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Hermenêutica e reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal

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Agenda 28/11/2011 às 08:25

Não se pode verificar a possibilidade de ‘interpretação conforme’ pelo Supremo Tribunal Federal objetivando ‘regulamentar’ a união homoafetiva, pois a técnica como foi utilizada não se coaduna com a perspectiva de interpretação jurídica pautada nas noções estabelecidas pela Hermenêutica Filosófica

RESUMO:

Esse presente artigo busca analisar a sistemática adotada pelo Supremo Tribunal Federal no que tange ao julgamento da ADI que versa sobre o reconhecimento da união homoafetiva. A discussão se fará sobre a técnica adotada pelo Supremo Tribunal Federal e a atuação da Corte frente a determinadas demandas que problematizam a tensão existente entres os Poderes na égide do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Hermenêutica. União Homoafetiva. Teoria do Discurso. Direito e Política. Ativismo Judicial.

I. INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar a sistemática adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento, da ADPF transformada ADI proposta pela Procuradoria Geral da República, concernente à constitucionalidade do §3º, art.226, da Constituição Federal [2].

A possibilidade de verificação da inconstitucionalidade da norma constitucional mencionada tem com fundamento a tese levantada por Otto Bachoff na sua obra “Normas Constitucionais Inconstitucionais?” em que possibilita enfrentar o problema de possíveis inconstitucionalidades dentro do âmbito normativo constitucional proposto pelo Poder Constituinte seja ele originário ou derivado.

Conforme a tese de Bachoff, o caso discutido pelo plenário do STF se encontraria naquilo que se denominou de como inconstitucionalidade por infração de direito supra-legal positivado na lei constitucional, “a ‘incorporação material’ dos valores supremos na Constituição faz, porém, com que toda a infracção de direito supralegal, deste tipo, apareça necessária e simultaneamente como violação do conteúdo fundamental da Constituição[3]. Haveria violação, desse modo, à dignidade da pessoa humana.

Na declaração de inconstitucionalidade do dispositivo constitucional referido, a Suprema Corte utilizou-se do mecanismo da ‘interpretação conforme’ que aduz a possibilidade de produção de sentido normativo relativo ao texto inconstitucional cominando na sanação do vício. Nesse sentido, lecionam Luiz David Araújo e Vidal Serrano:

“a interpretação conforme a Constituição, método utilizado para o aproveitamento de um dos sentidos possíveis de interpretação de uma lei, desde que compatível com o texto constitucional, desprezando outras possibilidades interpretativas que levariam à inconstitucionalidade da norma. O aproveitamento do sentido constitucional, com o descarte dos sentidos que levariam à interpretação de inconstitucionalidade, revela-se como decorrente do princípio da presunção de legitimidade dos atos normativos” [4]

Dessa forma, o que há, de fato, é uma produção de norma a partir do texto sob o parâmetro constitucional, ao invés de modificação da textualidade do dispositivo. Em outras palavras, na ‘interpretação conforme’ exterioriza a denominada mutação constitucional que diz respeito à alteração no sentido interpretativo de uma disposição textual, isto é, a mudança reside na norma enunciada do texto. Por outro lado, a alteração do texto constitucional se determina por reforma constitucional, há a modificação da textualidade do dispositivo constitucional.

Ora, se a Corte Suprema vislumbra a possibilidade de ‘extrair’ do texto do §3º, art. 226, da Constituição a expressão ‘homem e homem’ do texto ‘homem e mulher’, está se falando de verdadeira reforma constitucional com título de mutação constitucional[5]. Nesse ponto, é notório que o Poder Judiciário adentra em atribuições próprias da seara do Poder Legislativo, atuando como ‘legislador posterior’.

Por detrás da primeira impressão de atuação incompetente da Corte Superior, encontra-se um dilema, dentre muitos, que se enfrenta no Estado Democrático de Direito, a tensão dos planos legislativo e judiciário, em outras palavras, a tênue relação entre legislação e jurisdição, que perpassam questões que a serem discutidas como conceito de democracia, ativismo judicial, concretização de direitos, respostas corretas, etc.

Nessa seara, importante é o modelo discursivo proposto por Klaus Günther, que trabalha com uma dicotomia discursiva: o discurso de fundamentação ou justificação e o discurso de aplicação. Esse aporte teórico relaciona-se diretamente com a perspectiva de Jürgen Habermas do âmbito de atuação do Poder Legislativo e do Poder Judiciário e será um dos alicerces da sua teoria procedimental.

