade do ensino no Estado da Bahia, principalmente naquilo que tange o regime de contratação, promoção e aperfeiçoamento de docentes vinculados à universidade. Não obstante, a suspensão das contratações pelo Regime Direto de Direito Administrativo – REDA, tendo em vista o bloqueio das dotações com essa finalidade, poderá implicar, ainda, na impossibilidade de contratação de pessoal em caráter temporário, restando prejudicada a possibilidade de substituição de professor ou admissão de professor visitante.
Elencadas as medidas trazidas pelo novo decreto e suas possíveis conseqüências ao ensino superior estadual, cabe agora analisar sua inconstitucionalidade/ilegalidade frente ao ordenamento jurídico vigente.
3.Da inconstitucionalidade do Decreto 12.583/11. Ofensa ao princípio da autonomia universitária.
A Universidade do Estado da Bahia – UNEB goza de autonomia acadêmica, administrativa e financeira e patrimônio próprio, segundo a inteligência de sua própria lei de criação, a Lei Delegada 66/83 e, por tal motivo, classifica-se na espécie especial de autarquia.
Ocorre que, tal autonomia não se trata de privilégio exclusivo concedido somente a referida universidade, eis que a Constituição Federal de 1988, no capítulo que trata da educação, cultura e desporto, estende a todas as outras universidades as mesmas prerrogativas. O legislador constituinte, ciente do papel fundamental que desempenha a educação como vetor otimizador do Estado Democrático de Direito na busca pela consecução dos objetivos fundamentais da nossa República, teve por bem conceder determinadas garantias as universidades, de modo a preservar sua autonomia didático – cientifica.
Nesse desiderato, visando resguardar a liberdade de pensamento, o respeito a pluridiversidade, bem como a autonomia didático – cientifica das universidades, prega a Constituição em seu artigo 207 o princípio da autonomia universitária, in verbis:
"Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei.
(...)"
Ora, a simples leitura do artigo 9º, do Decreto 12.583/11 demonstra a disparidade do mesmo para com os ditames constitucionais, restando evidente a ofensa ao supracitado princípio. Como vimos, o decreto em comento tem como objetivo reduzir despesas da Administração Direta e Indireta, atitude esta que, em uma análise preliminar e apressada parece um tanto quanto louvável, haja vista os princípios constitucionais que regem a administração pública. Ocorre que, ao pretender estender as amarras orçamentárias a todos os entes que de alguma forma se vinculam à administração estadual, o afamado decreto acabou por regular matéria que não lhe compete, invadindo competência exclusiva dos órgãos internos da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, e, em conseqüência, ferindo de morte o princípio da autonomia universitária.
Ressalta-se, por oportuno, que a dita "vinculação" existente entre a Universidade do Estado da Bahia – UNEB e o Governo do Estado opera somente para fins de verificação da legalidade dos atos praticados por aquela, bem como para repasse de receitas, não havendo qualquer ingerência direta do Governo da Bahia sobre a UNEB, sendo defeso ao Governo do Estado, inclusive, a nomeação de pessoal para a ocupação de cargos na autarquia, bem como o controle e fiscalização da aplicação dos recursos públicos pela UNEB, competência essa do Tribunal de Contas do Estado da Bahia. Dita "vinculação", trata-se, na verdade, de um poder que assiste à administração de influir sobre a universidade de modo a garantir o cumprimento dos objetivos para a qual foi criada, no caso, o de desenvolver uma educação superior de qualidade.
De mais a mais, interessante mencionar que o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que o princípio da autonomia universitária, anteriormente consagrado em lei ordinária, foi erigido a "status" constitucional consoante se infere da dicção do artigo 207, da Lei Maior. Decorrência lógica de tal princípio é o fato de que as universidades possuem autonomia suficiente para gerir seu pessoal, bem como o próprio patrimônio financeiro, sendo ressalvado que o exercício dessa autonomia não pode, contudo, sobrepor-se ao quanto dispõem a Constituição e as Leis.
