Resumo: A Lei n. 12.619/2012, fruto de um profícuo processo de negociação entre patrões e empregados mediado pelo Ministério Público do Trabalho, veio estabelecer regras que abordam importantes aspectos da profissão dos motoristas transportadores de carga e pessoas, especialmente no que toca a limitação da jornada de trabalho e do tempo de direção, abrangendo motoristas empregados e autônomos. Esta norma não deve ser apenas lida, mas sobretudo compreendida. Compreendida em consideração ao histórico abandono e indigência que imperava até seu advento, pois somente assim é possível perceber que dispositivos cuja literalidade aparentam retrocesso, são, em verdade, grandes avanços. Contudo, a par dos numerosos avanços ora conquistados, há disposições flagrantemente inconstitucionais e que, de fato, comportam retrocessos sociais, desse modo sobreleva a responsabilidade dos aplicadores do direito, que deverão buscar no suporte axiológico do Direito do Trabalho e da Constituição as ferramentas necessárias para extrair e aplicar o que há de positivo na norma e afastar o que há de ruim. Nesta linha, cabe registrar a pronta atuação do CONTRAN, que ao editar a Resolução n. 405/2012, positivou regulamento praeter legem que muito contribui para o aperfeiçoamento da norma. Enfim, está-se diante de uma realidade em transformação, cuja consolidação positiva ou negativa dependerá, fundamentalmente, da postura dos atores envolvidos na criação da própria lei.
Palavras-Chave: motorista profissional – Lei 12.619/2012 – Resolução CONTRAN 405/2012 – jornada de trabalho – tempo de direção.
Sumário: I – Introdução; II – Disposições Gerais da Lei (arts 1º e 2º, da lei); II.1) Alcance subjetivo da norma (art. 1º, da lei); II.2) Direito dos motoristas profissionais empregados ao controle de jornada e do tempo de direção (art. 2º, V da lei); II.2.1) Consequências práticas da diferença conceitual entre jornada e tempo de direção; II.2.2) Responsável pelo controle da jornada e do tempo de direção; II.2.2.1) Da corresponsabilidade dos beneficiários dos serviços prestados pelo motorista profissional para com o controle do tempo de direção; II.2.3) Meios de controle; III – Inovações na CLT (arts 3º e 4º da lei); III.1) Deveres dos motoristas profissionais e novas modalidades de infrações disciplinares (art. 235-B, CLT); III.2) Regras atinentes à Jornada de Trabalho (arts. 235-C..235-F, CLT); III.2.1) Identificação dos limites de jornada (art. 235-C e 235-F, CLT); III.2.1.1) Da inconstitucionalidade do 235-F, CLT (jornada “12 x 36”); III.2.2) Tempo computado como jornada de trabalho (art. 235-C, § 2º, CLT); III.2.3) “Tempo de espera” (art. 235-C, § 8º c/c art. 235-E, §§ 4º e 5º, CLT); III.2.3.1) Remuneração do “tempo de espera” (art. 235-C, § 9º, CLT); III.2.3.2) Considerações finais acerca do “tempo de espera” (art. 235-C, § 9º, CLT); III.2.4) Tempo de descanso ou “intervalo de direção” (art. 235-D, I da CLT e art. 67-A, 1º do CTB); III.2.5) “Tempo de reserva” (art. 235-E, §§ 6º e 7º, CLT); III.3) Disposições especiais no caso de Viagem de Longa Distância (arts. 235-D e 235-E, CLT); III.3.1) O Descanso Semanal Remunerado nas viagens de Longa Distância (art. 235-E, § 1º, CLT); III.3.2) Ocorrência de força maior nas viagens de Longa Distância (art. 235-E, CLT); III.4) Restrições às modalidades de remuneração prejudiciais ao controle da jornada (art. 235-G, CLT); III.4.1) Intangibilidade contratual e alteração da modalidade de remuneração; III.5) Delegação à norma coletiva para regulação de jornadas especiais (art. 235-H, CLT); III.6) Fracionamento do intervalo intrajornada (art. 71, §5º, CLT); III.7) Instrumento coletivo aplicável ao empregador com atividade em várias localidades; IV - Aplicabilidade Transversal das Normas Regulamentadoras do MTE ao Meio Ambiente Laboral dos Motoristas (art. 9º da lei); V – Considerações Finais.
