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A exigibilidade dos direitos fundamentais sociais diante do princípio da reserva do possível

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6. A ALEGAÇÃO DA RESERVA DO POSSÍVEL

A reserva do possível tem um conceito problemático, mais polêmico que o do mínimo existencial. Tem sido invocada, não raras vezes, pelo Poder Público para se sonegar à concretização de direitos fundamentais e ainda se figuram como inexistentes os critérios objetivos para delimitá-la. Contudo, quando se trata de direitos fundamentais, é evidente que é necessário reconhecer a existência de uma maior restrição ao espaço de conformação do legislador, como também considerar a existência de alcances à discricionariedade do administrador (SOUZA, 2007). Em análise acerca da justiciabilidade dos direitos sociais, Andreas Krell[22] faz uma crítica da adaptação do conceito de reserva do possível da jurisprudência e doutrina alemãs para a realidade constitucional brasileira, a qual, sem precisar muito teorizar, tem peculiaridades, tanto normativas como sócio-econômicas inteiramente diferentes, elaborando importantes exposições a respeito:

Parece difícil que um ente público não possa conseguir ‘justificar’ sua omissão social perante critérios de política monetária, estabilidade, contenção de gastos, as exigências financeiras dos diferentes órgãos (Assembléias Legislativas, Tribunais de Justiça, Tribunais de Contas etc.). Resta observar que não se trata definitivamente de ‘conferir certo caráter messiânico ao texto constitucional’, mas simplesmente de levá-lo a sério. Pensando bem, o condicionamento da realização de direitos econômicos, sociais e culturais à existência de ‘caixas cheios’ do Estado significa reduzir a sua eficácia a zero; a subordinação aos ‘condicionantes econômicos’ relativiza sua universalidade, condenando-os a serem considerados ‘direitos de segunda categoria’. Num país com um dos piores quadros de redistribuição de renda do mundo, o conceito da redistribuição de recursos ganha uma dimensão completamente diferente (KRELL, 2003, p. 45 e ss).

Destarte, para ele, “a discussão européia sobre os limites do Estado Social e a redução de suas prestações e a contenção dos respectivos direitos subjetivos não pode, absolutamente, ser transferida para o Brasil, onde o Estado Providência nunca foi implantado” (KRELL, 2003, p. 45 e ss). Afiança ele, ainda:

Temos certeza de que quase todos os doutrinadores do Direito Constitucional alemão, se fossem inseridos na mesma situação sócio-econômica de exclusão social com a falta das condições mínimas de uma existência digna para uma boa parte do povo, passariam a exigir com veemência a interferência do Poder Judiciário, visto que este é obrigado a agir onde os outros Poderes não cumprem as exigências básicas da Constituição (direito à vida, dignidade humana, Estado Social) (KRELL, 2003, p. 45 e ss).

O nosso entendimento é que a reserva do possível pode e deve ser ponderada nos concisos termos em que o Tribunal Constitucional alemão estabeleceu o conceito: o que se deve razoavelmente esperar do Estado. Porém, também defendemos a ideia de que tal conceito se transforma no tempo e no espaço, mas funciona como um limite, que tem o condão de existência, das expectativas dos indivíduos em relação à contribuição do Estado para sua realização existencial. Ana Paula de Barcellos ampara a possibilidade de interferência do Judiciário na alocação de recursos orçamentários, bem como no atingimento das metas definidas pelo próprio poder político e, ainda, no controle da eficiência mínima de políticas públicas. Evidencia ela que:

Os controles judiciais devem assumir formas que não substituam as deliberações dos órgãos políticos, bem assim que fomentem o controle social (e não o substituam), fornecendo informações relevantes para solução do problema. Para a jurista carioca, “não é possível que as esperanças todas sejam transferidas ao Judiciário. Deve-se criar condições para um efetivo controle político-social”[23] (BARCELLOS, 2001, pp. 204–205).

A reserva do possível tem sido objeto de estudos também na doutrina brasileira. Ingo Wolfgang Sarlet[24] (1998), como já citado, trabalha com dimensão tríplice da reserva do possível: 1. efetiva existência de recursos para efetivação dos direitos fundamentais; 2. disponibilidade jurídica de dispor desses recursos, em razão da distribuição de receitas e competências, federativas, orçamentárias, tributárias, administrativas e legislativas; e 3. razoabilidade daquilo que está sendo pedido”. Para esse autor, a reserva do possível não impede o poder Judiciário de “zelar pela efetivação dos direitos sociais” mas deve fazê-lo com cautela e responsabilidade, consciente do problema da escassez de recursos. Oportuno lembrar que o fato de os direitos sociais exigirem recursos para serem efetivados não faz deles direitos que não devam ser levados a sério. Não é uma opção dos administradores ou do Poder Legislativo cumprir a Constituição, antes é um dever. Em que pese haver um entendimento unânime tanto da doutrina quanto da jurisprudência, quanto à admissão de discricionariedade quanto aos meios para se efetivar um direito social, sua realização é uma obrigação constitucional e o não cumprimento pressupõe uma argumentação, no mínimo razoável, da parte dos poderes políticos.