Nesse sentido decidiu o STF, que, ao analisar a ADIn 2.367-5 proposta pelo Governador do Estado de São Paulo, declarou que a implantação de novo campi universitário sem que a iniciativa partisse da própria instituição ofenderia o princípio da autonomia universitária. In verbis:
EMENTA: AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. ARTIGO 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NORMA AUTORIZATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A implantação de campus universitário sem que a iniciativa legislativa tenha partido do próprio estabelecimento de ensino envolvido caracteriza, em princípio, ofensa à autonomia universitária (CF, artigo 207). Plausibilidade da tese sustentada. 2. Lei autorizativa oriunda de emenda parlamentar. Impossibilidade. Medida liminar deferida. (STF, ADIn. nº 2.367-5 /SP, Rel. Min.Mauricio Correa, tribunal pleno, Julgamento: 05/04/2001)
Mutatis mutandis, é possível perceber que no caso em tela, o Decreto 12.583/11, em seus incisos I, II, III, IV e VI, ao buscar regular a forma de gerência da universidade com relação a seu pessoal afronta claramente a autonomia administrativa e financeira da instituição, e, por conseguinte, o princípio constitucional ora aclamado.
Assim sendo, no exercício de sua autonomia, conforme dicção do § 1º, do artigo 207, fica a cargo da universidade estadual verificar, conforme sua conveniência, a necessidade ou não de contratação de docentes, de conceder afastamentos, bem como o regime ao qual se submeterão, tudo na forma da lei. Tal lei, como veremos a seguir, na verdade se trata de um conjunto de disposições legais diversas, excluindo desse emaranhado de disposições o Decreto 12.583/11.
Restando demonstrado a flagrante inconstitucionalidade do Decreto 12.583/11, cabe agora indagar a qual lei a Carta Magna faz referência, de modo a evidenciar também os vícios de legalidade do qual padece o vergastado decreto.
4.Da ilegalidade do Decreto 12.583/11. Ofensa a Lei Delegada 66/83, Lei 8.352/02 e a Lei 9.394/96.
Neste tópico, demonstraremos que, além do Poder Executivo estadual, através do Decreto 12.583/11, ter ofendido preceito constitucional ao limitar a autonomia da Universidade do Estado do Bahia, adotando procedimento absolutamente inadequado no que tange o regime de gestão de pessoal cuja competência é exclusiva da UNEB, também acabou por incorrer em grave ofensa a legislação infraconstitucional, dentre elas o Estatuto do Magistério Público das Universidades do Estado da Bahia (Lei 8.352/02) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96).
4.1. Ofensa a Lei Delegada 66/83.
Sendo pessoas jurídicas, as universidades públicas, além de todas as prerrogativas já citadas, gozam de liberdade administrativa nos limites da lei que as criou, não sendo subordinadas a órgão algum dentro do Estado. Nas palavras de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, as universidades constituem-se "em centros subjetivados de direitos e obrigações distintos do Estado, seus assuntos são assuntos próprios; seu negócios, negócios próprios; seus recursos, não importa se oriundos de trespasse estatal ou hauridos como produto da atividade que lhes seja afeta, configuram recursos e patrimônios próprios, de tal sorte que desfrutam de autonomia financeira, tanto como administrativa; ou seja, suas gestões administrativa e financeira necessariamente são de suas próprias alçadas – logo, descentralizadas." (MELLO, 2010, p.161).
Estando ao alvedrio da lei que cria a autarquia estabelecer os limites dentre os quais a mesma atuará, cumpre, então, analisar o texto da Lei Delegada 66/83, criadora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, de modo a verificar os referidos limites de atuação e prerrogativas da universidade, bem como os limites de tutela do Estado. De antemão, impende avisar que ao final dessa exegese legislativa restará inquestionável a competência exclusiva da universidade para tratar de assuntos de sua alçada interna, seja de ordem financeira, administrativa ou de regime de pessoal.
Naquilo que interessa, prega a Lei Delegada 66/83:
"Art. 4º - Será assegurada autonomia para gestão de assuntos acadêmicos, administrativos e financeiros às unidades de educação superior, que são destituídas de personalidade e patrimônios próprios.
(...)
Art. 7º - A administração da UNEB será exercida pelos seguintes Órgãos:
I - Conselho de Administração;
II - Reitoria;
III - Conselho Universitário;
IV - Conselho Superior de Ensino, Pesquisa, e Extensão.
Parágrafo único - A competência dos órgãos aludidos neste artigo será estabelecida no Estatuto e no Regimento da UNEB, a serem aprovados pelo Governador do Estado.
(...)