I – INTRODUÇÃO
A necessidade de regulamentação da profissão do motorista rodoviário transportador de cargas e de pessoas não é assunto novo. A matéria é debatida há décadas, contando com dezenas de projetos de lei tramitando nas duas casas do Congresso Nacional. Contudo, dado o antagonismo de interesses de patrões e empregados, bem como o notório caráter estratégico do assunto, as louváveis iniciativas de sindicalistas e congressistas não se mostraram exitosas.
A discussão recebeu destacado impulso a partir da propositura, em 12/12/2007 na cidade de Rondonópolis/MT, da Ação Civil Pública n. 1372.2007.021.23.00-3, que contou, em 17/12/2007, com o deferimento da liminar então pleiteada por parte do Exmo. Juízo da 1ª Vara do Trabalho de Rondonópolis que, embora tenha vigido por pouco tempo, demonstrou que o debate e solução para a questão da limitação da jornada dos motoristas era inadiável.
Dessa provocação judicial decorreu uma inédita aproximação, em escala nacional, das representações classistas laborais e patronais, ambas imbuídas pelo objetivo comum de construir um consenso em torno de um dos mais agudos problemas do segmento – a limitação da jornada de trabalho e do tempo de direção dos motoristas e a adaptação e criação da infraestrutura ambiental necessária para que os motoristas possam exercer sua atividade de modo seguro, saudável e digno.
O fruto desse processo de negociação, habilmente mediado pelo Ministério Público do Trabalho, foi corporificado no Projeto de Lei n. 99/2007, que recebeu amplo apoio de Senadores e Deputados Federais.
O aludido projeto, após ser levado à sanção presidencial, lá tendo recebido vários vetos jurídicos, deu origem à Lei n. 12.619/2012, que, finalmente veio regular a complexa e multifacetada profissão do motorista rodoviário transportador de cargas e passageiros e, como era de se esperar, seu conteúdo e alcance já inspira acalorados debates, vez que a par de trazer inestimável contribuição para milhões de motoristas profissionais, especialmente quanto ao controle da jornada de trabalho e do tempo de direção, foi redigida com a atecnia própria dos textos resultantes do consenso entre interesses conflitantes.
Essa característica uterina da norma reflete-se na positivação de dispositivos vanguardistas ao lado de outros claramente retrógrados ou, até mesmo, flagrantemente inconstitucionais.
O presente estudo, embora intitulado com o adjetivo “holístico” é ainda perfunctório e não tem a pretensão de fixar balizas hermenêuticas inamovíveis (mesmo porque estas inexistem). Pretende-se apenas dar início ao necessário estudo para que caminhos se abram no sentido de extrair e aplicar o há de bom na nova lei, bem como de encontrar os meios de coibir ou mesmo extirpar o que nela há de ruim.
O projeto de lei que resultou na norma em comento possuía quatro blocos normativos, um de normas trabalhistas, um de normas de trânsito, um de normas de infraestrutura e outro de norma intersindical. Esses quatro blocos estavam dispostos, parte com norma esparsa, parte inserida da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT e parte inserida no Código de Trânsito Brasileiro – CTB.
Embora pecando pela falta de técnica, verifica-se que o projeto de lei visou conferir uma solução completa para a questão, contemplando disposições aplicáveis aos motoristas empregados e aos autônomos, bem como preconizando os investimentos em infraestrutura necessários para viabilizar o repouso seguro desses profissionais ao longo das rodovias.
Tal desiderato foi mitigado pelos vetos presidenciais, todavia, conforme demonstrado a seguir, o que remanesceu do projeto, agora como lei, embora com ácidas e necessárias críticas a alguns pontos, possui a capacidade de transformar positivamente a atual realidade de abandono dos motoristas profissionais brasileiros.