Juntamente a essa dicotomia, ambienta-se a teoria dos direitos do jusfilósofo americano Ronald Dworkin que oferece incisiva contribuição a interpretação/aplicação do direito, no enfretamento do nó górdio do positivismo, a discricionariedade, bem como o papel dos juízes e dos políticos.

Desse modo, o debate entre tais pensadores provoca a conjugação de um vetor orientador para a análise da atuação do Supremo Tribunal Federal no caso de reconhecimento da união estável aos homoafetivos.

Os aportes teóricos desenvolvidos pela hermenêutica gadameriana culminam numa derrocada no pensamento proposto pela hermenêutica clássica, ensejando um repensar da condição de possibilidade de interpretar/compreender/aplicar um texto e, consequentemente, o texto da Constituição.

Destarte, pretende-se elucidar, à luz da hermenêutica filosófica, a técnica empregada pela Corte Suprema no que tange a interpretação do dispositivo do texto constitucional; além disso, rediscutir a atuação desse órgão do judiciário inserido naquilo que se fundamenta e compreende o Estado Democrático de Direito na fase do que se denominou de Pós-positivismo.


II. NORMAS JURÍDICAS E INTERPRETAÇÃO

II.1. POSITIVISMO E HERMENÊUTICA

O Estado Democrático de Direito como modelo emergente das insuficiências dos paradigmas de Estado antecedentes, quais sejam Estado Liberal e Estado Social, traz embutido na sua conjuntura um deslocamento do centro de poder de decisão e, consequentemente, na interpretação/aplicação do direito.

No delineamento do Estado Liberal, conseqüência lógica do processo histórico de ruptura com o Regime Absolutista que representava um modelo de supressão da vontade do monarca em relação à do povo, o centro de poder se instaura no poder legislativo como condição de possibilidade de garantia das liberdades individuais dos cidadãos. Além disso, estabeleceram-se limites e funções dos poderes, conferindo ao Executivo a atribuição meramente organizacional do Estado e ao judiciário a aplicação “fiel” do direito posto, de outra forma, viabilizou-se a regulação da política nos três poderes no Estado de Direito, sendo essa completamente plausível no campo legislativo, parcialmente na seara executiva e, por fim, neutra no poder judiciário.

Nessa perspectiva de Estado, tem-se a lei como ponto de partida e fonte principal para interpretação das questões que penetram o campo jurídico. Assim, vale elucidar que o processo de positivação do direito, em que insere a lei como fonte racional do direito, implica em conceber aquela como norma de validez emanada de uma representação legitimada que instrumentaliza as valorações e expectativas de comportamento da sociedade civil.

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Desse modo, é conclusivo que “a ideologia legalista legitimou a preservação do statu quo pelo argumento de que o conjunto de leis corporificava o justo pleno, cristalizando formalmente os princípios perenes do direito natural[6].Neste contexto emerge o paradigma positivista como referencial teórico para aplicação do direito.

De modo geral, o positivismo jurídico, sobretudo no sentido restrito de positivismo legal, oferece uma visão de sistema de características notáveis, em que pese a variedade das suas formas. Primeiramente, trata-se de um "sistema fechado", do qual deriva a exigência de acabamento, ou seja, a inocorrência de lacunas que são compreendidas, nessa acepção, como fenômenos aparentes, pois o sistema jurídico é, fundamentalmente, manifestação de um harmônico corpo unitário, perfeito e acabado. Além disso, deve-se pontuar outra característica do positivismo que diz respeito à idéia de sistema como método, ou melhor, como instrumento metódico do pensamento, ou seja, relaciona-se diretamente com o procedimento construtivo e o dogma da subsunção. Nessa linha, leciona o Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

De modo geral, pelo procedimento construtivo, as regras jurídicas são referidas a um princípio ou a um pequeno número de princípios daí deduzido. Pelo dogma da subsunção, segundo o modelo da lógica clássica, o raciocínio jurídico se caracterizaria pelo estabelecimento de uma premissa maior, que conteria a diretiva legal genérica, e de uma premissa menor, que expressaria o caso concreto, sendo a conclusão a manifestação do juízo concreto. [7]

O intérprete procede, assim, pelo silogismo em que a premissa maior é o texto normativo, a premissa menor são os pressupostos de fato e, por efeito, a conseqüência jurídica; em decorrência disso, a textualidade centraliza a atividade interpretativa.

A interpretação passa a ser entendida como busca ao autêntico sentido contido no texto legal. Assim, emergem dois posicionamentos, um de natureza subjetiva, voluntas legitoris, em que a atividade interpretativa se centra na vontade daquele que, à época, emitiu o texto legal, o legislador; bem como outro de viés objetivo, voluntas legis, em que a interpretação se funda na vontade consubstanciada no próprio texto legal.