Art. 11 - A estrutura acadêmica e administrativa da UNEB será definida no Estatuto e no Regimento Geral, atendidas as disposições da presente lei e das normas que disciplinam a educação superior.
(...)
Art. 14 - A Universidade Estadual da Bahia disporá de quadros próprios de pessoal, submetidos ao regime estatutário ou da legislação trabalhista." (grifos nossos)
Pois bem. Analisando os artigos supracitados, podemos perceber que, conforme constitucionalmente previsto, a universidade possui autonomia acadêmica, administrativa e financeira (art.4), estando sua estrutura acadêmica e administrativa, bem como a competência de seus órgãos internos distribuída no Estatuto e Regimento da UNEB (arts. 7 e 11). De início, pode-se perceber que, com relação aos assuntos acima mencionados, o Poder Executivo do Estado da Bahia, no exercício da competência que lhe foi delegada, não entendeu por bem instituir a prerrogativa de exercer o controle sobre os atos de gestão, sejam esse de caráter orçamentário ou de contratação de pessoal, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, haja vista autonomia resguardada à entidade por sua lei de criação.
Nesse ínterim, ao verificarmos o Regimento Interno da UNEB podemos perceber, de imediato, em seu artigo 6, incisos XVI e XVII, que é da competência do conselho universitário aprovar a proposta orçamentária da instituição, cabendo ao órgão interno da universidade, em seu juízo de conveniência, verificar a necessidade ou não de contratação de docentes.
Não fosse o bastante, como veremos nos subtópicos seguintes, em uma só tacada, o Decreto 12.583/11 infringiu também disposições do Estatuto do Magistério Público das Universidades do Estado da Bahia (Lei 8.352/02) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96).
4.2. Ofensa ao Estatuto do Magistério Público das Universidades do Estado da Bahia (Lei 8.352/02).
A Lei 8.352/02 disciplina o regime jurídico do Magistério Público das Universidades do Estado da Bahia e consubstancia o seu estatuto especial, previsto na Constituição Estadual, conforme dispõe seu artigo 1º. Ao longo de seu corpo textual, o referido estatuto trata, entre outras coisas, da remuneração, dos benefícios, direitos e vantagens e dos afastamentos dos magistrados.
Para que fique clara a afronta cometida pelo Decreto 12.583/11 que, mesmo sem ter o condão de regular os dispositivos do estatuto acima citado, acabou por atravessar esfera de competência que não lhe cabia, haja vista o disposto na lei específica que trata do regime jurídico dos magistrados públicos das universidades estaduais, entendemos por bem colacionar os seguintes dispositivos da lei, de forma a evidenciar os vícios de ilegalidade da rechaçada norma. O trecho contendo os dispositivos afrontados é longo, mas necessária a sua citação porque sintetiza todas as alterações ilegalmente promovidas pelo decreto:
"Art. 20 - O Professor integrante da carreira do magistério superior ficará submetido a um dos seguintes regimes de trabalho, de acordo com o plano departamental:
(...)
§ 4º - As alterações dos regimes de trabalho deverão ser aprovadas pelo Departamento e homologadas pelo Reitor.
(...)
Art. 25 - O docente em regime de trabalho de 20 (vinte) e de 40 (quarenta) horas semanais, poderá requerer, junto ao departamento em que esteja lotado, mudança do regime de trabalho para tempo integral com dedicação exclusiva, observando a legislação pertinente e de acordo com a disponibilidade orçamentária.
(...)
Art. 33 - Além dos casos já previstos em Lei, o integrante da carreira do magistério superior poderá afastar-se de suas funções, computando o seu afastamento como de efetivo exercício de magistério, nos seguintes casos:
I - para realizar curso de pós-graduação em instituições oficiais ou reconhecidas, no país ou no exterior;
II - para realizar pós-doutoramento;
III - para participar de reuniões, congressos e outros eventos de natureza técnico-científica, educacional, artístico-cultural ou sindical, relacionadas com as atividades acadêmicas do professor;
IV - para prestar colaboração temporária à outra instituição pública de ensino superior, de pesquisa ou de extensão;
V - para participação de eventos de deliberação coletiva da classe ou da categoria profissional;
VI - para licença sabática.
(...)
Art. 36 - Os afastamentos que não implicarem ausência do País, serão concedidos mediante ato do Reitor.