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7. A JUDICIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

Verificando-se a ocorrência de políticas públicas que consubstanciam o direito constitucional à saúde, caberá ao Judiciário, diante de pleitos como os que pedem o fornecimento de medicamentos, diagnosticar quais as razões que levaram a administração a não conceder tal prestação. Ora, se por um lado não compete ao Judiciário fomentar políticas sociais e econômicas na área da saúde, por outro é imperioso que fiscalize se as políticas desenvolvidas pelos órgãos competentes atendem ao chamamento constitucional do acesso igual e universal. Consoante ilações de Gilmar Mendes et alli[25], abordando o tema da judicialização do direito à proteção da saúde, infere-se que:

Pode ocorrer de medicamentos requeridos constarem das listas do Ministério da Saúde, ou de políticas públicas Estaduais ou Municipais, mas não estarem sendo fornecidos à população por problemas de gestão: há política pública determinando o fornecimento do medicamento requerido, mas, por problemas administrativos do órgão competente, o acesso está interrompido (MENDES, 2011, p. 707).

Em eventos como este, o cidadão, individualmente considerado, não poderá ser penitenciado por ato impotente da administração ou pela omissão do gestor da referida área em adquirir tais medicamentos considerados primordiais, em quantidade satisfatória para atender às necessidades. Neste caso, não resta dúvidas, que caberá ação do Judiciário para fazer valer o direito. Por outro turno, é possível que o Sistema único de Saúde (SUS) não forneça o medicamento prescrito especificamente, mas disponibilize um análogo, cuide da mesma doença com outros fármacos, neste caso não há se falar em omissão por parte do Poder Público. Confirmada tal situação, far-se-á o exame dos motivos que impedem o cidadão de usar a droga escolhida pelo SUS e adotado um critério de ponderação, verificar-se-á a razoabilidade do fornecimento requerido. É cediço que simples questões burocráticas não podem prejudicar a vida nem a saúde da população. Isto posto, analisado, no caso concreto, que o cidadão epigrafado não pode, de fato, administrar os medicamentos fornecidos pelo órgão público, por motivo justificável, será razoável que, para este paciente, seja fornecida outra droga, desde que esse novo custo não inviabilize todo o sistema de saúde.

Problemas muito delicados colocam-se quando, diante da existência de medicamento registrado pela ANVISA, mas que não constam das listas do SUS, e não há outro disponível para tratar determinada patologia. Nesse aspecto, a Ministra Ellen Gracie, quando na presidência do Supremo Tribunal Federal, entendeu que, no caso específico tratado pela STA (Suspensão de Tutela Antecipada) 91/AL[26], o Estado de Alagoas não poderia ser obrigado a fornecer medicamento que não constava na lista do SUS, fato este que alterou a ordem e posicionamento que o STF vinha adotando até então.

7.1. A Proteção aos Direito Sociais

As políticas públicas para consolidação de direitos sociais exigem, na maioria das vezes, investimentos públicos; esse é o cerne da questão da exigibilidade judicial dos direitos sociais, uma vez que uma decisão judicial, para garantir determinado direito social, pode obrigar o Estado a realizar gastos intempestivos e, uma vez que os recursos disponíveis são menores do que o necessário para oferecer a todas as pessoas os direitos que a Constituição prevê, não raras vezes a Administração não dispõe dos recursos necessários para atender a decisões judiciais sem prejudicar a garantia de outro direito que a Administração entende ser, de igual forma, importante. A falta de recursos requer que o Estado faça opções, o que implica preferências e que, por seu turno, pressupõe preteridos. A disputa que a exigibilidade judicial dos direitos sociais acende é a possibilidade daqueles que foram preteridos de buscarem, por meio do poder Judiciário, a garantia de seus direitos e saber se esse Poder teria legitimidade democrática, capacidade constitucional e formação técnica para realizar essa tarefa.

Cumpre salientar que a falta de recursos e o custo dos direitos não são limites fáticos apenas para os direitos sociais, eles podem aparecer em qualquer obrigação de fazer do Estado. Pode-se inferir que até os direitos de primeira dimensão, também conhecidos como direitos negativos, por exigirem uma não intervenção estatal, de fato também dependem de prestações estatais, do estabelecimento de instituições e de investimento público. Vale observar que uma jurisprudência coesiva nessa matéria pode trazer bons aportes, quer para a administração pública, que terá maior previsibilidade para planejar as políticas públicas, quer para o cidadão, que terá mais segurança e tranquilidade daquilo que pode exigir do Judiciário, quer para os próprios juízes, que terão parâmetros mais seguros para decidirem.

