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A tipificação na Lei Antitruste da prática de cartel em licitação pública

Agenda 18/06/2012 às 11:10

Ainda que a Administração objetive racionalizar suas compras mediante controles orçamentários mais estritos e busque melhoria nas formas de contratação, a ação dos cartéis termina por provocar a transferência indevida de renda do Estado para as empresas.

Internacionalmente consagrada com o termo bid rigging, a prática de cartel em licitações consiste no acordo entre competidores para, conjuntamente, eleger o vencedor de determinada licitação pública, com o objetivo de favorecer todos os pactuantes mediante a concessão de mecanismos de compensação às empresas vencedoras.

Essa prática pode envolver competidores, acordando em não submeter propostas em determinada licitação, ou ainda a apresentação de propostas acima daquela eleita para vencer o certame. Dentre as formas mais comuns de bid rigging, estão:

a. Cover bidding ou complementary bidding, na qual as empresas rivais combinam a oferta de propostas, com preços mais elevados, ou sob condições desarrazoadas, com o propósito de beneficiar a empresa escolhida pelo grupo para ganhar a licitação. As empresas também podem combinar submeter propostas inferiores, mas que não atendam às especificações técnicas requeridas pelo órgão contratante, de modo a fazer crer que se trata de um processo concorrencial em condições normais e manter, ao menos, a aparência de concorrência entre as empresas, evitando, assim, a descoberta do acordo prévio. Esse tipo de participação provoca nos gestores públicos a sensação de acirrada competição.

b. Bid supression, que ocorre quando uma ou mais empresas concorrentes decidem, de forma orquestrada, não apresentar propostas em uma licitação ou, então, submeter propostas e retirarem-se do certame, a fim de beneficiar determinada empresa que foi eleita pelo grupo para tornar-se a vencedora;

c. Bid rotation, em que há revezamento de vencedores ao longo do tempo. As empresas submetem propostas ao processo licitatório, mas há pré-acordo para decidir quem vencerá cada licitação.

Essas modalidades de bid rigging não são excludentes de outras práticas, tal como o estabelecimento de mecanismos de compensação entre os agentes participantes, nas mais diversas formas.

Em muitos cartéis, mais de uma dessas formas de atuar podem estar presentes. Assim, a prática do “rodízio” pode ser combinada com a divisão de mercado (os concorrentes combinam a alternação dos vencedores em um grupo de licitações, para dar a impressão de efetiva concorrência) e o direcionamento da licitação pode ser implementado pela apresentação de propostas inviáveis e complementado por subcontratação. De qualquer forma, o resultado sempre é o aumento dos preços pagos pela Administração e a consequente transferência ilegítima de recursos para os membros do cartel.

O risco de a Administração Pública demandar bens ou serviços de setores cartelizados é a contratação por preços superfaturados. As despesas em valores excedentes, sem contraprestação, por sua vez, são verdadeiros prejuízos, caracterizando-se como despesas sem amparo legal processadas pela Administração.

Conforme a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, os esquemas de cartel em licitações, frequentemente, incluem mecanismos de partilha e de distribuição, entre os conspiradores, dos lucros adicionais obtidos através de contratação por preço final mais elevado.1

Observe-se que as compras públicas correspondem a 15% do PIB de países desenvolvidos e ainda mais daqueles em desenvolvimento. No Brasil, estima-se que, nas três esferas de Governo (União, Estados e Municípios), o gasto anual com compras públicas atinja 300 bilhões de reais. Por outro lado, tem-se que os cartéis em licitações desperdiçam recursos públicos, gerando um aumento de preços em torno de 20% ou mais2.

É patente o prejuízo que o País tem com a formação de cartel entre empresas que participam de licitações públicas. Grande parte do que a administração pública gasta anualmente para comprar insumos, contratar serviços e realizar obras termina por enriquecer empresários que se organizam para combinar preços mais altos.

Os entes da Administração Pública, direta e indireta, são as partes diretamente prejudicadas, na medida em que veem seus orçamentos reduzidos de maneira ilícita, agravando o problema da ineficiência de sua atuação na efetivação das políticas públicas.