Parágrafo único - Qualquer afastamento dependerá do pronunciamento favorável do Departamento competente, observadas as normas internas de cada Universidade."(grifos nossos)
Ora, conforme evidenciado pelos dispositivos agora juntados torna fácil perceber a total afronta dos incisos III, IV e VI, do Decreto 12.583/11, aos comandos da Lei 8.352/02. É que a lei em comento ao dispor do regime de trabalho, benefícios, progressões e gratificações, bem como possibilidade de afastamento, definiu ser da competência das próprias universidades regular os casos de concessão de afastamento de docentes, de integração ao regime integral e de dedicação exclusiva, bem como dispor sobre eventuais gratificações.
Neste diapasão, não caberia então a um decreto promulgado pelo Poder Executivo, que frise-se, não possui qualquer influência nos órgãos internos das universidades, regular matéria que, por lei, não lhe é cabida. Em conseqüência, a validade dos incisos antes mencionados, no que tange as universidades estaduais, resta prejudicada. Assim, seguindo os ditames legais, cabe somente a universidade que, dentro dos seus critérios de conveniência e observando seu orçamento, decidir se concederá ou não afastamentos e incluirá ou não novos docentes sob o regime integral ou de exclusividade.
No que concerne a observância do limites orçamentários disponíveis, cabe citar a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do AgRg no REsp 519366 / RN, onde a União sustentou a tese de que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte não poderia efetivar a contratação de professores aprovados em concurso público, porque o ato implicaria desequilíbrio no orçamento federal, argumentando ainda que o exercício da autonomia universitária deveria atender à disponibilidade de recursos. A tese suscitada pela União foi rechaçada pela Sexta Turma do STJ, que reafirmou jurisprudência já consolidada no tribunal no sentido de que a autonomia jurídica, administrativa e financeira das universidades públicas federais brasileiras legitimam a competência para proceder aos comandos de pagamento de salários, benefícios previdenciários e descontos de seus servidores, visto ser entidade autárquica federal dotada de personalidade jurídica própria. A decisão ficou assim ementada:
"AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE. REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE PROFESSOR. ATO DE NOMEAÇÃO E POSSE. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. APLICAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA LEI FEDERAL 9394/96 REGULAMENTADA PELO DECRETO 2798/98. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA O PROVIMENTO.
1. Consoante jurisprudência que vem se firmando no STJ, as Universidades Públicas possuem autonomia suficiente para gerir seu pessoal, bem como o próprio patrimônio financeiro, sendo que o exercício dessa autonomia não pode, contudo, sobrepor-se ao quanto dispõem a Constituição e as Leis. 2. Agravo regimental a que se nega o provimento."(STJ,AgRg no REsp 519366 / RN, Rel.Min.Jane Silva, Sexta Turma, julgamento:11/11/08)
Nesse sentido, confira-se, a título ilustrativo, trecho dos votos da Ministra JANE SILVA:
"A Terceira Seção do STJ já enfrentou o tema, decidindo no sentido de que o princípio da autonomia universitária, anteriormente consagrado em lei ordinária, foi erigido a "estatus" constitucional, consoante se infere da dicção do art. 207, da Carta Magna, sendo que a noção de autonomia universitária não deve ser confundida com a de total independência, na medida em que supõe o exercício de competência limitada às prescrições do ordenamento jurídico, impondo-se concluir que a universidade não se tornou, só por efeito do primado da autonomia, um ente absoluto, dotado da mais completa soberania, cabendo relembrar que a própria Lei nº 5.540/68, ao estabelecer em seu art. 3º, que as universidades gozarão de autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira, reafirma que tais prerrogativas serão exercidas "na forma da lei".
(...)
Restou firmado pela Terceira Seção do STJ que, sendo a universidade um ente integrante da Administração Pública, está obrigatoriamente vinculada à observância do disposto no art. 167, II, da Constituição Federal, que veda a "realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais.".
O regulamento da Lei 9394/96, o Decreto nº 2798/98, explicita que o exercício da autonomia financeira da universidade deve levar em conta a disponibilidade de recursos. Todavia, a discussão acerca da disponibilidade orçamentária para a contratação dos professores aprovados no concurso promovido pela ora recorrida, não é tema a ser desenvolvido nestes autos, os quais se limitam ao exercício da autonomia financeira da universidade federal.