A análise a seguir delineada centra-se nos aspectos trabalhistas da lei, fazendo referência a dispositivos inseridos no CTB e na Resolução n. 405/2012 do CONTRAN apenas quando estes repercutem sobre o motorista empregado ou, ainda, quando necessário para demonstrar eventual regramento análogo ao do motorista empregado aplicável ao motorista autônomo.
II – DISPOSIÇÕES GERAIS DA LEI (arts 1º e 2º, da lei)
II.1) Alcance subjetivo da norma (art. 1º, da lei):
O texto da lei tem início com uma imprecisão quanto à definição do seu alcance subjetivo, levando a entender que estariam por ela alcançados apenas os motoristas profissionais empregados. Nesse diapasão, uma análise isolada do art. 1º e seus incisos levaria a concluir que os motoristas profissionais autônomos estariam fora do escopo da lei.
Contudo, não é essa a conclusão revelada pela análise da integralidade do diploma legal, já que o seu art. 5º introduz uma série de dispositivos no Código de Trânsito Brasileiro (art. 67-A e art. 67-C; art. 230, XXIII), aplicáveis tanto aos motoristas empregados, quanto aos autônomos.
No mesmo sentido veio a previsão do art. 9º, esclarecendo serem aplicáveis as Normas Regulamentadoras do MTE às condições sanitárias e de conforto nos locais de espera dos motoristas de transporte de cargas, locais estes frequentados por motoristas empregados e autônomos.
Todavia, impende esclarecer que nem todos os motoristas profissionais autônomos estão vinculados à lei. Tal restrição se deve à referência feita no art. 67-A do CTB ao art. 105, II do mesmo diploma, de modo que apenas os condutores autônomos do transporte de passageiros com mais de 10 (dez) lugares e de carga com peso bruto total superior a 4.536 (quatro mil e quinhentos e trinta e seis) quilogramas estão abrangidos pela norma.
Relevante, também, identificar em qual medida os motoristas do transporte coletivo urbano de passageiros são atingidos pela nova lei, sobretudo no que toca à nova disposição do § 5º do art. 71 da CLT, que prescreve a possibilidade de fracionamento do intervalo intrajornada.
O malsinado dispositivo, que será melhor examinado à frente, induz à aparente conclusão de que os motoristas do transporte coletivo de passageiros, urbanos e interurbanos, estariam abrangidos pela norma. Contudo, não parece ser esta a melhor interpretação.
Em que pese a expressa menção às condições especiais do trabalho a que são submetidos estritamente os motoristas, cobradores ... empregados no setor de transporte coletivo de passageiros, não há, em nenhum trecho alusão ao transporte coletivo urbano de passageiros.
O silêncio é eloquente, pois a análise integral do dispositivo demonstra que ele cuida tão somente do transporte coletivo de passageiros interurbano.
A limitação do alcance subjetivo pode ser verificada claramente quanto o dispositivo se refere à concessão de frações de intervalo entre o final da primeira hora e o início da última hora trabalhada, condição que se mostra incompatível com as peculiaridades do transporte coletivo urbano, o qual exige micropausas a cada volta do ônibus, sejam elas durante a primeira hora ou mesmo ao longo da última hora de trabalho.
Conclui-se, pois, que a lei regula a atividade dos motoristas rodoviários de carga e de passageiros, quer atuem nas vias urbanas ou interurbanas, no meio urbano ou rural. Contudo, o alcance normativo de cada dispositivo é dado conforme as peculiaridades de cada segmento. Além disso, como já salientado, o novo diploma legal trata dos motoristas empregados e autônomos, sendo aplicáveis a estes tão somente os dispositivos introduzidos no CTB e àqueles tanto os do CTB, quanto as inovações da CLT.
II.2) Direito dos motoristas profissionais empregados ao controle de jornada e do tempo de direção (art. 2º, V da lei):
A noção de que a limitação da jornada de trabalho dos motoristas profissionais era uma necessidade inadiável foi, sem dúvida, a causa eficiente para o nascimento da norma em comento.