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Desse modo, a atuação eficiente da autoridade antitruste em combater o acordo ilícito pode coibir a ação de empresas que buscam se locupletar ilicitamente, fraudando licitações em conluio, com prejuízo ao erário. Nesse passo, importa observar que as autoridades antitrustes, ao redor do mundo, estão constantemente engajadas em dissuadir a prática de cartéis em licitação.

O Office of Fair Trading – OFT, no Reino Unido, realizou investigações de bid rigging por empresas de construção. Um caso julgado, em março de 2004, de conluio em concorrências públicas (collusive tendering) resultou na condenação de nove empresas que prestavam serviços de reparo, manutenção e melhoramentos de telhados na região de West Midlands no período de 2000-2002. Como resultado, as empresas foram multadas em £ 300.000 no total3.

Cite-se, ainda, decisão da Comissão Europeia, em 24 de janeiro de 2007, segunda a qual dez empresas japonesas e europeias foram condenadas por fixar preços de equipamentos elétricos, usados para controlar fluxos de energia, geralmente, vendidos em licitações públicas. O total de multas alcançou € 750 milhões, sendo que a alemã Siemens respondeu por cerca de € 396,56 milhões por ter exercido papel de liderança do cartel, segunda maior multa imposta a uma empresa na União Europeia4.

No Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, no Processo Administrativo nº. 08012.009.118/98-26, julgado na sessão de 27 de junho de 2001, condenou as empresas Eisa – Estaleiro Ilha S.A e Marítima Petróleo e Engenharia Ltda. ao pagamento de multa no valor de 1% do faturamento bruto, por estarem incursas nas infrações previstas no artigo 20, inciso I, e no artigo 21, inciso VIII, da Lei 8.884/94.

O referido processo administrativo foi instaurado com a finalidade de apurar se as empresas referidas teriam adotado condutas consistentes no acordo de preços e de condições de prestação de serviços, além de combinar vantagens em concorrência pública, com potenciais prejuízos à livre concorrência. A licitação referida em tal caso teve como objeto a contratação, pela Petrobrás S.A, de serviços para a manutenção da Plataforma Petrobrás X (PX-10), para perfuração em lâmina de água de 1.200m.

Restou, sobejamente, comprovado, no processo administrativo, que as empresas em tela se aliaram antes de candidatar-se na licitação, restando evidenciado que nenhuma de tais empresas, isoladamente, teria condições de se sagrar vencedora no certame. Ficou também demonstrado que as empresas avençaram uma indenização recíproca para cobertura dos gastos com a elaboração dos projetos.

Posteriormente, outro caso foi detectado em investigação realizada pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, na qual restou apurada conduta ilegal perpetradas por empresas privadas prestadoras de serviços de vigilância que concorriam em licitações públicas no estado do Rio Grande do Sul. Um dos membros do cartel, o qual agia em licitações para contratação de tais serviços, denunciou o esquema fraudulento. O cartel fraudava licitações organizadas pela Superintendência Regional da Receita Federal do Rio Grande do Sul e pela Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. O denunciante apresentou evidências diretas das fraudes à licitação, incluindo testemunhos de empregados e gravações de conversas telefônicas mantidas entre os envolvidos.

O CADE emitiu sua decisão em 2007 e impôs multas que variaram de 15 a 20% de faturamento bruto em 2002 a 16 empresas. Executivos das empresas condenadas e 3 associações de classe também foram multadas pelo CADE. A quantia total de multas impostas foi superior a R$40 milhões. Além disso, as empresas foram proibidas de participar em licitações por 5 anos. Na mesma ocasião, o CADE reconheceu que o denunciante cumpriu todas as condições impostas no Acordo de Leniência5 com a SDE e, portanto, nenhuma sanção lhe foi imposta na esfera administrativa, tendo havido, ainda, a extinção automática da punibilidade no âmbito criminal6.