Por fim, cumpre acrescentar que o acórdão recorrido consignou, que não restou demonstrada pela recorrente a falta de recurso disponível, para o pagamento dos professores aprovados no concurso público.Nesse sentido, o acórdão recorrido não merece retoques, porquanto decidiu em sintonia com a jurisprudência do STJ.Pelo exposto, nego seguimento ao recurso especial"(grifos nossos)
Pelo exposto, tendo em vista que cabe a própria universidade verificar se possui ou não recursos para a contratação, promoção, integração de pessoal ao regime de dedicação exclusiva ou integral, não caberia ao ente federado que a tutela realizar o exame de conveniência para verificar a possibilidade ou não de contratação ou alteração de regime de docentes, muito menos se aventurar disciplinando a concessão ou não de afastamentos.
4.3. Ofensa a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96).
A lei 9.394/96 tem como objetivo fixar normas gerais para a educação, de modo a estabelecer parâmetros para o desenvolvimento da educação de maneira uniforme, prezando pela excelência do ensino e inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.
Para tanto, tratou a lei de disciplinar o ensino superior, reafirmando o principio da autonomia universitária como corolário do Estado Democrático de Direito. Por amor ao debate, como se não restasse comprovada a ilegalidade do Decreto 12.583/11, colacionaremos mais dispositivos que, somados aos já mencionados, demonstrarão com limpidez a usurpação de competência promovida pelo Poder Executivo do Estado da Bahia através do referido decreto. Dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
:"Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições
(...)
VIII - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, bem como administrar rendimentos conforme dispositivos institucionais;
IX - administrar os rendimentos e deles dispor na forma prevista no ato de constituição, nas leis e nos respectivos estatutos;
Parágrafo único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre:
(...)
V - contratação e dispensa de professores;
VI - planos de carreira docente.
Art. 54. As universidades mantidas pelo Poder Público gozarão, na forma da lei, de estatuto jurídico especial para atender às peculiaridades de sua estrutura, organização e financiamento pelo Poder Público, assim como dos seus planos de carreira e do regime jurídico do seu pessoal.
§ 1º No exercício da sua autonomia, além das atribuições asseguradas pelo artigo anterior, as universidades públicas poderão:
I - propor o seu quadro de pessoal docente, técnico e administrativo, assim como um plano de cargos e salários, atendidas as normas gerais pertinentes e os recursos disponíveis;
II - elaborar o regulamento de seu pessoal em conformidade com as normas gerais concernentes;
III - aprovar e executar planos, programas e projetos de investimentos referentes a obras, serviços e aquisições em geral, de acordo com os recursos alocados pelo respectivo Poder mantenedor;
IV - elaborar seus orçamentos anuais e plurianuais;
V - adotar regime financeiro e contábil que atenda às suas peculiaridades de organização e funcionamento;
VI - realizar operações de crédito ou de financiamento, com aprovação do Poder competente, para aquisição de bens imóveis, instalações e equipamentos;
VII - efetuar transferências, quitações e tomar outras providências de ordem orçamentária, financeira e patrimonial necessárias ao seu bom desempenho."(grifos nossos)
A simples análise do texto acima transcrito torna desnecessária e até repetitiva nova exposição acerca das ilegalidades cometidas pelo Decreto 12.583/11 que além de afrontar dispositivos constitucionais feriu também legislação infraconstitucional.
Quanto ao disposto nos incisos I e II, do Decreto 12.583/11, em que pese o argumento de que a contratação de pessoal via Regime Especial de Direito Administrativo trata-se de ato discricionário do chefe do Poder Executivo, conforme interpretação do artigo 252, da Lei 6.677/94, a impossibilidade de substituição de professores em caráter temporário, além ferir a autonomia administrativa das universidades, em confronto direto com o disposto no inciso V, do parágrafo único, art.53, da Lei 9.394/96, vai contra os princípios constitucionais do ensino previstos no artigo 206, da Constituição da República de 1988, encontrando barreiras também nos objetivos legais previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Conclusão.
Pelas razões expostas, são juridicamente defensáveis as teses de inconstitucionalidade e ilegalidade do Decreto 12.583/11, haja vista a flagrante ofensa ao princípio da autonomia universitária e afronta aos dispositivos das Leis 8.352/02, 9.394/96 e Lei Delegada 66/83.
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