Os efeitos deletérios do descontrole de jornada neste segmento são de conhecimento público, tendo sido objeto de comprovação estatística levada a efeito pelo próprio Ministério Público do Trabalho. Em média, um em cada três motoristas rodoviários de carga lança mão de substâncias químicas ou entorpecentes para suportar as longas jornadas de trabalho, que não raro extrapola dezesseis horas de trabalho por dia. Tal realidade não apenas compromete a saúde dos motoristas, como resulta em milhares de acidentes a cada ano, vitimando tanto motoristas, quanto os demais usuários das rodovias brasileiras. É, segundo o Ministério da Saúde, um grave caso de saúde pública.
Nesse contexto, ganha relevo a disposição lançada no art. 2º, V da lei, que lista a limitação da jornada de trabalho como direito dos motoristas profissionais empregados, cabendo aos empregadores controlar tal jornada, in verbis:
Art. 2o São direitos dos motoristas profissionais, além daqueles previstos no Capítulo II do Título II e no Capítulo II do Título VIII da Constituição Federal:
[...]
V - jornada de trabalho e tempo de direção controlados de maneira fidedigna pelo empregador, que poderá valer-se de anotação em diário de bordo, papeleta ou ficha de trabalho externo, nos termos do § 3o do art. 74 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, ou de meios eletrônicos idôneos instalados nos veículos, a critério do empregador.
Dada a importância e complexidade do dispositivo, necessário destacar que ele contempla duas figuras distintas: a jornada de trabalho e o tempo de direção.
Como é cediço, entende-se por jornada de trabalho o tempo em que o empregado, por força do contrato de emprego, deve se colocar à disposição do seu empregador. Já o conceito de tempo de direção é legalmente dado pelo art. 67-A, introduzido no CTB pelo art. 5º da lei, segundo o qual tempo direção é o período em que o condutor estiver efetivamente ao volante de um veículo em curso entre a origem e o seu destino.
II.2.1) Consequências práticas da diferença conceitual entre jornada e tempo de direção:
Conforme já assentado, a jornada de trabalho aplica-se apenas ao motorista empregado, ao passo que o tempo de direção aplica-se a motoristas empregados e autônomos.
Outra observação importante é que a totalidade do tempo de direção é considerada no tempo de jornada, mas nem todo o tempo de jornada corresponde a efetivo tempo de direção, tal qual ocorre quanto aos intervalos obrigatórios de trinta minutos a cada quatro horas de direção ininterrupta, aqui designados como intervalos de direção.
II.2.2) Responsável pelo controle da jornada e do tempo de direção:
Quanto ao motorista empregado, o artigo 2º, V da Lei é claro em atribuir ao empregador a obrigação de controlar a jornada dos seus empregados motoristas. Já o motorista autônomo, em princípio, tem o controle do seu tempo de direção sob sua própria responsabilidade, nos termos do art. 67-C, introduzido no CTB, verbis:
Art. 67-C. O motorista profissional, na condição de condutor, é responsável por controlar o tempo de condução estipulado no art. 67-A, com vistas à sua estrita observância.
Parágrafo único. O condutor do veículo responderá pela não observância dos períodos de descanso estabelecidos no art. 67-A, ficando sujeito às penalidades daí decorrentes, previstas neste Código.
Felizmente a interpretação sistemática da lei atenua a evidente impertinência lógica de atribuir o controle ao controlado.
II.2.2.1) Da corresponsabilidade dos beneficiários dos serviços prestados pelo motorista profissional para com o controle do tempo de direção:
Tendo em vista a deficitária estrutura de fiscalização nas rodovias brasileiras, atribuir o controle do tempo de direção ao próprio motorista chega ao limiar de tornar a lei letra morta para com os autônomos.
Contudo, atento ao fato de que a dinâmica do transporte se insere na relação comercial mantida entre contratante do serviço e o prestador desse serviço de transporte, o legislador buscou garantir a eficácia da lei atribuindo ao beneficiário do serviço a corresponsabilidade, civil e penal, pelo controle do tempo de direção.