Por conseqüência, surgem métodos hermenêuticos que objetivam uma estruturação regrada para resolução de problemas de caráter interpretativos. Novamente com o Prof. Tércio Sampaio Ferraz Junior:

Os chamados métodos de interpretação são, na verdade, regras técnicas que visam à obtenção de um resultado. Com elas procuram-se orientações para os problemas da decidibilidade dos conflitos. Esses problemas são de ordem sintática, semântica e pragmática.[8]

Sinteticamente, têm-se: método gramatical, em que se busca conhecer a origem etimológica dos vocábulos e aplicar os preceitos estruturais de regência e concordância; método lógico-sistemático, em que se analisam as proposições normativas sob prisma da lógica formal, bem como correlaciona o texto normativo ao sistema jurídico inteiro ou a sistemas paralelos; método histórico, em que o interprete investiga as normas pretéritas que antecederam as atuais para, assim, por comparação compreender estas; método sociológico, em que busca conferir aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe originaram e as que surgiram após sua criação, bem como atender às necessidades atuais da comunidade; e, por fim, o método teleológico em que o ato de interpretar é orientado pelos fins sociais que a norma busca, atribuindo ao intérprete a função de adequar a norma ao presente.


II.2. PÓS-POSITIVISMO E HERMENÊUTICA

Pelas insuficiências do modelo estatal liberal-individual-normativista, ou seja, de um Estado abstencionista, calcado na noção precária de liberdade e do positivismo, surge o Estado Social trazendo a idéia de um modelo estatal intervencionista que saí da inércia de mera organização de Estado, tendo, por conseguinte, o centro de decisão deslocado para o poder executivo em que a igualdade emerge como estandarte a equalizar o modelo anterior.

Todavia, a noção de igualdade pode levar à falta de liberdade, paradoxalmente, se a liberdade dialeticamente pelas insuficiências do liberalismo, engendra as condições para a superação via igualdade, esta pode ser um obstáculo à liberdade, visto que se cairia em igualar indivíduos que são por conjunturas da própria relação jurídica desiguais, essa idéia de igualdade se funda em estabelecer de antemão que todos os indivíduos são na realidade fática iguais, ou melhor, verificava-se que no primeiro momento de liberdade-liberal, substancialmente os indivíduos não eram iguais, haja vista a estrutura do antigo regime, no momento que o Estado trata da igualdade estabelecendo tratamento a esses indivíduos de forma igualitária, leva a obstacularizar a liberdade, pois, em termos simplórios, a parte mais fraca se sujeitaria às condições impostas pelo pólo mais forte.

Assim, surge o Estado Democrático de Direito em que deve ser visto o Direito como instrumento de transformação social, pois carrega, nos seus textos constitucionais, elevada carga de valores e caráter compromissário voltado para mudanças nas estruturas econômicas e sociais. Por isso, Lenio Luiz Streck vai sustentar que:

No Estado Democrático de Direito, em face do seu caráter compromissário dos textos constitucionais e da noção de força normativa da Constituição, ocorre, por vezes, um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano jurisdicional. [9]

Nessa noção de Estado, na qual se acentua a derrocada do projeto das perspectivas da modernidade, emerge o paradigma pós-positivista em que os princípios[10] ascendem como condição fulcral para a concretização do Direito.

A insuficiência do modelo positivista enquanto sistema fechado, imbuído da lógica formal dedutiva e neutralmente pautado em métodos reducionistas de fenômenos jurídicos, acaba sinalizando a doutrina do positivismo como paradigma simplório e carente que termina não abarcando toda a problemática dos fenômenos da realidade fática.

A deontologia dos princípios prescreve uma normatividade dos valores validados pelo discurso de fundamentação do juízo político, trazendo ao campo jurídico a moral exilada pela doutrina positivista. Além disso, os argumentos de princípios juntam-se as regras jurídicas como normas do sistema jurídico com outra estrutura.

Nesse ponto, antes de determinar-se o que é norma jurídica princípio e suas diferenças em relação às normas-regras, vale estabelecer uma diferença de texto ou enunciado normativo e norma jurídica. Texto diz respeito à proposição posta no papel, isto é, a disposição lingüística, o sentido normativo provisório a ser interpretado; já a norma é a interpretação reconstrutiva realizada a partir dos limites lingüísticos do texto, incidentes sobre os fatos, ou seja, a relação dialógica entre realidade fática e expressão textual.