Advirta-se que, em casos como os referidos acima, é comum encontrar o argumento de que não é possível ilícito antitruste em licitações, pois a lei de licitações, Lei n. 8.666/1993, preveria penalidades administrativas e criminais próprias. Nesse sentido, é necessário diferenciar bem os escopos da lei de licitação e da lei antitruste. Os bens jurídicos são distintos: no primeiro caso, tutela-se a Administração Pública e busca-se reparar a lesão a ela feita; no segundo, tutela-se a ordem econômica e o interesse difuso da sociedade.

Também, as consequências são bastante distintas. Nas penalidades administrativas da lei de licitações, multa-se de maneira mais branda sobre o valor dos contratos e o resultado é destinado às Fazendas Públicas (art. 99 §2°, da Lei 8.666/93). No antitruste, são impostas pesadas multas sobre o faturamento para inibir as práticas e reparar a sociedade, sob a forma de projetos vinculados a direitos difusos. Quanto às imputações penais da lei de licitações, da mesma forma que no aspecto criminal do antitruste, respondem mais aos objetivos da persecução penal, pois são reservadas apenas às pessoas físicas.

A conduta de cartel em licitações públicas encontrava enquadramento legal no art. 20, caput, e seus incisos, c/c o art. 21, caput, e incisos I e VIII, da revogada Lei nº 8.884/94. Na nova lei, recentemente em vigor, Lei nº 12.529/2011, tal conduta ilícita tem sua tipificação consoante as disposições a seguir:

Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: 

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; 

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; 

III - aumentar arbitrariamente os lucros; e 

IV - exercer de forma abusiva posição dominante. 

(…)

§ 3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no “caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: 

I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: 

a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; 

b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; 

c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; 

d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública;”

De um modo geral, em se tratando de licitações públicas, são dois os elementos necessários para caracterizar um cartel, a saber: (i) a existência de acordo entre os concorrentes e (ii) a aptidão de tal acordo para limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência.

O acordo ilícito pode ser detectado por meio de alguns indícios, quando se veem configuradas, no caso concreto, as seguintes práticas:

Percebe-se que, para a configuração de infração à ordem econômica, o cartel poderá atuar, na fase interna da licitação, p. ex., distorcendo a pesquisa de preços, mediante colusão, para elevar o preço a patamares supracompetitivos ou impedindo a entrada de outros concorrentes, e, na fase externa, estabelecendo, por meio de conluio, o vencedor ou, ainda, o patamar final de preço a ser praticado.

Os cartéis em licitações prejudicam consideravelmente o emprego pelo Estado de seus recursos no desenvolvimento do País e na melhoria das condições de vida do cidadão, na medida em que beneficiam, de forma indevida, empresas, as quais, por meio de acordo entre si, fraudam o caráter competitivo das licitações. Ainda que a Administração objetive racionalizar suas compras mediante controles orçamentários mais estritos e busque melhoria nas formas de contratação, a ação dos cartéis termina por provocar a transferência indevida de renda do Estado para as empresas.


REFERÊNCIAS:

[1] OCDE: Diretrizes para combater o conluio entre concorrentes em contratações públicas. 2009. Disponível em: http://www.oecd.org/dataoecd/34/29/44162082.pdf.

[2] Fonte: Ministério da Justiça. Disponível em portal.mj.gov.br/services/FileDownload.EZTSvc.asp. Acesso em 19.05.2012.

[3] In http:// oft.gov.uk/news/press/2007/49-07, acesso em 23.05.2012.

[4] In http://www.iht.com/articles/2007/01/24/business/siemens.php. Acesso em 23.05.2012.

[5] In http:// oft.gov.uk/news/press/2007/49-07, acesso em 23.05.2012.

[6] Processo Administrativo n. 08012.001826/2003-10

Sobre a autora
Rossana Malta de Souza Gusmão

Procuradora Federal, Mestre em Direito Público e Pós-graduada em Direito Tributário pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSMÃO, Rossana Malta Souza. A tipificação na Lei Antitruste da prática de cartel em licitação pública . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3274, 18 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22038. Acesso em: 22 nov. 2024.

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