Na seara penal o projeto de lei inseria no Código de Trânsito o artigo 310-A, que tornaria crime a conduta do empregador que ordenasse ou permitisse o início de viagem de duração maior que 1 (um) dia, estando ciente de que o motorista não cumpriu o período de descanso diário, conforme previsto no § 3º do art. 67-A, deixando claro que também responderia pelo crime o transportador de cargas, consignatário de cargas, operador de terminais de carga, operador de transporte multimodal de cargas ou agente de cargas que concorressem para a prática do delito.
A pretensão legislativa visava claramente conferir consistência lógica ao diploma legal, de modo a tornar factível a efetividade do controle do tempo de direção, especialmente para os motoristas autônomos. Entretanto, a iniciativa sofreu o veto presidencial.
Felizmente, a mesma sorte não foi dada à iniciativa na esfera cível, isto porque fora mantida a disposição inserta no § 7º do artigo 67-A do CTB, combinada com os parágrafos 3º e 5º do mesmo artigo, verbis:
Art. 67-A ...
[...]
§ 3o O condutor é obrigado a, dentro do período de 24 (vinte e quatro) horas, observar um intervalo de, no mínimo, 11 (onze) horas de descanso, podendo ser fracionado em 9 (nove) horas mais 2 (duas), no mesmo dia.
[...]
§ 5o O condutor somente iniciará viagem com duração maior que 1 (um) dia, isto é, 24 (vinte e quatro) horas após o cumprimento integral do intervalo de descanso previsto no § 3o.
[...]
§ 7o Nenhum transportador de cargas ou de passageiros, embarcador, consignatário de cargas, operador de terminais de carga, operador de transporte multimodal de cargas ou agente de cargas permitirá ou ordenará a qualquer motorista a seu serviço, ainda que subcontratado, que conduza veículo referido no caput sem a observância do disposto no § 5o.
Em termos práticos o dispositivo acima transcrito estabelece a corresponsabilidade do controle do tempo de direção dos motoristas profissionais (empregados ou autônomos) aos destinatários das cargas e aos contratantes do transporte de passageiros.
Neste eixo, no dia 14 de junho de 2012, o Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN editou a Resolução n. 405 que, ao regulamentar a aplicação da Lei n. 12.619/12, previu no seu artigo 4º:
Art. 4º Nenhum transportador de cargas ou de passageiros, embarcador, consignatário de cargas, operador de terminais de carga, operador de transporte multimodal de cargas ou agente de cargas permitirá ou ordenará a qualquer motorista a seu serviço, ainda que subcontratado, que conduza veículo sem observar as regras de tempo de direção e descanso contidos nesta resolução.
Desse modo, numa clara regulamentação de caráter praeter legem absolutamente fiel ao espírito da norma em comento, o Poder Executivo entendeu por bem, na esfera administrativa, corresponsabilizar o destinatário do serviço de transporte de modo amplo, devendo este não apenas abster-se de exigir trabalho ao motorista fatigado, mas sobretudo empreender os meios necessários à garantida do devido descanso, por meio da devida fiscalização e controle do tempo de direção.
Neste passo é de se esperar uma injustificada resistência dos transportadores de carga em efetivar o controle do tempo de direção da controvertida figura dos “motoristas agregados”, prevista no art. 4º, § 1º da Lei n. 11.442/2007.
Sem embargo à controvérsia quanto à legitimidade e constitucionalidade dos “motoristas agregados”, fato é que estes profissionais ostentam a condição de autônomos, autonomia esta que vem, mais uma vez, mitigada pela obrigação ora imposta aos transportadores de eficazmente controlar o tempo de direção e os efetivos gozos do tempo de repouso desses profissionais.
Sendo assim, a pretexto de evitar a caracterização do vínculo de emprego com os “agregados”, não poderão os transportadores efetuar controle meramente formal do tempo de direção. Este controle deve ser efetivo, sob pena de conduzir à responsabilização civil e administrativa do transportador e demais beneficiários do serviço de transporte.