As normas jurídicas, por sua vez, acarretam basicamente a distinção entre regras e princípios[11]; em estudo aprofundado[12], Humberto Ávila aborda as principais concepções. Contudo, a definição de princípios e regras tem relevante contribuição com a acepção de Ronald Dworkin. Tomando como base o modelo positivista de Herbert Hart, Dworkin estabelece, primeiramente, que o Direito não é apenas um conjunto de regras, isto é, o sistema jurídico compõe-se de regras e também de princípios morais que não são alusivos ao critério de validade tal como a regra de reconhecimento de Hart[13]. Tratando da distinção entre regras e princípios, Dworkin aborda basicamente três aspectos: a natureza lógica, dimensão de peso e admissão de exceções.

O critério de natureza lógica consiste em dizer que as regras são aplicáveis na forma tudo ou nada (all-or-nothing), visto que elas incidem quando há condições que elas mesmas estabelecem. Para Dworkin “dado os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é valida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão[ 14].

Já os princípios são normas que não fixam nenhuma conseqüência jurídica precisa diante de uma condição determinada, eles manifestam considerações de justiça, equidade e dimensões de moralidade. O princípio é uma razão que guia para uma determinada direção, contudo não acarreta uma decisão concreta essencialmente a ser levada.

O segundo critério, que é conseqüência do primeiro, é a dimensão de peso (dimension of weight) que caracteriza os princípios. Esse critério não se aplica às regras, pois, no conflito dessas últimas, há a exclusão de uma em detrimento da aplicação de outra. No caso concreto, deve-se verificar qual delas é válida e qual deve ser excluída ou reformulada diante do caso.

Ocorre que, nas hipóteses de colisão entre os princípios, aquele que possui maior peso sobrepor-se-á ao outro, sem que este perca sua validez, ou seja, o entrecruzamento entre princípios é resolvido através da ponderação, não excluindo o sobreposto do sistema jurídico, como bem se verifica no conflito normativo entre regras jurídicas. Na lição do jusfilósofo:

“Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade do contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é” [15].

Por último, Dworkin adiciona o fato de as normas-princípios serem mais fracas que as normas-regras no sentido de admitirem inúmeras exceções, na medida em que, ao se tratar das regras, as exceções que comportam podem ser enumeradas e, desse modo, mais completo o enunciado das regras será. Quanto aos princípios as exceções são incontáveis, conforme preleciona Eros Grau:

“a circunstância de serem próprios a um determinado direito não significa que esse direito jamais autorize sua desconsideração. Trabalhando com o princípio segundo o qual “a ninguém aproveita sua própria fraude (torpeza)”, Dworkin aponta o fato de que em determinados casos o direito não se opõe a que alguém obtenha proveito da fraude que praticou. O exemplo mais notável é o da posse indevida: aquele que penetrar em prédio alheio reiteradamente, durante largo período de tempo, poderá obter – e o direito concede – o direito de cruzá-lo sempre que deseje” [16].

Por derradeiro, é de suma importância salientar que, na definição de princípios, Dworkin aborda que os princípios podem ser entendidos como argumentos de princípio em sentido estrito ou argumentos de diretrizes políticas. Os argumentos de princípios estão ligados à noção de direitos conferidos aos destinatários das normas jurídicas, por outro lado, os argumentos de política se ligam diretamente aos objetivos buscados pela comunidade, ou seja, objetivos gerais que atendem ao anseio coletivo. Nas sempre precisas lições do jusfilósofo americano:

“Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma dimensão de moralidade” [17].

Assim, deve-se compreender que princípios só podem ser afastados de aplicação por outros princípios, isto é, o intercruzamento de vetores normativos é realizado por princípios e não entre princípios e diretrizes políticas. Adiantando a discussão sobre o papel do legislativo e do judiciário, Dworkin irá estabelecer ao judiciário é conferido encerra demandas judiciais por argumentos de princípio e não por políticas, isto é, os juízes devem argumentar com base de cunho de diretivas de princípio, pois esses argumentos são relacionados a um direito; diferentemente, as diretrizes políticas acenam para objetivos em termos do bem-estar da coletividade. Nesse sentido, comentando a decisão do tribunal no caso Sparten Steel & Alloys Ltd. Vs. Martin & Co.[18], Dworkin aduz:

“Se os juízes fossem legisladores segundos, o tribunal deveria estar preparado a seguir a ultima alternativa, tanto quanto a primeira, e decidir em favor do demandante se fosse essa a recomendação do argumento. É isso, imagino, o que significa a idéia corrente segundo um tribunal deve ser livre para decidir um caso novo como o da Spartan Steel em bases políticas; foi assim, de fato, que lorde Denning descreveu sua opinião neste caso específico. [...] Não obstante, defendo a tese de que as decisões judiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis como o da Spartan Steel, são e devem, de maneira característica, geradas por princípios, e não por políticas” [19].