7.2. O Supremo Tribunal Federal e o Direito de Proteção à Saúde

Os arrabaldes do direito de proteção à saúde vêm sendo ampliados em muitas decisões do Supremo Tribunal Federal. Aludem a muitas espécies de prestações, como provimento de medicamentos, suplementos alimentares, próteses, criação de vagas em UTIs, contratação de servidores da saúde, realização de exames e cirurgias, custeio de tratamento fora do domicílio, entre outros. No RE 195-192-3/RS, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu que as responsabilidades pelas ações e serviços de saúde é, concorrentemente, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nesse diapasão, o acórdão foi emendado da seguinte forma:

“SAÚDE – AQUISIÇÃO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – DOENÇA RARA. Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O Sistema Único de Saúde torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”[27].

No mesmo sentido, no RE-AgR 255.627-1, o então Ministro Nelson Jobim apartou a alegação do Município de Porto Alegre de que não seria responsável pelos serviços de saúdes que demandassem custo elevado. O Ministro, ancorado no precedente do RE 280.642, no qual a 2ª Turma havia decidido questão similar, negou provimento ao Agravo Regimental do referido Município:

(...) A referência, contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei no sentido da obrigatoriedade de fornecer-se medicamentos excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes. O Município de Porto Alegre surge com responsabilidade prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de regulamentação municipal para o custeio da distribuição não impede fique assentada a responsabilidade do Município[28].

Mencionada decisão aconselha que a complexidade ou os custos com tratamento não é suficiente para afastar a responsabilidade do ente estatal, neste caso específico, o Município. Anote-se que a argüição da transgressão à separação dos Poderes não releva a inércia do Poder Executivo em cumprir com seu dever constitucional de garantia do direito à saúde, validamente instituído pelas regras que norteiam o SUS. Quanto à possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, registramos um trecho do voto do Ministro Celso de Mello em decisão proferida na ADPF-MC 45/DF:

(...) É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.[29]

Infere-se daí, que o administrador não age na implementação dos serviços de saúde com ampla e plena discricionariedade, haja vista existir políticas governamentais já implementadas que o vinculam. Por esse turno, o Judiciário, ao impor a satisfação do direito à saúde no caso concreto, em número significativo de hipóteses, não exerce senão o controle judicial dos atos e omissões do poder público. É, também, de relevante importância trazer à baila, que o STF já apreciou a possibilidade da realização da denominada “diferença de classe”, a qual consente que o usuário do SUS arque com uma diferença de valores e angarie uma prestação de serviços em um padrão distinguido do normalmente fornecido pela rede pública de saúde. Vale lembrar que o STF considerou essa possibilidade constitucional. Assim:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. ARTS. 196 E 199 DA CONSTITUIÇÃO. COMPLEMENTAÇÃO DE SERVIÇOS PRESTADOS PELO SISTEMA DE SAÚDE PÚBLICA COM AQUELES PRESTADOS PELA INICIATIVA PRIVADA. PAGAMENTO DE DIFERENÇA PELO PACIENTE. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ÔNUS ADICIONAL PARA O SISTEMA PÚBLICO. I – O indivíduo tem liberdade para utilizar, conjunta ou exclusivamente, do atendimento prestado pelo serviço público de saúde ou daquele disponibilizados por entidades particulares. II – Inexiste ofensa à Constituição no fato de o paciente, à custa de recursos próprios, complementar com o serviço privado o atendimento arcado pelo SUS. III – Agravo regimental improvido.[30]

Pelo o exposto nesse tópico, os julgados do STF, via de regra, indicam uma concordância com a solicitação de medicamento sem grandes considerações sobre escassez de recursos, valores dos direitos e reserva do possível. Sempre que um fármaco não era provido havia, no juízo do Supremo Tribunal Federal, uma ressalva injusta ao direito à saúde, inaugurado na Constituição Federal. Essa ressalva permitiria ao Poder Judiciário corrigir uma omissão estatal que infringia esse dito direito fundamental. A ADPF 45, relatada pelo Ministro Celso de Melo traz a constatação de uma análise mais pormenorizada da reserva do possível e chega a afirmar que “comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política” (MELLO, 2004).

Sobre os autores
Paula Soraia Batista de Oliveira

Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia e integrante do Grupo de Estudos de Direitos Humanos da mesma instituição. Licenciada em Língua Vernácula pela Universidade Federal de Rondônia, especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Federal de Rondônia.

Raimundo Nonato Martins de Castro

Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia e integrante do Grupo de Estudos de Direitos Humanos da mesma instituição. Licenciado em Língua Vernácula pela Universidade Federal de Rondônia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Paula Soraia Batista; CASTRO, Raimundo Nonato Martins. A exigibilidade dos direitos fundamentais sociais diante do princípio da reserva do possível. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3188, 24 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21362. Acesso em: 23 dez. 2024.

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