II.2.3) Meios de controle:
É evidente que pouco ou nada vale um direito que não possa ser aferido ou, como no caso da jornada de trabalho, controlada. É por essa razão que procedentes críticas foram lançadas às letras da parte final do art. 2º, V da lei.
O dispositivo relacionou entre os meios de controle da jornada o diário de bordo, a papeleta ou ficha de trabalho externo (referindo impropriamente o § 3º do art. 74 da CLT, já que este dispositivo trata de horário de trabalho e não de jornada), bem como a outros meios eletrônicos idôneos instalados no veículo.
A celeuma reside menos no fato de que o diário de bordo e a papeleta sejam (e de fato são) instrumentos vulneráveis à fraude. O ponto que merece fundadas críticas é a faculdade, atribuída ao empregador para eleger dentre os instrumentos aludidos, qual adotará para executar o controle.
Ora, ao assim dispor, a norma aparenta sugerir que sempre se adote o livro de bordo ou a papeleta de trabalho externo, uma vez que para se furtar ao pagamento de horas extraordinárias, basta que o empregador exija que o empregado preencha tais documentos segundo seus interesses.
Embora essa seja uma possibilidade mais do que verossímil, impende fazer algumas ponderações que conduzem à conclusão de que, embora a lei não tenha adotado a melhor redação (longe disso), ela é fundamental para que o resultado útil que se espera alcançar possa ser produzido.
Não se pode olvidar que até o advento desta lei o contexto normativo, ancorado na norma exceptiva do art. 62, I da CLT, conduzia à posição jurisprudencial majoritária de que a atividade de motorista, por ser exercida externamente, seria, em regra, impassível de controle de jornada, o que redundava, salvo exceções, na improcedência dos pedidos de pagamento das horas extras.
Desse modo, a razoável certeza de que a exigência de sobrejornada não custaria nada ao empregador levava o setor a adotar o pagamento por comissão e, dessa forma, conseguir a adesão do próprio empregado para que este se submetesse às extenuantes jornadas de trabalho em busca de uma melhor remuneração.
Essa lógica perversa muda radicalmente com a nova lei, pois com a expressa referência à limitação de jornada como direito do motorista, tendo o empregador o dever de controlá-la, passa a ser absolutamente descabida a tutela jurisdicional que nega o direito às horas extras laboradas pelos motoristas profissionais com base no singelo fundamento de que a atividade é externa e, supostamente, infensa a controle.
Trata-se de um enorme avanço, uma vez que o Poder Judiciário Trabalhista deixará de atuar como um legitimador da negação do direito e reassumirá sua vocação natural de guardião dos direitos fundamentais trabalhistas.
Inquestionavelmente a troca da razoável certeza da impunidade pela razoável certeza da condenação tende a conduzir os empregadores ao cumprimento da norma, ou seja, a lei tende a produzir uma conduta preventiva ao ilícito e ao próprio litígio.
No mesmo sentido, a expressa referência aos meios de controle, inclusive com a cláusula de abertura para outros meios eletrônicos idôneos, representa importante conquista em face da frenética evolução tecnológica experimentada pelo setor, que conta com rastreamento via satélite, Controle Total de Frotas – CTF, “tacógrafo”, dentre outros.
Pois bem, mas o que dizer da inconveniente faculdade atribuída ao empregador para escolher entre os meios de controle, combinada com a vulnerabilidade do diário de bordo e da papeleta de trabalho externo?
Resta claro que o legislador teria andado melhor se houvesse referido os meios de controle numa ordem preferencial, começando do mais confiável até o mais vulnerável. Todavia, em se tratando de norma resultante do acordo entre representações classistas de patrões e de empregados (como é o caso), verifica-se que a redação do dispositivo bem reflete esse embate de interesses.
Ora, se a possibilidade de fraude não foi dificultada na elaboração da lei, ela deve ser reprimida na sua aplicação.
O art. 203 do Código Penal prescreve pena de um a dois anos de detenção, além de multa, a quem frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho. Além disso, a mesma conduta é passível de penalização administrativa infligida pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, bem como pode ser devidamente reprimida e ter sua reiteração prevenida por ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho ou mesmo pelos sindicatos profissionais.