Juntamente a essa inovadora noção, em que a normatividade dos princípios ganham relevância ao sistema jurídico, é de bom alvitre enunciar que ocorre na filosofia uma derrocada da perspectiva da Filosofia da Consciência em face da Filosofia da Linguagem. Nesse ponto, precisas são as palavras de Jürgen Habermas:

A passagem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem traz vantagens objetivas, além de metódicas. Ela nos tira do círculo aporético onde o pensamento metafísico se choca com o antimetafísico, isto é, onde o idealismo é contraposto ao materialismo, oferecendo ainda a possibilidade de podermos atacar um problema que é insolúvel em termos metafísicos: a individualidade. [20]

Nesse novo paradigma, a linguagem passa a ser compreendida como condição constitutiva do homem no mundo e não apenas como instrumento de entre o ser e o mundo. O modo da linguagem e sua maneira de realizar-se, ou seja, a compreensão dialógica de algo é o que sustenta o entendimento entre os indivíduos e acerca do algo que compõe o mundo, “nossa compreensão do mundo é, sempre, linguisticamente interpretada. Enquanto lugar do evento do ser, a linguagem é aquele acontecimento originariamente único, no qual o mundo se abre para nós” [21]. A linguagem figura-se como elemento condicionante da existência do homem no mundo que, desse modo, percebe-se ser que compreende e interpreta dentro das possibilidades determinadas pela tradição, e temporalmente se determinam, na e pela linguagem. O Prof. Lenio Streck ensina:

Tradição é transmissão. A experiência hermenêutica, diz o mestre, tem direta relação com a tradição. É esta que deve anuir à experiência. A tradição não é um simples acontecer que se possa conhecer e dominar pela experiência, senão que é linguagem, isto é, a tradição fala por si mesma. O transmitido, continua, mostra novos aspectos significativos em virtude da continuação histórica do acontecer. Toda atualização na compreensão pode entender a si mesma como uma possibilidade histórica do compreendido. Na finitude histórica de nossa existência, devemos ter consciência de que, depois de nós, outros entenderão cada vez de maneira diferente. [22]

Nesse sentido, o legado hermenêutico de Hans-Georg Gadamer, seguindo a linha do filosofo Martin Heidegger, sinteticamente, pode ser verificado nas noções de pré-compreensão e historicidade que remontam ao círculo hermenêutico; esse acaba estabelecendo que as condições que tornam o pensamento possível não são autogeradas, mas estabelecidas bem antes de nos engajarmos em atos de introspecção, há um senso do/no mundo antes de começar-se a fazer julgamentos sobre ele; na verdade, já se está envolvido no mundo bem antes de separar-se dele para entendê-lo; o que existe é o entendimento prévio de fundo, implícito, constantemente em ação.

A perspectiva do Dasein entendido como ser-no-mundo assinala a condição de todo ‘ser’ só pode ser compreendido e existe inserido na faticidade do mundo, só é alguma coisa quando se insere nessa historicidade em que o faz ser algo; o Dasein não é algo estanque mas ‘ser’ que, através de seus envolvimentos práticos no mundo já culturalmente interpretado, está se projetando constantemente para o futuro, quanto permanece enraizado em entendimentos tácitos no presente e no passado, pois a existência do ser não está presa nos pré-entendimentos, tendo em vista que esses são condição na qual se busca entender o mundo de maneira mais explicita e autoconsciente.

O círculo hermenêutico é a projeção interpretativa do Dasein sobre o mundo na forma de projetos individuais, das atividades e da pré-estrutura de fundo que informa os projetos e está em constante movimento com eles. Há um constante diálogo entre os horizontes que se fundem na circularidade que se estabelece diálogicamente pelo círculo interpretativo, sempre profícua a observação de Hans-Georg Gadamer:

Por isso, quando a tarefa hermenêutica é concebida como um entrar em diálogo com o texto, isso é algo mais que uma metáfora, é uma verdadeira recordação do originário. O fato de que a interpretação que produz isso se realiza linguisticamente, não quer dizer que se veja deslocada a um médium estranho, mas, ao contrario, que se restabelece uma comunicação de sentido originário. O que foi transmitido em forma literária é assim recuperado, a partir do alheamento em que se encontrava, ao presente vivo do diálogo cuja realização originária é sempre perguntar e responder[23]

Sobre o autor
Diego Pablo Candeias de Albuquerque

Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Diego Pablo Candeias. Hermenêutica e reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3071, 28 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20514. Acesso em: 21 nov. 2024.

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