Cabe lembrar que ainda que o empregador eleja um meio de controle vulnerável, tal eleição não vincula a autoridade fiscal (Auditor-Fiscal, policial rodoviário federal ou estadual), o Procurador do Trabalho e, tampouco o Juiz de Direito ou do Trabalho, ou seja, numa ação fiscal trabalhista, numa apuração policial, num inquérito civil, num processo penal ou trabalhista, todas essas autoridades podem e devem lançar mão de quaisquer meios de prova idôneos para trazer a lume a verdade dos fatos.
Conclui-se, pois, que embora a lei tenha, imprópria e inconvenientemente, atribuído ao empregador o direito de eleger o meio de controle da jornada dos motoristas, a adequada aplicação da norma poderá, com certa facilidade, elidir e punir exemplarmente eventual fraude.
Ainda no que concerne aos meios de controle, mas agora do tempo de direção aplicável a todos os motoristas profissionais (autônomos e empregados), impende observar que o veto ao artigo 67-B do CTB trouxe, num primeiro momento, preocupante insegurança jurídica.
O art. 67-B do CTB relacionava os meios de controle do tempo de direção, fazendo referência alternativa ao diário de bordo e ao equipamento registrador (“tacógrafo”), todavia, atento à fragilidade do registro no diário de bordo, o Poder Executivo vetou o dispositivo.
Em que pese a responsabilização do condutor pelo controle do seu tempo de direção referida pelo art. 67-C do CTB, bem como a estipulação de multa administrativa pelo descumprimento dos períodos de descanso (intervalo de direção) prevista no art. 230, XXIII do CTB, qual seria o meio de controle utilizado pelo policial rodoviário para fundamentar sua notificação?
Diversamente do que ocorreu com as inovações de índole trabalhista, na esfera do direito de trânsito não houve menção ao rol de meios de controle, pois, como já dito, o dispositivo que o previa foi vetado.
Ora, tendo a autoridade policial sua atividade vinculada à lei, com base em qual parâmetro ela poderia apenar o condutor que não observar o descanso exigido no art. 67-A do CTB?
Dada a vacuidade da norma, restou aberto o espaço para que o Poder Executivo regulamentasse a aplicação da lei, o que veio a ocorrer antes mesmo de escoada a vacatio legis, em 14 de junho de 2012, por meio da já mencionada Resolução n. 405 do CONTRAN.
O artigo 2º aludida Resolução esclarece que:
Art. 2º A fiscalização do tempo de direção e do intervalo de descanso do motorista profissional dar-se-á por meio de:
I - Análise do disco ou fita diagrama do registrador instantâneo e inalterável de velocidade e tempo ou de outros meios eletrônicos idôneos instalados no veículo, na forma regulamentada pelo CONTRAN; ou
II - Verificação do diário de bordo, papeleta ou ficha de trabalho externo, fornecida pelo empregador; ou
III – Verificação da ficha de trabalho do autônomo, conforme Anexo desta Resolução.
§ 1º A fiscalização por meio dos documentos previstos nos incisos II e III somente será feita quando da impossibilidade da comprovação por meio do disco ou fita diagrama do registrador instantâneo e inalterável de velocidade e tempo do próprio veículo fiscalizado.
O Poder Executivo, guardando coerência com as razões do veto presidencial, estabeleceu que a fiscalização do tempo de direção e dos repousos dar-se-á, preferencialmente, com base no disco ou fita diagrama do registrador instantâneo e inalterável de velocidade e tempo ou de outros meios eletrônicos idôneos instalados no veículo.
Tal disposição, aplicável inclusive aos motoristas empregados, reduz sensivelmente os potenciais efeitos deletérios da eleição, pelo empregador, de meios de controle menos confiáveis, uma vez que, ainda que escolha controlar a jornada dos seus empregados com base, por exemplo, no diário de bordo, o empregador deverá, obrigatoriamente, controlar o tempo de direção deste mesmo empregado por mecanismo de maior confiabilidade.